Reencontros escrita por Eve


Capítulo 3
Capitulo 3




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Fazia frio lá fora. A lua estava em sua metade, brilhante, distante, mas mesmo assim ainda era possível visualizar seu brilho. Helena a observava com um copo de chá de camomila em uma mão e um cigarro de palha em outra. Estava sentada na entrada de sua casa. Escutava a música “A Beira e o Mar” de Maria Bethânia, da qual ultimamente escutava bastante pois sentia que colocava um up em si que não tinha há muito tempo. Esse era um dos momentos, por exemplo, logo após uma discussão com sua esposa. Inclusive, esta última que sugeriu o álbum de mesmo nome da música a ela, logo no início do relacionamento. Desde então tem como um dos seus favoritos. Helena é bastante fã de Bethânia.

Puxou seu terceiro trago pensando nos rostos de sua família: Rosa, Maria Flor e Clarice. Fechou os olhos e lembrou da quarta mulher, sua sogra Susana. E soltou a fumaça. Pensou na viagem que Rosa havia contado em cima da hora. E vinham com as palavras que ela a havia dito... ecoaram e ecoaram em sua cabeça. Em outros momentos, Helena começaria a chorar de soluçar. Mas estava muito cansada e sabia que Rosa tinha razão de ficar irritada com a situação da ausência dela em casa. Ela sabia.

A angústia de Helena tomava conta de seu peito, subia até sua garganta..., mas não a deixava transbordar. Aprendera nesses últimos meses a conviver com ela silenciosamente, não achando necessário compartilhar com Rosa e fazerem com que os problemas ficassem maiores. Helena fazia terapia. Depois que aumentou sua carga horária no trabalho, ela não conseguiu mais ir a sua psicanalista. Esta havia lhe dito que poderia flexibilizar os atendimentos, mas Helena achou melhor não deixar as coisas apertadas em seu cronograma no início. Porém, mesmo meses depois, não conseguiu encaixar a análise durante a semana.

As vezes batia arrependimentos, mas daí lembrava que era para o bem da sua família. Por mais que só apareça sofrimento. De novo, a vontade de chorar sobe, mas Helena não a deixa. Deu um trago rápido e tomou um gole do chá. A música agora que toca é “O Mundo é um Moinho” de Cartola, cantando perfeitamente por Teresa Cristina. Não queria ouvir essa música naquele momento, mas não conseguiu passar para outra. Fechou os olhos e tentou pensar que no final vai dar tudo certo. Precisaria fazer sua parte: ajudar Rosa. Já havia prometido tanto a ela, não era justo deixa-la sozinha em suas férias com as meninas a todo tempo. Estavam juntas há dez anos e não poderia deixa-la nessa fase difícil para ambas.

Na semana anterior já tinha conversado com seu superior sobre suas férias. Ele disse que era um momento improprio para tira-las na empresa, Helena compreendeu. Porém o fez analisar melhor pois independente do momento que a empresa se encontrava, tinha direito; há mais de um ano que não tirava férias. E ainda completou dizendo das férias das crianças em casa que seria importante estar em casa nesse momento. Ele acatou, disse que iria ver se conseguia garantir isso a ela. Desde então não falou mais com ele sobre o assunto.

Havia passado uma semana e precisaria conversar sobre isso novamente com ele. Helena viu o relógio, já ia dar 01h da manhã. Se comprometeu a ligar para ele amanhã cedo. Pensou na viagem a Minas, pegou-a de surpresa certamente essa ideia e a ligação de Susana que não via há anos. Pensou nas filhas, nos prós e contras. Pensou em Rosa sozinha com elas. Mesmo Rosa aparentando ser forte, talvez não desse conta de tudo isso. Respirou fundo, fechou os olhos e pensou: preciso estar com elas nessa viagem, nessa tal festa. Abriu os olhos e voltou seu olhar para a Lua que ia se distanciando mais e mais.

Helena parecia ver seu reflexo: uma lua, pela metade, cada vez mais longe. Seus olhos marejaram com a comparação. Bebeu o resto do chá, o choro e entrou em casa.

***

A pequena fresta de luz invadia as cortinas da janela da sala. Helena sentindo a claridade adentrando o cômodo, conseguiu tatear uma almofada que estava no chão, para seu rosto. Não precisou olhar o relógio para imaginar que seriam por volta das 07h da manhã ainda. Virou o corpo, deu as costas para a luz e tentou voltar para seu sono no espaço estreito do sofá. Estava de calça moletom e uma grande camisa de tamanho GG, da qual servia de quase uma camisola a ela. O cobertor preenchia quase todo seu corpo até o pescoço. A luz sempre a incomodada e a despertava toda manhã, em qualquer lugar. Depois de já ter entrado em contato com ela uma vez, dificilmente prosseguiria com o sono. Nessa manhã não seria diferente. Helena sempre tentava, tentava, mas parecia que seu cérebro já entendia que era a hora certa para acordar. Pensamentos sobre o novo dia que começava, já invadiam sua cabeça. Por mais que parte de seu cérebro trabalhasse para faze-la pegar no sono outra vez, com a frase que ela mesma produzia – por favor, dorme. Por favor, dorme Helena – não estava fazendo muito efeito.

As imagens da viagem de hoje, de Rosa, de Susana, das meninas... começavam a vir com força na mente. As preocupações da viagem em si, da estrada, das meninas no carro ou ônibus (porque não sabia o que Rosa pensara direito), da chegada a cidade, do humor imprevisível de Susana, dos parentes de Rosa, do preconceito vindo da família conservadora que Rosa tantas vezes desabafou com ela sobre a dificuldade de se firmar lésbica durante a adolescência em Minas, por conta da cultura hetéronormativa muito forte no interior do sudeste brasileiro. Apesar de que Susana sempre foi a diferentona da família e lidou do jeito dela com as escolhas sexuais da única filha mulher.

E a relação com a sogra foi muito bem obrigada nas poucas vezes que se viram durante todos esses anos. Houve uma tensão maior com o casamento e depois a chegada de Maria Flor, onde Susana invés de ajudar só atrapalhava a dinâmica que o casal estava tentando começar com uma bebê recém-chegada. Enfim, Helena sempre achava sua sogra surpreendente em pontos positivos e negativos, e rever ela depois de um tempo com tudo muito mudado para todas, iria ser, talvez, estressante demais. Era tudo o que ela menos queria no momento: se estressar mais.

Colocou-se a sentar lentamente no sofá, desistindo de si mesma na luta contra o despertar. Pegou o celular do chão e viu as horas: 7:34 da manhã. Grunhiu. Cedo demaais. Se espreguiçou. Gemeu alto assim que sentiu seus músculos e tensões soltarem e fazerem aquela sensação arrepiante e gostosa no corpo que durava alguns segundos.

Pronto. Helena despertou de vez.

Saiu do sofá, foi lentamente em direção a cozinha preparar o café. Prendeu os cabelos escuros em rabo de cavalo. Assim que soltou uma das mãos, ela tocou sem perceber numa jarra de plástico que estava na bancada e pelo desequilíbrio naquele momento acabou deixando a garrafa cair no chão, fazendo um bom barulho. Helena xingou baixinho. Pegou a garrafa do chão e a colocou fortemente de volta ao seu lugar, fazendo um enorme estalo. Respirou fundo, procurou a máquina de café, o filtro e o próprio café para começar a fazê-lo.

Foi quando ouviu um barulho vindo da escada e uma pequena tosse. Reconheceu imediatamente, deixou o café sendo passado na máquina e foi para a direção da escada confirmar.

Logo viu um serzinho agachado com os cabelos loiros cacheados cobrindo boa parte do pequeno rosto, segurando a pequena grade branca e olhando para baixo em silêncio.

— Minha bebezinha acordou? – Disse Helena subindo as escadas.

Logo a garotinha levantou quando percebeu a mãe vindo em sua direção.

Helena destrancou a grade e se agachou para pegar no colo a caçula. Encheu-a de beijos no pescoço e nas bochechas. Clarice se encolheu no colo da mãe, ainda introspectiva porque acabara de acordar, notou Helena.

— Bom dia meu amor! Vamos trocar essa frauda?

A pequena assentiu levemente ainda encolhida no colo da mãe. Helena girou a maçaneta da porta do quarto dela para confirmar que Rosa trancou a porta. Rosa de vez em quando fazia isso com ou sem noites tensas anteriores entre elas. Helena até achava justo deixar Rosa dormir mais um pouco e ficar com as filhas mais tempo no final de semana. Foi um acordo que estabeleceram desde sempre, algo que daria certo para ambas.

Então entrou no quarto das filhas. Encontrou Maria Flor ainda dormindo em sua cama, fez cuidado para não fazer barulho. Colocou Clarice em sua cama, tirou-lhe a frauda molhada e procurou logo uma limpa para por na criança. Antes a limpou com lenço umedecido rapidamente.

— Clá, você quer fazer cocozinho agora? – Perguntou antes de por a outra frauda.

— Não. – Respondeu se espreguiçando.

Helena não resistiu, beijou a barriguinha da filha que ficou rindo das cócegas.

— Shiuu! Sua irmã está dormindo – Falou baixinho

Clarice imitou o shiuu da mãe, ambas riram baixinho. Helena colocou a frauda e pegou-a no colo novamente. Percebeu, saindo do quarto, que Flor se mexeu na cama e abriu um pouquinho os olhos a olhando.

— Bom dia meu amor – Disse Helena baixinho – mamãe estará lá em baixo – deu uma piscadela e um beijinho no ar à ela.

E saiu do quarto deixando a porta um pouco aberta.

***

Era noite e as malas estavam prontas. Rosa chorava por ter que ir sozinha viajar com as filhas. Helena havia dito claramente que não iria para Minas e que Rosa deveria lidar com isso. Esta estava com muita raiva da esposa e mais raiva ainda por ter que chorar na frente das filhas que estavam assustadas com a reação da mãe loura.

Por mais que Rosa tentasse cessar o choro, não conseguia. Resolveu pegar as bagagens e as meninas e sair rapidamente da casa em direção ao carro antes que a cena piorasse. Ouvia as meninas falaram “não chora, mamãe” mas a vontade era o oposto. Helena acabou com o inicio de algo que poderia ser maravilhoso, nunca a perdoaria.

Encaixou as meninas nas cadeiras de segurança, colocou as malas no porta malas e seguiu rápido ao volante. Conseguiu visualizar pelo retrovisor a morena na porta sem reação nenhuma, Helena estava séria a olhando. Rosa se sentia angustiada. Sentiu que perdeu Helena de vez, e esse sentimento pesava em seu peito.

Pesou tanto que a fez despertar do pesadelo. Abriu os olhos no susto, seu coração estava batendo muito forte. Virou para o lado e encontrou o vazio na cama, raciocinou rápido o porquê Helena não dormiu lá naquela noite. Lembrou da discussão. Fechou os olhos ainda sonolenta, respirou fundo. Odiava ter pesadelos que invadia seu corpo assim. Esse não era um dos primeiros que sofria por seu relacionamento, mas era especifico do momento atual. Um certo medo no início tomou conta dela, mas depois foi tentando esquecer esse sentimento pensando no contexto geral: sua mãe havia ligado ontem a noite, falou da viagem, Rosa concordou que iria hoje com ou sem Helena. Grunhiu. Hoje seria um dia longo.

Se espreguiçou, percebeu os raios solares que adentraram pela fina abertura da cortina. Pegou seu celular da cabeceira ao lado, era 8:31 da manhã. Lamentou ter acordado àquela hora, mas naquele dia seria interessante acordar nesse horário mesmo, tinha muita coisa para fazer. Então levantou lentamente da grande cama e foi em direção ao banheiro para fazer xixi, escovar os dentes e jogar uma água no rosto afim de acordar de vez.

Destrancou a porta do quarto, percebeu logo a porta do quarto das crianças aberto. Olhou rapidamente para confirmar que elas não estavam mais ali, fechou a porta.

Ao descer as escadas, percebeu vozes de desenho animado misturado com vozes das filhas. Se aproximou da sala e visualizou Flor e Clarice no chão brincando com suas bonequinhas LOL enquanto passava na TV algum desenho da qual elas não davam atenção. Helena estava sentada no sofá mexendo em seu notebook. Uma cena típica de sábado.

— Bom dia gatinhas! – Disse Rosa ainda com a voz rouca com as mãos na cintura olhando para as filhas.

— Bom dia mamãe! – Ambas responderem em uníssono. Clarice foi correndo para as pernas da mãe.

— Oi leoazinha! – Encheu de beijos a cabeça da menor, que se juntou a mais velha e voltou a brincar.

Rosa olhou para Helena. Ainda estava na mesma posição.

— Helena?

Rosa achou que ela ia ignora-la por mais uns segundos, porém a morena respondeu no mesmo instante a olhando.

— Oi.

— Podemos conversar rapidinho? – limpou a garganta.

— Sim, claro.

Helena deixou de lado o notebook e seguiu Rosa até a cozinha.

— As meninas já tomaram café. Clarice fez questão de preparar a omelete pra gente, tem pra você. – Apontou com a cabeça para a frigideira atrás de Rosa que sorriu de lado.

— Clarice tá gostando mesmo desse lance de experimentar fazer comida, não é?

Helena sorriu.

— Sim e muito. Adorei ver que do jeito dela, ela leva a sério.

Rosa sorriu de volta e olhou para baixo. Decidiu por café em sua caneca e continuou.

— Helena. Então, acho que ontem mais uma vez nós nos aborrecemos...

— Rosa...

— Me desculpa se me exaltei, só que as vezes é o que se passa aqui – apontou para a cabeça – e não consigo deixar de falar...

— Me desculpa, ok? Por estar dificultando as coisas aqui em casa. – Helena falou baixo se aproximando de Rosa, tentando achar seu olhar.

Rosa engoliu um gole de café.

— Tudo bem Helena – a olhou nos olhos – agora, só precisamos conversar sobre Minas.

— Sim, sim – Helena se afastou, colocou uma mão na testa e fechou os olhos – você ainda pensa em ir?

— Penso.

Helena a encarou de braços cruzados. Rosa a observava também, já sabendo a resposta negativa da esposa. Também já imaginava que ela não iria. Lembrou do sonho que teve essa noite. Claro que iria ser aquilo mesmo. Só precisava manter a calma, daria certo essa viagem só com as meninas. Teria que ir de ônibus, significaria 6 horas de viagem com duas crianças. Tudo bem, ela daria conta. Lembrou do irmão. Ligaria a ele para ver se conseguiria ir com ele.

— Vou ligar para Rodrigo para ver como ele vai fazer para chegar até lá, se será de ônibus ou avião. Qualquer coisa peço ajuda a ele.

Helena se mostrou confusa.

— Não precisa, Rosa. Eu levo a gente de carro mesmo.

Rosa levou um susto. Sentiu um frio na barriga ao ouvir o “a gente”. Olhou boquiaberta Helena por uns segundos, tentando digerir o que acabou de ouvir.

— Sim, não vou deixar vocês irem sozinhas por mais que eu ache isso muito surreal.

Rosa bebeu mais um gole e deixou a caneca na bancada.

— Juro que esperava outra resposta. Nossa, que bom então. Obrigada Helena.

— Não precisa agradecer, Rosa. Não ia aguentar não estar com vocês nessa viagem por vários motivos.

Rosa sentiu outro frio na barriga. A sensação de segurança de repente estava enchendo seu corpo. Helena sempre mantinha Rosa em segurança, seja pelo gesto no olhar, suas palavras, seu abraço, aperto de mão... Não sabe ao certo quando deixou de se sentir assim com Helena, mas parece que nunca havia sumido. Estava ali de novo, de forma espontânea. Gostava de sentir essa sensação e esquecera o quanto gostava. Helena iria viajar com elas e demorou para admitir para si mesma que adorou sua resposta.

Sorriu de lado para Helena, controlando alguma reação maior. Não conseguiu esboçar palavras para responder, só soube pegar e aproximar sua caneca lentamente para boca ainda olhando para Helena. Depois fechou os olhos deixando o resto do café descer sua garganta.

Sentiu o olhar de Helena em si.

Resolveu quebrar o silêncio.

— Sei que não estamos muito bem, mas precisamos nos esforçar para deixar essa viagem tranquila para elas. – Disse Rosa.

— Concordo – a morena respirou fundo – precisamos nos organizar também para pegar a estrada, certo?

— Claro! Vamos falar com as meninas primeiro, o que acha? – aproximou-se de Helena.

— Vamos!

Ambas foram em direção as meninas que agora se entretinham com o desenho na TV. Rosa sentou no sofá no meio das duas. Helena ficou de pé em frente da TV de propósito, olhou para Rosa. Esta, retribuiu.

As duas mulheres confirmaram com os olhares o que estava prestes a acontecer. Não apenas contar as filhas da viajem que fariam a algumas horas, mas embarcar em alguma viagem previsível: com todos os riscos possíveis em relação a família de Rosa, a mãe de Rosa e tudo que poderia afeta-las. Ou uma viagem imprevisível, acontecendo tudo aquilo que elas não contavam. Mais um desafio na vida delas.

E as duas sabiam que não estavam preparadas.


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