Nem sempre fui de vidro.

Nasci areia, leve e solta. Movia-me de acordo com o vento, ou com as marés. Estava sempre em toda a parte, junto à todos, até me prendia à alguns.

Mas, com o passar do tempo, me queimaram. Me expuseram à temperaturas extremas, abriram feridas em minha pele, bolhas e queimaduras de terceiro grau se encontravam sobre o que antes era macio, leve e solto. Então, virei vidro.

Ao virar vidro, passei, novamente, por diversas mãos. Mãos travessas de crianças maldosas e descuidadas, que sempre me deixavam cair, ou me derrubavam de propósito. E, com isso, do vidro, me transformei em cacos.

Caí aos pedaços.

Até que eu te conheci.

É claro que eu, meros cacos de vidro, não me achava o suficiente para você. Mesmo que parecesse diferente... e você me disse que era diferente. Tornou-se a minha salvação. Pela primeira vez na minha vida, achei que meus cacos se reuniriam. Se juntariam e, ao invés de voltar a ser a velha, frágil peça de vidro, eu, contigo ao meu lado, seria tipo vidro a prova de balas. Você era perfeito para mim. Afinal, nada poderia me quebrar mais do que eu já havia quebrado. E, mesmo que pudesse, sei que você nunca me quebraria.

Você era a minha cola. Minha única esperança.

Então chegou aquele dia. Ah, sim, derramei-me em lágrimas de alegria ao responder sim à sua proposta de, juntos, nos tornarmos a mais bela vidraça. Talvez pudéssemos até proteger uma estufa, enquanto deixávamos belas flores crescerem em nosso interior, presenteando-nos com o doce, doce aroma que a nossa perfeita junção produzia.

Era tudo perfeito.

Perfeito demais.

Demorei à perceber, querido, que nossas flores continham espinhos, e que estávamos plantando ervas daninhas. Mas você, meu amor, sabia disso dês do começo. Para nós, pessoas de vidro, que já estão acostumadas a cair e quebrar, nenhuma dor se compara com a de ser derrubada por aquele que confiamos, aquele que mais amamos.

Então me encontro aqui, no chão, com um estranho líquido vermelho viscoso escorrendo dos cortes ainda frescos em meu rosto. Cada um deles, causados por você. Nunca ninguém me feriu de forma tão violenta quanto você, que me tirou tudo o que eu tinha, especialmente minha liberdade.

Viver contigo, aguentar teus abusos, e tentar não me engasgar com a mordaça invisível em minha boca, enquanto forço sorrisos e invento desculpas para aqueles que veem hematomas em meus braços, é simplesmente uma grande tortura.

Por todo esse tempo, deliciei-me com suas promessas vazias, como a propaganda de uma cola barata que eu tinha certeza que poderia juntar meus cacos. Nunca imaginei-me numa situação assim. Nunca pensei que estaria aqui, sentada no chão, sangrando, segurando o meu rosto após levar mais um tapa seu, enquanto você simplesmente estava em pé em minha frente, me olhando de cima.

Até te conhecer, meu querido marido, não achava possível que cacos de vidro poderiam ser amassados até adquirirem uma consistência parecida com a de poeira.

Levantei-me do chão e fui para a cozinha, sem dizer mais nenhuma palavra, enquanto comecei a preparar o sanduíche que fez-te me punir tão severamente, já que meus machucados doíam o suficiente para não aguentar prepará-lo.

Ao contrário do que todos dizem, o amor não faz mal. Não acredito nisso. Mas a ilusão, ao se transformar em abuso, é letal. E pensar que existem muitas outras mulheres de vidro como eu, é o que me faz despedaçar cada vez mais. Creio que, em algum lugar, tenha uma espécie de aço dentro de nós. O problema é ter coragem o suficiente para usá-lo.

Afinal, somos vidro, e devemos cuidar de nossa casca.