Nunca mais escrita por Laris


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Lembranças de um passado mais ou menos distante.



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Abda

Nome engraçado. Ele costumava ter significado. Significava ligações aos fins de semana, só porque era ilimitado (o tempo era mesmo infinito). Significava beijos de despedida de todos os sabores e brincadeiras desse e daquele lado do telefone só pra não ter que desligar ainda. Posso te ligar amanhã? Pode, a gente respondia. Ela era minha BFF antes de eu saber que era possível ter uma BFF, alíás ela seria a pessoa a me apresentar o termo, porque sempre foi a mais informada de nós.

Queria ter mais lembranças, queria ter mais carinhos. Tínhamos algo que merecia ser guardado, mas eu nunca fui boa de lembranças. Me pergunto se ela sabia que eu não era boa de lembranças. Eu só lembro o quanto ela estava lá, tão persistente e presente, em cada um dos anos que a gente teve. Eu sei o quanto ela era importante porque ela ainda tá aqui dentro depois de tanto tempo, então ela devia ser. Com 11 anos eu sabia o quanto ela era importante.

Foi numa quinta feira. Na verdade aconteceu num domingo, mas a quinta feira é importante. A gente se encontrou na rua por acaso, porque a vida é cheia de acasos. Qual a coisa mais clichê que eu poderia dizer? Que ela era jovem e cheia de vida? Ela era tão jovem e tão cheia de vida. Ela brincou comigo nesse dia. Não, não, ela zombou da minha cara. A situação foi banal, e não lembro se fiquei brava na época, mas hoje eu rio. Deve ter sido engraçado. Eu precisei de oito anos pra perceber o privilégio que é a minha última lembrança dela ter sido sorrindo.

E então o domingo. Uns familiares indo visitá-la no hospital por causa de uma recaída de pneumonia. Só parecia algo tão simples. Pneumonia não era um resfriado que deu um pouquinho errado? Eu perguntava pra mim mesma enquanto via nos olhos de uma tia as lágrimas que derramo agora. Não, ninguém entendia o quanto era simples. Eu só acho que não fazia sentido. Mandei uma mensagem pra ela; eu pedi que avisassem que ela só precisava se recuperar logo pra gente brincar de novo. O recado era mais pra minha tia (que não entendia o quanto era simples) se acalmar do que pra ela, o que fez sentido, porque ela não ouviu o recado.

Aí eu fiquei com medo de telefones. Porque o telefonou tocou e de repente ela não estava mais lá. Primeiro a minha mãe chorou. Então ela devia estar em coma, né? Isso era perigoso, mas não o fim, porque o fim é incompreensível. As pessoas voltam do coma. Mas então o telefone desligou e ela não ia voltar. Costuma-se dizer que a sensação é de perder o chão. Mas eu lembro de sentir o chão, firme e sólido, sob os meus pés. Tão sólido como um murro. Tão sólido quanto só a realidade pode ser. Nada nunca me pareceu tão real, nada nunca me pareceu tão afirmativo da vida - porque nada realça a vida como a morte. Nada nunca foi tão certo e inalterável. Inexorável. É a maior palavra que eu aprendi sobre a morte, a única que eu sei com certeza. Com a convicção do que nunca muda, não importa o quanto você queira ou espere ou sinta. Nada como acreditar no absurdo de não existir mais quem estava bem ali, há apenas alguns segundos e minutos e dias atrás. A realidade surreal e ainda assim verdadeira, uma afirmativa e um desafio em si mesma.

Eu chorei bastante. Foi muito, na verdade. Porque acho que chorei afirmação, compreensão. Eu chorei o peso da realidade, o peso das consequências de nunca se poder voltar atrás. Nunca um adulto esteve tão errado (tá, esteve sim) quanto aquele que afirmou que eu chorava porque "não teria mais com quem brincar agora". Eu tive muitos amigos depois dela. Não, chorar era a reação química despertada pela descoberta pura e clara que eu acabava de fazer: nunca mais.

Essa sensação de finitude me impediu de ir ao enterro. O medo da despedida não resiste a sete palmos. Preferi o velório. Foi estranho. Alguém acariciou o corpo dela, tão simultaneamente santo e profano. Santo como memória; profano como invólucro intolerável de uma essência já desvanecida.

Os ritos adequados e o período de luto passaram. Fui chamada de insensível depois. Acharam que não chorei o suficiente nos meses seguintes. Porque chorar minha tristeza me fez me agarrar à minha descoberta em aceitação. Porque minhas lembranças dela passaram de lágrimas (tão perceptíveis) a pequenas recordações. Minhas recordações eram a afirmação de uma antítese, a comprovação da viva existência na minha memória de alguém que a realidade insiste em negar. Aprendi muito sobre a morte, muito mais do que podia colocar em palavras na época. Não pensei tanto sobre dor, sofrimento, tragédia ou destino. Eu pensei na cessação, no fim, na não-existência. Minha maior lição sobre a morte é o Nada.


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Notas finais do capítulo

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