O Abismo escrita por Lua Calixto


Capítulo 1
O Abismo




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O Abismo

 

A noite caía sobre a cidade, as luzes se acendiam revelando um brilho branco que tornava o cinza das construções ainda mais cinza. Não havia o amarelo do sol ou o azul do céu, apenas o branco das luzes no concreto.

 

Fim do expediente. Acabava o turno de trabalho, acabavam as aulas, era o horário recreativo de todos antes do toque de recolher.

 

Fazia o caminho longo para chegar em seu dormitório, gostava de olhar o mar antes de voltar para o cinza da cidade. Era o lugar mais bonito que conhecia, a beira da cidade no limite do penhasco, e abaixo as pedras e a água. Era tudo o que conhecia, o cinza, o mar e os dias.

 

Aquela era a vida normal de todos, as mulheres grávidas eram levadas ao centro médico onde ficavam internadas até 3 meses depois de terem seus filhos, amamentarem e voltarem para suas rotinas habituais. As crianças eram criadas no mesmo centro por profissionais até completarem 10 anos, quando eram deslocadas para um dormitório onde seria sua casa por mais 10 anos, tempo no qual frequentavam as escolas e se especializavam em alguma função na sociedade.

 

Olhava para o caminho a frente e percebia o grupo de rapazes indo em sua direção. Seu corpo reagia sabendo o que estava por vir. Olhava para trás, estava cercada.

 

— Nem pense em correr. - Dizia o rapaz mais alto jogando um caderno em sua frente. Seu diário, onde ela guardava alguns de seus pensamentos, não todos, sabendo que um dia poderiam achá-lo.

 

Uma desconforto horrível percorria seu corpo.

 

— "Por que não posso ser feliz?" - Debochava outro rapaz fazendo uma careta. - Porque você é uma aberração.

— O que vocês querem? - Ela respondia com medo.

— Você suja a nossa casa. Você suja a nossa escola. - Implicava outro rapaz se aproximando.

 

Ela chorava.

 

— Achei que você teria aprendido a se comportar da última vez. - Dizia um dos garotos agora segurando o braço dela. Ele era forte, sua mão marcava o braço dela.

— Eu não fiz nada de errado! - Ela gritava tentando se defender.

— Mentira! A gente sabe dos seus "segredinhos".

— Me solta! - Ela tentava andar, mas o rapaz a segurava mais forte. Os outros se aproximavam a encurralando. Sentia o vento soprando sobre o mar até as suas costas.

— A gente devia levar você pra polícia, sabia? - Eles ameaçavam. - Mas nós somos legais, a gente tentou te dar uma chance. Mas você desrespeitou a gente. Você desonra a nossa escola.

— Me deixem em paz! - Ela chorava em desespero.

 

O rapaz dava um tapa em seu rosto.

 

— A gente devia resolver isso antes que saibam dessa história. - Comentava outro dos rapazes. Eles se olhavam em concordância.

— Eles vão fechar a nossa escola se souberem disso. - Dizia o rapaz mais forte para ela. - Eles vão nos tirar de casa e separar todos nós. E vai ser tudo culpa sua.

 

Ela levava as mãos ao rosto, sabendo que era verdade.

 

— Mas eles não vão descobrir, não é rapazes? - Ele ameaçava.

— Não! - Ela tentava gritar em desespero, enquanto eles seguravam os braços dela. Ela se debatia.

— Você nos obrigou a isso, aberração!

 

Ela gritava enquanto os rapazes a arrastavam para mais perto da beirada. Sentia a terra sob seu pé se tornar mais áspera e íngreme. Olhava para baixo lutando para se prender ao chão. Não tinha forças para lutar, apenas podia observar e sentir enquanto a jogavam do penhasco. Sentia o vento durante a queda, e então nada.

 

—----

 

Abria os olhos confusa. Não sabia onde estava, apenas sentia seu corpo dolorido e sabia que não estava em seu quarto. Estava sonhando? Olhava para o lado e seu coração acelerava por não identificar o local. As paredes cobertas por algum tipo de papel tinham um visual estranho. Não era cinza ou branco, era azul, mas não como o céu, diferente.

 

Se sentava no colchão macio, apoiava os pés no chão de madeira, e sentia um desconforto estranho. Sabia que estava com fome, mas enjoada demais para comer. Seu peito doía, sua cabeça doía, sentia como se caísse de um lugar alto. Teria aquele sonho sido real?

 

Se levantava olhando a decoração no aposento. Tinha uma cama, tinha alguns móveis, estava decorado como um quarto, era um quarto, diferente de todos que já havia visto, com mais cores e conforto.

 

Abria a porta e se apoiava na lateral da parede. Olhava pelo corredor a sala e caminhava até lá com alguma dificuldade.

 

— Bom dia. - Dizia uma voz suava vinda do que parecia um sofá. - Você está bem?

— Quem é você?

— As pessoas lá de cima dizem que eu sou uma bruxa... - Ela respondia rindo. Se levantava do móvel olhando para ela, era uma moça adulta, deveria ter seus 30 anos, cabelos escuros preso em um coque com fiapos espalhados pela cabeça. - Você acredita nisso?

— Bruxa? - Ela respondia assustada. - Eu não acredito em histórias de terror.

— Isso aqui diz o contrário. - Implicava a bruxa segurando o diário.

 

Ela percebia que não era um sonho, foi real. Havia sido jogada ao mar, mas não se sentia morta.

 

— Tudo bem, não precisa ter medo. - Continuava a bruxa caminhando em direção a ela. Colocava o diário em sua mão.

 

Só então notava que não estava vestida, se enrolava apenas no lençol branco com o qual acordara.

 

— Eu não…

— Não se explique. - Cortava a moça de cabelos bagunçados. - Nós não estamos na cidade, eu não vou contar pra ninguém.

— Onde eu estou?

— Na minha casa. Na minha "toca", talvez.

 

Ela estava confusa. Não sabia o que pensar, não sabia o que sentir, e não sabia como agir. Segurava o diário molhado com uma mão e o lençol com a outra. Sentia um pouco de frio, mas o sangue fluía por seu corpo o aquecendo.

 

— O pessoal da outra cidade diria que é "invasão de privacidade" ler o seu diário, mas eu precisava saber quem você era pra deixar você aqui, espero que não se importe.

— Privacidade? - Ela questionava confusa. Aprendera que a palavra só era usada para falar do corpo nu de uma pessoa e de suas necessidades biológicas.

— Pra ser sincera, eu nem pensei que seria o seu diário pessoal, achei que fosse um livro qualquer vindo de cima, mas estou surpresa com você. - A bruxa continuava. - De uma forma positiva.

 

Pensava em questionar a moça para entender o que estava acontecendo. Não conhecia a palavra "sincera", mas não precisava entender aquilo para saber que a bruxa sabia de seus segredos.

 

— Eu deveria chamá-la de Alice? - Questionava a bruxa sorridente.

— Eu... - Ela estava confusa, muito confusa. Estava sonhando? Sentia que a moça não queria lhe fazer mal, todos queriam, mas ninguém nunca a havia chamado assim antes.

— Tudo bem. - A bruxa recuava alguns passos. - Você pode pegar qualquer roupa no armário do quarto, eu vou preparar algo para você comer.

 

Ela caminhava de volta para o cômodo onde acordara. Fechava a porta de madeira e caminhava até o armário. Deixava o lençol cair no chão e desviava o olhar de seu corpo nu. Pensava em como havia tirado suas roupas. Teria sido a bruxa? Teria ela lhe visto nua? Se livrava dos pensamentos tentando focar na tarefa.

 

As roupas em sua frente eram diferentes do que costumava ver. Cortes diferentes, tecidos diferentes, cores diferentes. Poderia ser detida se fosse vista vestindo qualquer uma delas, mas precisava vestir uma daquelas ou continuar nua.

 

Escolhia dentre as peças uma camisa cinza e uma calça azul marinho de um tecido macio e quente. Parecia um pijama pesado, dos que usaria em dias frios.

 

Saía do quarto e caminhava até o que deveria ser uma cozinha. cruzava os braços tentando se esconder enquanto a bruxa a olhava em julgamento.

 

— Por que você tem essas coisas em seu armário? - Questionava nervosa.

— Porque eu gosto delas. - A bruxa respondia pacífica. - E aqui nós podemos vestir o que quisermos. Isso foi o que você quis?

 

A bruxa fritava alguns ovos no fogão, parecia gostar de fazer aquilo.

 

— Eu estava com frio. - Respondia confusa.

— Vocês da cidade são muito estranhos. - Ela ria. - Você sabe a diferença entre querer e precisar?

— É claro que sei! Querer é um impulso mental e precisar é um impulso biológico. Aprendemos isso antes de ir para a escola.

— Bem, é um jeito de se dizer. Você conhece a palavra "liberdade", Alice?

— Por que está me chamando assim? - Ela respondia atordoada.

— Achei que você quisesse ser chamada assim.

— Eu não... Esse não é o meu nome.

— Me desculpe, como você quer ser chamada então?

— O meu nome é…

— Não, não quero saber como te chamam. - Cortava a bruxa apagando o fogo e despejando os ovos fritos em um prato. - Eu vou tratar você como você quiser ser tratada.

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que você não precisa se preocupar em ser presa, nem em apanhar, nem em estar errada. Não existe certo e errado aqui, não estamos na sua cidade.

— Eu gosto desse nome. "Alice". Mas ele não serve para mim.

— Isso não é verdade. Qualquer nome que você quiser vai lhe servir.

 

A bruxa levava o prato para um balcão próximo e indicava para a menina se sentar ali. Abria a geladeira e retirava um suco de lá, o colocava na mesa.

 

— No seu livro você dizia que queria se chamar assim, você estava mentindo?

— Não, mas…

— Alice é uma garota que gosta de observar as cores e contar histórias, essa não é você?

 

Ela tentava segurar o choro. Estava com medo, mas de alguma forma se sentia segura.

 

— Você pode ser Alice se quiser. - Dizia a bruxa, calma. - Eu juro.

 

Ela olhava para a bruxa, convencida. Um juramento era algo sério para as pessoas da cidade, podendo ter consequências severas se quebrado. Ela acenava com a cabeça, com os olhos molhados. Estava preocupada, não acreditava que aquilo poderia acontecer.

 

— Você jura? - Ela questionava ainda incerta.

— Sim, eu juro. Mas você precisa se alimentar.

 

—----

 

Alice se olhava no espelho por alguns minutos. Sentia um sentimento que acreditava ser conforto ao olhar para si. Já faziam alguns dias que acordara na casa da bruxa, que agora chamava de Sol. Tentava se adaptar a viver sem as leis que aprendera desde sempre.

 

Não precisava acordar em um horário específico todo dia, não precisava ir para a escola, não precisava fingir ser um deles. Podia fazer o que queria sem consequências, como em um sonho lúcido.

 

Aprendia novos conceitos com Sol, descobria sobre liberdade, personalidade e individualidade. Coisas que para a bruxa eram direitos básicos, para Alice era descobertas maravilhosas e difíceis de se entender.

 

Se vestia com um vestido curto amarelo e meias brancas, era uma das roupas mais confortáveis que já vestira. Tentava entender o conceito de beleza, uma mistura de querer, gostar e observar. Não ouvia sobre isso na cidade, mas a bruxa fazia um ótimo trabalho tentando explicar.

 

Chegava na sala e observava a garota sentada no sofá. A aprendiz de Sol, Mia. Tinha um cabelo grande e ruivo, e Alice sabia que a menina se encaixava no que ela considerava bonito - gostava de olhar para ela.

 

— Alice, essa é Mia, de quem eu te falei ontem. - Dizia Sol apresentando as garotas.

— Bom dia. - Respondia Alice nervosa. Aquela era a primeira pessoa que via além de Sol desde que fora arremessada do abismo.

— Bom dia, Alice! - Cumprimentava a garota energética. - Você é a garota que caiu do céu? - Ela ria.

— Sou. - Alice tentava se acostumar com o humor. Não que lhe fosse um conceito estranho, mas não estava acostumada com pessoas se divertindo.

— Eu cai do céu também, você não está sozinha.

— Você caiu?

— Você já ouviu falar sobre a Cidade da Luz? - Perguntava Mia para Alice.

— Não... É um lugar parecido com onde eu nasci?

— Eu não sei, como é a sua cidade?

— Cinza, limpa e arrumada. - Respondia quase como um mantra, como havia sido ensinada.

— Então não é um lugar parecido.

— Alice não sabe muito sobre as coisas além da cidade dela. - Interrompia Sol. - Eles são criados apenas para trabalhar para a cidade.

— Eu já conheci gente de lá, mas você... - Dizia Mia olhando para a garota. - ...Você parece diferente deles.

— Eles também acham isso. - Ela respondia pensativa.

 

Alice tentava se acostumar com o mundo além da cidade. Podia compartilhar seus pensamentos com alguém sem se preocupar, e por mais estranho que isso fosse para a menina, era divertido.

 

— Eu não gosto de lá. - Continuava Alice, receosa. - Sempre pensei em fugir, mas achava que o lado de fora seria pior.

— E você quer voltar?

— Não, se eu voltar eles vão me levar para um centro de reabilitação…

— Você cometeu algum crime? - Mia perguntava assustada.

— Não, mas eu estava sendo reprovada em comportamento social.

— Comportamento social? É algum tipo de matéria?

— Vocês não estudam isso na cidade de vocês? - Questionava surpresa.

— Não que eu saiba, parece algo estranho de se ensinar em um escola.

— Para mim é estranho pensar que não ensinariam isso…

— E o que vocês aprendem com isso?

— Aprendemos a interagir com as outras pessoas e a nos comportar em cada ambiente.

— Você parece um pouco velha pra isso, quantos anos você tem?

— 16. - Respondia Alice confusa. - Como assim "velha"?

— Não deveria ser algo ensinado para as crianças?

— Sim, ensinam para as crianças e continuam avaliando a todos até os 20 anos.

— Sua cidade é muito estranha!

 

Alice passara toda sua vida achando que ela estava errada em ser diferente, e ouvir alguém dizer que sua cidade era estranha dava um certo alívio para a menina.

 

Sabia que o lugar onde nascera não era tudo o que existia, mas nunca aprendera sobre nenhum outro lugar exceto de que eles não eram tão desenvolvidos. Mas agora Alice estava curiosa. Talvez os seus professores estivessem errados, talvez o lado de fora realmente fosse melhor.

 

— E como é aqui fora? - Perguntava pensativa.

— Aqui fora não existem leis ou regras... - Respondia Mia olhando para Sol. - E isso assusta as pessoas, por isso elas se fecham nas cidades.

— E você gosta disso? Sempre me disseram que o caos é perigoso…

— Caos? Eu não acho que aqui seja o caos. É confortável pensar que não existe certo ou errado, todos aqui estão apenas... Sendo.

 

—----

 

Alice olhava para o céu azul através das folhas da árvore. Já fazia alguns meses que morava com Mia na casa próxima ao lago. Não era muito longe do penhasco onde sua antiga cidade ficava, mas era longe o bastante para não se preocupar com aquilo.

 

Seu cabelo já crescia livre, sem a rotina de cortá-lo no mesmo tamanho que todos a cada 20 dias. Aprendia a ter seus próprios gostos, decidia sua cor preferida, sua fruta preferida e o que vestir.

 

Pensava sobre como era difícil não ter uma rotina, tinha todo o tempo livre que poderia querer, mas isso começava a incomodá-la, sempre com a sensação de não estar fazendo nada.

 

— Mia, o que você fazia antes de vir para o lado de fora? - Perguntava curiosa para a amiga.

— Eu estudava, assim como você.

— Estudava para o que?

— Eu não sei, lá as pessoas podiam decidir o que fariam depois de terminar a escola. Mas eu nunca decidi.

— Parece difícil ter que tomar uma decisão dessas... Onde eu nasci você tem um trabalho definido antes de ser colocado em alguma escola, e lá você aprende a sua profissão até se formar. - Alice caminhava o olhar pelo cenário com um misto de saudades e alívio. - Eles achavam que eu seria uma boa arquivista, sabe? Cuidando dos documentos e coisas do tipo. Eu sempre tive medo de que eles estivessem errados, mas era muito raro isso acontecer.

— Arquivista? - Mia ria em descrença. - Você definitivamente deveria ser uma artista. Eu pensava em ser uma, mas não tinha nenhum talento.

— Sol já havia me contado sobre artes e artistas mas não existia isso de onde eu vim. Qual é a utilidade de criar coisas apenas por criar?

— Bem, na minha cidade nos ensinam que a arte é uma forma de aproximar as pessoas, transmitir experiências e sentimentos, motivar a gente.

— E qual o motivo de achar que eu deveria fazer isso?

— Você fez isso mesmo sem saber. O seu diário é uma forma de arte. Você passava as suas experiências mesmo sem saber.

— Isso não ajudou a aproximar as pessoas. - Alice respondia confusa.

— Isso fez com que Sol gostasse de você. Empatia, ela sentia que podia confiar em você.

— O meu diário fez com que me jogassem do abismo.

— Também. Ele criou sentimentos diferentes em pessoas diferentes.

— Eu seria detida por isso, por incitar a violência.

— Não na minha cidade, lá eles iriam gostar de você.

 

Mia ficava pensativa olhando para Alice. Via nela algo que queria ter em si, uma mente sempre procurando por coisas novas e que lutava contra as regras. Era um sentimento que comparava com inveja, e tentava afastar de sua mente.

 

— Eles não me prenderiam se eu vivesse lá? - Perguntava Alice encantada.

— Claro que não, eles iriam te ensinar a transformar seus pensamentos em algo que as pessoas fossem querer ver.

— Parece melhor do que cuidar de documentos…

— Você ia gostar de lá. - Mia comentava pensativa.

— E por que você saiu?

— Eu... Eu não era como eles então... Fui embora.

 

Alice pensava em perguntar mais para a garota, mas percebia que Mia estava triste. Havia aprendido a sempre tirar suas dúvidas quando crescera, mas do lado de fora da cidade entendia que as pessoas nem sempre se sentem bem em falar, e se importava com isso.

 

— Eu poderia ir lá? - Perguntava animada.

 

Mia se espantava por um momento, mas esperava por aquilo, Alice era curiosa e sonhadora, e certamente iria querer ver a tal cidade. Sabia que a qualquer momento poderia levar a garota para lá, mas não estava pronta para ouvir aquilo.

 

Já estava a mais de dois anos vivendo no lado de fora apenas na companhia de Sol, e agora tinha a presença de Alice ao seu lado. Gostava da amiga, sentia uma ligação com ela que não podia sentir com Sol, por mais que gostasse de sua professora. Sentia mais que uma ligação de carinho e cuidado, sentia que ambas compartilhavam de uma história parecida. Sabia que se Alice gostasse da cidade, não iria querer sair, e perderia sua companhia.

 

—----

 

As árvores se curvavam criando um grande túnel na entrada da cidade. O chão de tijolinhos de pedra se enfeitava com folhas e flores caídas. Era um lugar colorido, como Alice nunca vira antes. As pessoas caminhavam com roupas animadas em pequenos grupos ou sozinhas, e então a menina percebia que estava em um lugar completamente novo.

 

— As pessoas parecem tão felizes aqui! - Dizia para a amiga que andava de mãos dadas com ela.

— Elas estão em seu tempo livre, se divertindo. Não são todas felizes a todo momento. - Respondia Mia preocupada.

— E o que você fazia no seu tempo livre?

— Eu ia para um parque com alguns amigos... - Um sentimento incômodo percorria o corpo dela. - E ficávamos conversando.

— Como você conversa comigo?

— Sim, apenas... Sobre coisas diferentes.

— Parece tão melhor do que o tempo livre na minha cidade...

 

Alice se lembrava de como as pausas em sua cidade eram quase sempre monótonas. Ela aproveitava o tempo apenas para escrever sobre seu dia e seus pensamentos, e sonhar com coisas que nunca veria. Observar pessoas felizes juntas fazia Alice querer participar daquilo.

 

As meninas caminhavam pelo cenário encantador, chegando em uma coleção de prédios que rodeavam uma grande praça. Eram construções com muros coloridos e passagens decoradas, algo que Alice nunca vira antes, estava acostumada com o cinza e a limpeza impecável.

 

— Eu morava por aqui. - Dizia Mia nostálgica.

— Que lugar incrível para se morar!

— Eu sabia que você ia gostar. Isso nas paredes... - Ela apontava para as pinturas coloridas. - Isso é arte. E as pessoas gostam de olhar, se divertem com isso.

— Aquela parece com você! - Dizia Alice apontando para um dos desenhos.

 

Era a pintura de uma jovem ruiva com asas, lágrimas em seus olhos e um espaço em branco onde deveria ser seu coração. Mia observava a pintura e se emocionava, tentava disfarçar as lágrimas mas percebia que Alice já estava a encarando.

 

— Por favor, não pergunte. - Dizia Mia entre as lágrimas. A menina segurava a mão de Alice e virava as costas para o desenho, seguindo na direção oposta.

— Eu não vou.

 

As duas caminhavam em uma subida e logo chegavam ao que parecia um mirante. Uma pequena praça no alto da cidade onde podiam ver o mar abaixo delas. Alice sentia o ar frio e se lembrava de seus passeios por sua antiga cidade.

 

As meninas se sentavam em um banco sob a sombra de uma amendoeira, observando o sol brilhar nas ondas do mar abaixo. O vento assoprava os cabelos para o lado, uma sensação que Alice ainda tentava se acostumar, mas gostava dela.

 

— Esse lugar tem uma história. - Dizia Mia um pouco inquieta.

— Eu gosto de histórias.

— É sobre uma garota que vivia por aqui. Você me lembra um pouco dela, sonhadora e estranha ao próprio mundo…

— Por que ela era estranha?

— Ela sentia que não era capaz de fazer o que as pessoas esperavam dela. Achava que havia algo faltando dentro dela, algo que todos tinham, menos ela. Mas ela ignorava isso. Tentava viver os dias normalmente como se nada estivesse errado.

— E o que aconteceu com ela? - Alice ouvia a história, atenta.

— Um dia ela conheceu uma pessoa, alguém especial, parecida com ela. A garota se aproximou dela e logo se tornaram amigas, como eu e você, mas diferente. Ela sentia algo que não sabia explicar, e achava que talvez aquele sentimento fosse o que ela dava falta esse tempo todo. Começava a se dedicar mais a fazer as coisas, sempre querendo agradar essa pessoa especial, e achava que poderia atender qualquer coisa que a pessoa esperasse dela, sem limites. - Mia sorria, olhando distraída para as nuvens. - E por alguns anos sentiu como se fizesse parte deste mundo também, como se não fosse uma estranha. Mas… - Os olhos se enchiam de lágrimas de novo. Alice ouvia sua voz suave quase sem piscar. - Um dia essa pessoa especial descobriu que era especial, e isso a incomodava. Aquele tipo de atenção era amor, mais do que uma amizade, uma paixão, mas para as pessoas da cidade aquela paixão era algo completamente estranho, e a pessoa não queria fazer parte daquilo, estava com medo do que os outros iriam pensar, com medo de ser afastada de todos, então… Ela foi embora.

 

Mia secava as lágrimas com o verso da mão, e Alice continuava a olhá-la, curiosa. Tocava no rosto da amiga gentilmente tentando remover de sua bochecha a pequena gota d’água que escorria.

 

— Mas ela voltou? - Perguntava ansiosa.

— A garota achava que poderia ser só uma reação pela surpresa, e que a sua amada voltasse logo, afinal, elas eram melhores amigas. Entendia que poderia não ser como ela imaginava, talvez a pessoa de quem tanto gostava não quisesse aquele romance, mas não se importava, queria apenas sua amiga de volta. E ela esperou os dias, esperou as semanas, e procurava pela pessoa que mais importava para ela. Mas quando finalmente a encontrou novamente, tudo o que recebeu foi um pedido para que nunca tentasse vê-la novamente. E a garota, incrédula, não podia fazer nada além de aceitar o pedido. Então ela caminhou até aqui, olhou para essa mesma vista e chorou. Chorou com o desespero de perder tudo o que a motivava a ser quem era, perder tudo o que a fazia feliz, e com medo de voltar a sentir o vazio que sentia antes… Ela pulou.

— Ela… Ela se jogou no abismo? - Alice dizia espantada, tocada pela história.

— Não fique triste por ela. A história se espalhou pela cidade, e logo as pessoas começaram a se culpar por aquilo. Aquele amor não era tão estranho, afinal. Acontecia com frequência pela cidade, escondido, todos com medo. E percebendo que não estavam sozinhos, aos poucos pararam de se esconder, e aqueles que julgavam acabaram se tornando a minoria. A garota estava sofrendo mas sem saber, seu amor libertou muitos outros.

— Mas ela não merecia ficar sozinha! Ela não fez nada de errado!

— É só uma história, Alice. - Dizia Mia tentando desviar os sentimentos. - A garota se tornou uma mártir para a cidade. Usam a imagem dela como um símbolo de liberdade, aceitam a todos como são e acham que é um pedido de desculpas a ela… Mas ela nunca os perdoou.

— E como você sabe disso?

 

Mia olhava para Alice, reparando em como a garota parecia mais livre, mais feliz e viva. Percebia o encanto da amiga pela cidade, e pensava em sua história.

 

— Você gostaria de morar aqui, não gostaria? - Dizia Mia mudando de assunto.

— Eu poderia aprender a deixar as pessoas felizes?

— Sim, você poderia estudar o que quiser aqui.

— Eu gostaria.

 

Em um movimento silencioso e rápido, Mia colocava uma chave na mão de Alice, observando a expressão curiosa da garota.

 

— Essa é a chave da minha casa. Você pode ficar com ela, só vai levar alguns dias para registrar você na cidade e…

— Você… - Alice tremia, ansiosa. - Você quer que eu fique aqui?

— Não é isso que você quer?

— Eu não quero ficar em um lugar que te machucou!

— Não se preocupe comigo, Alice. - Mia sorria. - Eu encontrei a minha felicidade do lado de fora, sem regras, sem objetivos. Mas você tem tudo para ser feliz aqui.

— Mas eles…

— Eles precisam ouvir a sua história, você não está sozinha.

 

Alice pensava em como chegara ali. Fora banida de sua cidade por não seguir o que era considerado normal. Nascida como um menino, criada em uma linha de produção para não sentir, apenas aprender, produzir e servir. Percebia que não se identificava com aquilo, e mesmo sem conhecer o conceito de personalidade, acabava se tornando diferente dos demais. Não gostava de seu corpo, não gostava de seu nome, e não gostava de sua rotina. E então era eliminada por não se encaixar com os outros.

 

— E se eles não me aceitarem? - Dizia Alice com medo.

— Eles vão. Eles precisam disso. - Respondia Mia, chorando. - E quando você for feliz aqui, eu aceito as desculpas deles.



— Lua Calixto


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