O monstro felino escrita por Mega Leon


Capítulo 1
O monstro felino




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Parando meus afazeres domésticos, acabo me sentando no tapete felpudo que está no meio da minha sala e de frente para as janelas que recém limpei, então, eu olho o grande vão de janelas, pelo qual vejo Porto Alegre inteira, ou, no mínimo, o meu bairro. Entretanto, não me associe a questão de riqueza, mesmo que eu esteja limpando a janela ou não, com um apartamento cheio de eletrodomésticos caros, internet de último nível e móveis feitos a medida com madeira Amazônica, já que, por mais alto que seja a minha residência, não se equipara com esta definição de luxo, embora o meu domicílio seja muito bonito e aconchegante, com os móveis comprados por um preço justo na Black Friday, os eletrodomésticos comprados em duas vezes sem juros e a comida ser de um mini mercado local, ainda assim, eu poderia me deliciar por horas neste tapete.

 A lástima me percorre o corpo, pois possuo-o o fardo de escrever um artigo para o curso de Letras da PUC, já que sou graduando em Jornalismo e já sou formado em Letras, contudo, isso não me causa agrado nenhum. Fazer enquetes, comentários e artigos nos jornais da Escola sempre foram o meu ponto forte, todavia, o quê eu tenho para falar sobre Letras? Caio deitado no tapete, bufando de falta de criatividade. Quem diria que morar em outra cidade só por culpa da Faculdade seria fácil? Será que vale mesmo a pena continuar? Ou será que estou enfiando os pés pelas mãos? Bem, eu não sei, não possuo ideia de nada, a princípio. Fiz o meu namorado sair de sua cidade de origem só para eu fazer Jornalismo na Capital, daí não estaríamos separados e teríamos mais descanso... mas que nada! Desde que nos mudamos, é só chatice!

 Fico o dia todo na função entre Faculdade, temas, limpar a casa, o escritório e dormir. Tampouco nos damos luxo aos prazeres da carne! Confesso que se ele desistir de mim, em algum momento, não irei ficar nem um pouco surpreso, pois sou o pior namorado do mundo! Enquanto me encolho no tapete de dor na minha alma, percebo que só amá-lo não fará, de fato, que nós sejamos um casal, tem que ter mais, mais entrega e comprometimento, e eu não estou falando só de Carpe Diem, também estou falando de demonstrar interesse pelo meu parceiro. Oras, que tipo de homem eu serei se eu não for justo com quem amo? Uma lágrima escorre em meu rosto. Eu me odeio mesmo...

 Me levanto e vou ver como está a rua, ao mesmo tempo que limpo a lágrima que luta para descer o meu rosto e cair no chão, mas consigo pará-la. A alameda anda muito movimentada, com pessoas atrasadas, jovens compromissados, crianças chorando, ônibus e carros congestionando todo o asfalto. Bem, há de tudo um pouco na Capital mesmo. Vou até o meu quarto, que está com as cortinas fechadas, forçando a luz do Sol a entrar por pequenos feixes entre os lugares que as cortinas falham a entrar. Pego um cobertor e volto para a sala de estar. Coloco o cobertor nas minhas costas, ligo a minha TV Smart, também comprada na Black Friday, coloco num desses programas de variedades da tarde e o fato de ter alguém falando me deixa menos com a sensação de solidão e abandono.

 Geralmente, quando alguém está por perto e eu estou deitado do jeito que estou, no tapete peludo com um cobertor sobre a cabeça, geralmente as pessoas que convivo no meu dia-a-dia, sejam vizinhos ou colegas de classe, por exemplos, ficam na volta perguntando se estou bem e o por quê estou nessa “posição depressiva” que é estar deitado dessa forma tão “estranha” para muitos. É tipo usar o vaso sanitário, é algo pessoal de cada um, ninguém se sente confortável de que o vejam fazendo necessidades. O programa continua falando sobre uma família que saiu do Nordeste para tentar uma nova vida em “Sampa”, mas nada saiu como eles planejaram, afinal, para você trabalhar, precisa-se de experiência, contudo não tem como conseguir quando todo emprego pede o mesmo, a menos que você faça uma Faculdade, já excluindo as pessoas mais necessitadas e sem acesso a esse tipo de coisa.

 O programa retorna e já tenho sobre qual vai ser o ponto principal da minha pesquisa, o curso de Letras da Faculdade e seus obstáculos, podendo eu escrever sobre as proficiências para ajudar os alunos com dificuldade e/ou dar perspectivas para alunos mais necessitados. E tudo isso me faz voltar para a época de Colégio. A Princesa do Sul já teve o seu auge nos anos 2000, mas agora é só uma cidade sem nada interessante, de fato, embora haja bons lugares para tirar foto. É até engraçado como quando somos crianças tudo é lindo e maravilhoso, inclusive essa cidade sem sal, mas com muito açúcar e uma pitada de falsidade. Não me entenda mal, eu até gosto da Cidade do Doce, mas as pessoas não colaboram. Ainda me lembro da minha apresentação de poesias, eu era para apresentar a minha, mas foi o maior desastre.

 Bem, a minha poesia falava das histórias de Monteiro Lobato e eu deveria apresentá-la para a classe inteira, isso fazia parte da avaliação, então eu coloquei o meu melhor nela. Infelizmente, a professora fez vista grossa em mim, devido ao fato de que eu dissera que as histórias de Monteiro possuem muitos preconceitos, como racismo, já que os únicos que trabalham na fazenda do Sítio são pessoas negras, fazendo jus à escravidão e ao preconceito racial extremamente forte da época, claro que a abolição da escravidão em 1888 se fez muito tempo antes da publicação do livro de Lobato, entretanto, o fato de haver uma vertente racista com a Tia Nastácia ser a cozinheira, algo muito corriqueiro até o século XIX, traz esse conceito de quem deve trabalhar em coisas que exigem mais força física, como cozinhar ou cuidar o gado, deve ser o negro que vêm bem mais forte depois da abolição, havendo bem mais black faces e ridicularização das pessoas negras.

Claro que a professora não gostou nada, pois, para ela, eu estava tentando “matar a magia” das obras do Monteiro Lobato, em que eu não estava colocando meu empenho no trabalho, de forma a não ter uma mente aberta às histórias, além de apenas ter dito falácias. Levei um zero e a risada de meus colegas como forma de humilhação, justamente pelo fato de a professora se negar a ver problemas em algo que ela acredita com tanto louvor. Se bem que isso acontece até nos dias de hoje, cansei dos causos de homofobia sofridos por mim ou pelo meu namorado, principalmente em nossa época escolar e isso, é um ponto que vejo os cursos de Licenciaturas falhando sempre, que é combate ao preconceito. Sempre que isso é tratado nas Escolas, é de um modo muito superficial e raso, muitas vezes, sendo totalmente sem graça e usando termos já não considerados de bom gosto, como “opção sexual” ou “respeite a escolha de cada um”.

Nem preciso lhe dizer que ninguém escolhe ser Gay ou Hétero, claro que existem ainda pessoas Bissexuais e Pansexuais, que gostam tanto do mesmo sexo, como do sexo oposto, sendo que pansexuais possuem um “leque maior” de pessoas pelas quais sentem atração. Mas isso não é algo que você deva realmente saber, só o fato de haver respeito já é suficiente e quando digo isso, eu não quero dizer “cada um no seu canto”, eu quero dizer para não fazer cara feia ou se sentir incomodado com isso, pois, se você pode viver um romance e ser quem deseja ser, por que isso deixa de perdurar quando a pessoa descobre não ser Hétero? Eu sei que não possuí resposta para isso e, não se sinta incomodado, é complexa e difícil de responder mesmo, embora a pergunta seja simples, contudo, é nas perguntas simples que as respostas mais complexas adormecem, assim como se fossem guardiões de segredos poderosos.

Essa conversa toda me deixa fadigado, acho até que perdi o rumo de meus pensamentos e do meu artigo, principalmente.  Levanto e vou para a janela e, como se alguma entidade superior soubesse de minha tristeza, o céu se fecha e começa a cair leves pingos de chuva lá de cima, em que cada gota caí levemente na minha janela, até começar a descer cada vez mais forte. As pessoas da rua começam a correr, como se fossem se desintegrar caso a água encoste neles. A avenida, de lotada, cheia de vida e correria, agora está vazia e molhada, apenas com carros e ônibus passando, com as suas luzes iluminando todo o alagamento que está lá fora. Canso de ver toda a chuvarada e decido ir na cozinha, pego uns biscoitos recheados e um suco de melancia, volto para a sala e me sento no tapete novamente, aconchegado em meus pensamentos. Decido trocar de canal na televisão e vejo que está passando o filme “Coraline”.

Nesse filme, a menina encontra um mundo reverso, onde existem versões mais divertidas de seus pais e seus vizinhos, porém, todos têm botões no lugar dos olhos. O longa passa a ideia de uma criança que, por ter pais ausentes, passa a viver num mundo de fantasias, mas, no fim, ela vê que não adianta fugir dos problemas, além de encará-los. Mesmo sendo um filme de terror mais “infantil”, a obra ainda me agrada com sua mensagem de superação, afinal, para superar os seus problemas, deve-se encará-los. Mas eu não sou assim. Estou cada vez mais me afogando em meus devaneios ao invés de escrever o tal do bendito artigo ao curso de Letras. É como se eu estivesse me submergindo na água da chuva da minha rua, como se ela não fosse uma poça pequena, mas um calabouço profundo e escuro, cheio de água.

Aparece um gato em minha janela. O bichano está seco, sem nenhuma gota de chuva. As cores pretas com detalhes em branco tornam ainda mais atrativo os seus olhos esverdeados como duas uvas verdes bem maduras e cintilantes, quase hipnotizadores. O felino se senta na minha jardineira feita de cera, com detalhes de rosas brancas no gesso, é uma pena que já está começando a se rachar e o bendito gato ainda fica em cima dela, com o seu ar de superioridade sobre mim. Eu fico encarando o gato e ele me encara de volta, como se estivesse me julgando pela minha procrastinação. Ora essa, agora um gato irá ficar me julgando! Deus, se existe, tenha dó deste ser insignificante! Reviro os olhos e volto para televisão. Não contente, o bichano começa a sacudir a sua cauda, para cima e para baixo, como se estivesse espanando, bem levemente, a minha jardineira.

Me cubro com o cobertor, tentando negar a existência e o julgamento desse bendito gato. De fato, eu poderia ser mais interessado, um namorado mais interessado, um Jornalista mais interessado, uma pessoa muito mais ativa! Entretanto, essas experiências com a Escola me traumatizam até os dias atuais, me tornando numa pessoa que não tem interesse em fazer nada bom, desde que esteja ali, está bom. Desde que o professor goste, está adequado. Desde que existe, tanto faz... Mas, infelizmente, é assim que sou, é isso que me tornei, um idiota que não se importa com o próprio namorado, com a sua carreira, com seus amigos, com ninguém nem nada. De que adianta fazer algo com esforço, entregando-se de alma e coração a um projeto, se não há o interesse de ninguém!? Nenhum ser vivo aparece para me dar a resposta e eu não tenho como entender você, leitor.

Então a chuva, que antes era na rua, se instaura aqui dentro da minha residência, ao invés da água cair das nuvens, elas caem dos meus olhos, pelas minhas glândulas lacrimais. Me encolho mais ainda. A minha chuva parece não passar, como se a inundação agora fosse aqui no apartamento e eu estivesse, finalmente, me afogando seriamente nesse monte de água. Coloco a minha cabeça para fora do cobertor com os meus olhos inchados e cansados de chorar. O gato, como se estivesse satisfeito, se deita na minha jardineira. O maldito estava se divertindo com as minhas lágrimas, como se eu fosse uma criança me afogando numa piscina rasa e algum adulto tivesse só tirando sarro. A diferença é que geralmente a criança morre ou tem algum lapso traumático, já eu só tenho dor no meu coração já congelado e inquieto de frio.

Me levanto com o cobertor enrolado em meu corpo, me deito perto da janela, o bichano me olha com um certo desprezo. Me percorre então a dúvida se eu deveria mesmo estar existindo. Quando você faz tudo errado e deseja desaparecer, sempre tem a questão de que as pessoas que “se importam com você” vão ficar tristes se você morrer. Porém, ninguém te ajuda quando precisa, eles nunca aparecem para checar se você se sente bem nem nada, eles não ligam, até você perder a vida e não poder mais conversar com eles ou contrapor os argumentos dessas pessoas tão incríveis e solidárias. Coloco meus dedos de encontro aos meus lábios, sempre faço isso quando estou incomodado com algum assunto que permanece em minha mente, como essa irritação toda. A rua, agora, finalmente ficou vazia de vez, como se ninguém quisesse ficar perto de mim.

Confesso que sempre fui de me revoltar com as injustiças da vida, mas não sou um exemplo de pessoa extrovertida, muito pelo contrário, sou quieto, odeio grupos grandes e toda hora tenho medo que riam de mim. As vezes imagino que tem alguém rindo de alguma coisa que eu fiz ou estou vestindo, tenho pavor de ficar muito tempo sentado nas mesas da praça de alimentação dos Shoppings aqui da Capital do Rio Grande do Sul, pois sempre parece que alguém passa e começa a rir de mim ou algo do tipo. Depois de tanto tempo sendo desencorajado pela Escola Pública e pelas pessoas à minha volta, tudo que conquistei até aqui é tão artificial, tudo que possuo parece artificial. O meu amor, o meu trabalho, o meu curso, os meus amigos, tudo! Eu estou cansado de todo esse conflito, de toda essa desanimação do Universo para comigo.

Eu poderia criar um artigo dissecando o curso de Letras e apontando os inúmeros erros de docentes que conheço, que a única coisa que fizeram foram me distanciar de meus sonhos, ou de ter algum. Mas isso seria injusto com todos os que se esforçam para dar uma aula, no mínimo, satisfatória, sem contar que todo mundo tem suas vidas e seus problemas, pode ser que o problema na vida pessoal de algum professor esteja sendo refletido em sua vida docente, o que não deveria acontecer, já que o professor tem que conseguir lidar com essa “vida dupla”, no qual ele não pode cruzar os problemas da sua vida pessoal com a sua vida dentro da sala de aula, é como se fosse o Homem-Aranha e seus problemas com a Faculdade, em que ele tenta sempre equilibrar suas responsabilidades de super-herói com a sua vida acadêmica, contudo, sem  conseguir equilibrar tudo.

Uma hora, tudo cai e não podemos fazer nada para o impacto ser gigantesco. O felino agora dorme bem aconchegado no meio dos meus pimentões e tomates. Reviro os olhos e volto para o tapete. Pego os biscoitos que nem cheguei a comer e engulo alguns, tomo o suco e me volto para o filme, onde a garota Coraline descobre que tudo era um plano da vilã que se fazia de mãe dela, pois, assim como a vida, quando tentamos encontrar válvulas de escape nas outras pessoas, sempre vamos nos decepcionar. Seja porque essa pessoa não é boa influência, ou tem problemas em casa ou sei lá, só entendo que não é bom usar as pessoas. Mas eu estou as usando, meu namorado parece só um rótulo e o curso da Faculdade é o que está escrito no rótulo. Termino de comer os biscoitinhos e o de tomar o suco, vou até a cozinha e despejo tudo na pia.

Do nada, enquanto volto para a sala, quase me sentando no tapete de novo, um trovão estrondando tudo, o alto feixe de luz quase me cega. Então percebo que eu estou pensando besteira. Afinal, é apenas um artigo, não é? Bem, a resposta poderia ser “sim, é só um artigo, então sente a sua bunda na cadeira do computador e vá escrever”, no entanto, não é só isso. Eu já estou cansado de tudo isso, de toda essa vida, de fingir que me importo com alguma coisa ou com alguma vida. Eu não me importo nem com a minha, imagina com a dos outros! Eu sou uma pessoa horrível, é claro que eu não irei passar em cima de alguém para conseguir alguma coisa, oposto a isso, eu vou é deixar que ela passe na minha frente. Ou você acha mesmo que eu tenho algum interesse real na vida?

Ligo o meu celular e vejo que já são quase 17:00 horas da tarde e eu não escrevi nada ainda, nem título tem essa baboseira. Eu poderia falar de um monte de coisas boas e continuar pagando de cara gentil e feliz que eu sempre sou ou eu poderia colocar alguns palavrões no meu texto e mandar todo mundo bem longe, ou eu poderia não fazer o texto e continuar nesse tapete, para sempre. Está tudo tão estagnado agora, a televisão passa inúmeros comerciais de eletrodomésticos e coisas inúteis que ninguém se importa. De repente, quando o filme volta a ser exibido, outro estrondo acontece e a minha TV fica fora do ar bem na hora do “final feliz”, talvez seja a natureza me mostrando que não existe final feliz na vida real, mas isso é algo que já estou careca de saber.

A princípio, nenhum problema meu vai se solucionar se eu continuar parado aqui, muito pelo contrário, muitos vão piorar. Mas talvez seja isso mesmo que eu deva fazer, deixar que todo mundo me exclua desse universo, talvez eu largue tudo e vá trabalhar no varejo como os meus ex-colegas do Fundamental lá da parte mais pobre da cidade. Quanto ao meu namorado, não tenho mais motivos para continuar fingindo nada, talvez eu vá levando tudo com a barriga até ele desistir de mim alguma hora. Ou talvez eu não faça nada disso e faça o maldito artigo!

Enfim, isto tudo, além de estar me deixando cada vez mais depressivo, está me deixando incomodado e desconfortável, como se mesmo cheio de coisas peludas, ainda estivesse com um sabre no meu estômago. Bem, acho que já deu a hora de vocês dois, afinal, nem você, meu caro leitor, nem o gato são reais, vocês só fazem parte de minha imaginação e não preciso mais da presença de vocês aqui, então, podem evaporar daqui agora, pois preciso de um momento sozinho!


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