Poente escrita por Desdemonia Lucitor


Capítulo 1
Inverno




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O inverno congelante acolhia em seu cobertor branco o gramado que outrora reluzia em um esplendor verde esmeralda. Folha por folha, fruto por fruto, não restava qualquer vestígio vivacidade no mundo lá fora. Apenas um fator excedia à regra.

Trazendo vida e tingindo a neve de rosa e carmim, a jovem que cruzava o jardim, erroneamente creditado como abandonado, não fazia ideia do par de olhos vermelhos que miravam-na de longe, em cada uma de suas frequentes visitas.

Assim como os dias definhavam e reviviam cada uma das estações, vê-la em sua propriedade era como uma lei da natureza, imutável.

Na primavera as flores dos seus jardins vinham ao mundo unicamente com a missão ornamentar os cabelos da moça e perfumar-lhe o colo.

Durante o verão, seus vestidos eram sempre vivos e os cabelos esvoaçavam-se no ritmo da brisa quente que insistia em competir com seu espírito.

O outono vinha para que brincasse entre as folhas carmesins e repousa-se sob o leito da agonia das árvores ao seus enudeceres.

Mas o inverno… Aquele que a assistia de longe, por trás das grossas janelas escuras e empoeiradas, jamais havia encontrado racionalidade capaz de justificar-lhe se afastar do abrigo de seu lar.

O inverno era a grande incógnita a perturbá-lo. Segundos, minutos, horas e dias… Tal mistério lhe tomava conta do imaginário durante todo o tempo infinito que tinha disponível, tendo trégua em um único e estimado momento. Recorte momentâneo que o fazia desprender-se de qualquer que fosse seu lamento para deslocar-se até a mesma janela e observá-la alimentar seus questionamentos um pouco mais.

Sasuke assistiu em silêncio, mais uma vez, a silhueta esguia da moça em retirada. Seus movimentos delicados, mesmo tendo a neve lhe demandado esforço, faziam seus cabelos irem e virem de uma forma bela, quase como o desprender das plumas do dente de leão.

A noite se aproximava, fazendo a cidade tomar a mesma cor que tinha sua alma. Afastou-se dos umbrais em que se recostava e se preparou para a escravidão ao qual era ligado pela eternidade. Vítima do mesmo mal que causava. Sua garganta estava seca e seus olhos ardiam, exigindo que apaziguasse a sede que a cada minuto se tornava pior.

Passou em silêncio pelos incontáveis aposentos, sem ter a quem anunciar a partida. Vestido em um terno negro impecável, jogou a capa grossa por sobre os ombros e caminhou sem pressa em direção às luzes da cidade que sem qualquer intenção abria suas ruas para desavisados e predadores.

— Sasuke Uchiha. — Ouviu seu nome ser pronunciado como se as sílabas lhe apetecesse o paladar.

Somente outro amaldiçoado saberia seu sobrenome e ele confirmou tal desgraça melancólica ao se virar e cruzar seus olhos com aquele que outrora havia sido seu companheiro de lamento.

— Suigetsu Hozuki. — Respondeu sem qualquer emoção em sua fala.

— Venha, me faça companhia para uma bebida.

Os dois homens pálidos caminharam pelas calçadas com graça, deixando o tilintar do solado do calçado emitir um lamúrio abafado contra o concreto. Gotas de orvalho se cristalizavam nas bordas de telhados e janelas, tomando a forma de pequenas estacas de gelo. Mórbida irônia.

— Pensei que estivesse morto. — Sasuke sorveu o líquido âmbar sem pressa, apreciando o toque acetinado lhe agraciar a garganta. — Não o vejo a pelo menos cinquenta anos.

— Quisera eu estar morto diante da tortura de atravessar a eternidade. — O vampiro loiro comentou. Brincava com os cubos de gelo em seu copo, sem pressa. — A verdade é que cometi um pecado ainda maior que me alimentar de um vivo. Se já não me bastasse estar preso à vida pelas amarras do inferno, agora outras algemas me foram postas, sendo elas mais fortes que qualquer maldição.

Sasuke lançou-lhe um olhar silencioso, permitindo que o outro continuasse sua narrativa. Havia tanto tempo que não conversava com alguém que chegava a apreciar ouvir as lástimas de um outro alguém.

— Eu me apaixonei.

— Já se apaixonou tantas outras vezes em todos estes séculos. — Sasuke comentou. Tinha o olhar púrpuro do outro sob si, vívido.

— Mas não é somente isso, caro amigo. Me apaixonei ao ponto de cometer uma loucura. Arrastei a pobre alma da donzela ao inferno que tanto praguejei por pertencer. — Suigetsu disse com pesar. — Acometida por uma praga, fui até seu leito lhe prestar meus pesares e não suportei vê-la moribunda.

— Atirou-a ao inferno.

— Por egoísmo não fui capaz de deixá-la partir e agora sofro todas as noites por vê-la chorar e sofrer por todos aqueles que seguiram o ciclo da vida. — Suigetsu torceu os lábios. O olhar distante. — Karin, o nome da mulher que condenei à eternidade e que chamo por minha esposa.

Em silêncio, Sasuke não pôde evitar que seus pensamentos disparassem rumo ao mar de cabelos cor-de-rosa que coloria seu jardim mais do que qualquer flor. Os olhos que roubavam a autenticidade das esmeraldas, a tez delicada e as bochechas coradas… Teria sido capaz de tamanho egoísmo, se tratando da bela jovem que invadia seus jardins?

Já colecionava décadas demais para saber o significado de tais pensamentos, tanto que já nem se esforçava mais para negar o afeto que trazia brilho aos seus olhos. Se pegava tardes a dentro imaginando e calculando milhares de planos para poder tocá-la ao menos uma vez. Se ao menos ainda fosse capaz de respirar, talvez se contentaria em ter nos pulmões o mesmo ar que ela.

Doce jovem cujo o qual ele não sabia o nome, mas conhecia todas as manias silenciosas. Suas marcações de passos e o timbre suave da risada eram o metrônomo que ritmava o coração errante que milagrosamente insistia em bater. Naquela noite acabou abrindo mão de se alimentar. Destilou os segundos a fio ouvindo os relatos do amigo e retornou ao seu palacete antes que os primeiros raios de sol tocassem a neve. Talvez fosse a quebra da rotina, por ter retornado tão tarde, ou, quem sabe, mera esperança recalcada. Qualquer que fosse o motivo, passou pelos umbrais principais e deixou-os abertos atrás de si.

Poucas horas depois seus ouvidos captaram o familiar ranger dos portões enferrujados, cantarolando suas lamúrias a serem escancarados devagar. Dentro de seu caixão, o vampiro abriu seus olhos de uma vez e apressou-se a levantar, caminhando rápido até sua janela companheira, que lhe mostrava o mundo e o ocultava nas sombras.

Mas havia algo de errado.

Seus olhos buscaram a figura da moça mas tudo o que via era o rastro deixado na neve, circundando a fonte e avançando adiante. Naquele momento deu-se conta da grande negligência que havia cometido ao chegar. Antes que pudesse descer, ou até mesmo se esconder, foi encurralado pelos belos olhos verdes que arregalados lhe miravam.

— Céus… — A moça levou as mãos à boca e prendeu a respiração. Da pouca distância em que estavam, Sasuke pôde ouvir seu sangue correndo, bombeado pelo coração.

Sasuke se aproximou da mulher, atraído magneticamente pelo aroma adocicado que emergia de sua pele.

— Eu não… eu… Me Desculpe. — Ela deu um passo para trás, se agarrando ao corrimão da escadaria.

— Não peça desculpas quando quem as deve sou eu, senhorita. — Sasuke parou a poucos metros, freando a curiosidade. — Há muito não recebo visitas. Por favor, me dê o prazer de sua presença por alguns minutos.

Temerosa, a jovem engoliu em seco, cogitando se era melhor correr ou sentar e ficar. Percebendo o desconforto da moça, Sasuke lhe ofereceu um lugar para sentar e ocupou o piano de cauda que lhe fazia companhia através dos anos.

Quieto, levou seus dedos a correr pelas teclas de marfim, dando vida à melodia melancólica e envolvente de Ludovico Einaudi. De olhos fechados, ele tentava se convencer de que aquilo era apenas um devaneio de uma mente ensandecida pelos tormentos da vida eterna. E, se fosse real, dava-lhe a oportunidade de partir.

— Nuvole Bianche. — Ouviu a voz da moça, perto dele. 

Com um esboço de sorriso, Sasuke confirmou. Era uma música moderna que certa vez havia escutado ao vagar pelas ruas da cidade. Ao seu lado, ela olhava curiosa para as mãos pálidas e ágeis que tocava com perícia as teclas.

— Você sabe tocar piano, senhorita? — Daquela pouca distância ele pode supor que a idade da garota não deveria ser muito diferente da que ele tinha quando renasceu na escuridão.

— Não tive a oportunidade, mas acho lindo! — Ela abriu um sorriso e Sasuke só pode atribuir aquela palavra às suas feições de anjo.

Aliviado por ver um sorriso genuíno da face da moça, Sasuke encerrou a melodia e voltou seu olhar para ela, calmo. Sentia que tinha milhares de perguntas para fazer, mas chave para selar todas as suas dúvidas era simples.

— Qual é o seu nome? — Perguntou, manso.

— Meu nome é Sakura Haruno. — Respondeu.

— Sakura, como as flores de cerejeira. Haruno, como a primavera. — O rapaz comentou. — Meu nome é Sasuke. Sasuke Uchiha.

— Uchiha como Fugaku Uchiha, fundador da cidade? — Seus olhos amendoados brilhavam em curiosidade.

— Eu acho que sim. — Fingiu não conhecer o nome do próprio pai. — Herdei essa casa dele, então…

De audição aguçada, Sasuke percebeu a descompassada cardíaca repentina da jovem e a respiração que se tornou rápida assim que ele pronunciou a última frase. Suas bochechas adquiriram um tom avermelhado com tamanha rapidez que nem ele mesmo poderia supor ser humanamente possível.

— Acho que preciso lhe pedir desculpas pela invasão de domicílio. — Sakura abaixou o rosto, ocultando a falta de jeito. — Eu realmente não sabia que morava alguém aqui.

— Não precisa se preocupar. Não nego que por muitas vezes vê-la transitar em meus jardins me proporcionou luz até nos dias mais tempestuosos. Está convidada a retornar sempre que assim desejar.

— É muita gentileza de sua parte. — A garota dividiu-lhe um sorriso constrangido. — Se houver alguma forma com que eu possa lhe retribuir por minhas transgressões.

Encantado pela expressão da moça, Sasuke não precisou de muito tempo para pensar, e talvez tenha sido justamente este o seu erro.

— Há uma forma. — Comentou ao se levantar do assento do piano. — Volte algumas vezes para me fazer companhia. Se quiser, lhe ensinarei a tocar piano.


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