Shahmaran escrita por The Vex


Capítulo 1
Sangue e cinzas no Vale de Khattak


Notas iniciais do capítulo

As frases em itálico indicam o que se passa na cabeça do personagem. Eu acredito que seja mais "clean" do que ficar utilizando aspas.

Boa leitura :)



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   Quando finalmente sentiu o calor das chamas contra as palmas de suas mãos, Rashid suspirou, aliviado.

   A viagem tinha sido longa; seus pés doíam, e seus calcanhares queimavam devido à longa e incessante caminhada. Estavam cruzando o Vale há cinco dias e só tinham usado os cavalos nos primeiros dois dias. Mesmo assim, ele não ousava retirar a bota dos pés, ou achava que poderia acabar ficando sem eles ali mesmo. O clima do fim da estação era duro até mesmo para aqueles que estavam acostumados com o frio das planícies ao sul do continente. E, embora Rashid já tivesse visto vinte invernos, nunca havia estado tão ao norte de onde morava. Nos arredores de Jagdal, a vila em que ele morava, os invernos eram mais amenos, ou pelo menos, pareciam ser. Com o frio fazendo seus ossos quase rangerem, e estando no meio do nada, cercado apenas pelas montanhas e pelas árvores mortas daquela região do Vale de Khattak, Rashid se aproximou mais um pouco da fogueira criada por Khaira, enterrando os joelhos na neve macia ao se aproximar ainda mais do fogo para sentir o calor das chamas, que crepitavam com violência.

   Apesar do desconforto proporcionado pela temperatura, Rashid não ousava reclamar. A possibilidade nem passava por sua cabeça. E, se passasse, ele logo a fazia desaparecer. Os outros integrantes do grupo não haviam dado um pio sequer para reclamar do frio desde que eles haviam deixado Jagdal. Não serei eu a fazer isso, pensou Rashid. Mas ele sabia qu be, apesar de tudo, os outros estavam mais acostumados. Yetkin, Zahra e Khaira eram guerreiros experientes, e já deveriam ter cruzado o Vale de Khattak dezenas de vezes em outras ocasiões. Com certeza estavam com frio, mas não deixavam transparecer. De fato, ele pôde ouvir o risinho abafado de Zahra quando se aproximou da fogueira, esfregando as mãos para espantar o frio.

   Rashid grunhiu baixinho, sem se virar para a mulher, fingindo que não tinha ouvido nada. Seu olhar então voltou-se para Amin, que terminava de cuidar dos cavalos, amarrando-os aos galhos secos de uma das árvores que estavam cobertas de neve. Ele parece estar aguentando bem. O rapaz era apenas dois anos mais velho que ele e, no entanto, já havia cruzado o Vale uma vez, no ano anterior, junto com Yetkin, embora o motivo da jornada nunca tivesse sido dito. Rashid o observou com atenção; Amin tinha a pele negra característica de seu povo e tronco e o peito largos. Porém, diferentemente dos outros guerreiros da tribo, que raspavam a cabeça completamente ou não deixavam o cabelo crescer muito, Amin matinha o cabelo longo, preso numa grande trança que caía-lhe sobre os ombros. Diferentemente, Rashid tinha um cabelo volumoso e cacheado, mais fino que o comum. Seu nariz era um pouco curvado e sua pele, escura. No entanto, o que Amin mais gostava em Rashid, segundo o que havia dito várias vezes, eram seus olhos negros. Tão escuros profundos quanto o céu da noite.

   Enquanto observava o companheiro, Rashid deu outro suspiro, mas permitiu-se, desta vez, dar um sorriso também. Não tão bem quanto os cavalos, mas bem, pensou. Os cavalos de Jagdal tinham pelos grossos e alongados, que recobriam boa parte do corpo dos animais. A mãe de Rashid, Saadia, costumava brincar ao dizer que os homens e as mulheres da vila montavam em ovelhas gigantes, e não em cavalos. Aqueles animais nunca reclamavam do frio, e Rashid invejou-os por um instante, desejando ser igualmente recoberto por pelos.

   — Será que suas roupas precisam de mais uma camada de lã, Rashid? — indagou Zahra, sentada sobre um tronco atravessado entre duas pequenas rochas, apontando com o queixo para um dos cavalos que era cuidado por Amin. — A lã daquele ali é a melhor que você vai encontrar. Talvez você devesse pegar um pouco pra você antes que morra de frio. Cetus tem a melhor lã da região. Uma pena que ele também seja o melhor cavalo da aldeia. Ele e Yetkin poderiam trocar de lugar, não acham?

   Os outros gargalharam. Khaira e Amin principalmente. Zahra parecia não perder a chance de implicar com Rashid. E quem poderia julgá-la? Naquele clima tão duro, a diversão era algo a que se apegar. Yetkin, por sua vez, deu apenas um risinho e balançou a cabeça, levantando-se e caminhando na direção dos cavalos sem resmungar.

   — Ele vai se acostumar logo. O clima cá pra cima é mais frio mesmo. — Disse o homenzarrão com uma voz grave, acenando com a cabeça para Amin e indicando para que o jovem fosse até a fogueira se aquecer também. — Vocês estavam do mesmo jeito na primeira travessia de vocês. Não pensem que eu não me lembro de cada um de vocês! Amin, você mesmo não saía de perto da fogueira à noite.

   Sorrindo, Amin deu um tapinha nas costas de Rashid e deixou a mão repousar em seu ombro por dois segundos antes de dar a volta na fogueira e sentar-se em outro tronco envelhecido. — Não é tão ruim assim, é? — perguntou.

   Rashid concordou, comprimindo os lábios. No fim das contas, ele poderia lidar com o frio. Não era assim tão terrível, afinal. Estava acostumado a temperaturas baixas. Todos eles estavam. Mas o clima do Vale de Khattak parecia deixar o ar muito mais frio do que o normal.

   — Está mais frio este ano. — Com um sorriso deprimido, Nizar Rouhani, seu líder, e o homem a quem Rashid e os outros estavam ali para escoltar, se aproximou da fogueira, estendendo os braços e aquecendo-se, como todos os outros. — Devíamos ter trazido algumas peles extras de lã-de-cavalo.

   Nizar era um homem velho, mas vigoroso. Ninguém em Jagdal sabia sua idade exata, mas parecia haver um consenso de que o chefe da aldeia já devia ter passado dos sessenta anos há algum tempo. Era mais do que a maioria das pessoas conseguia chegar e, mesmo assim, Nizar se mantinha forte e saudável. Suas rugas e linhas de expressão proporcionadas pelo tempo davam-lhe um ar de sabedoria que poucas pessoas possuíam. A barba trançada que caía até a altura de seu peito e a cicatriz que atravessava seu rosto diagonalmente indicavam que, outrora, havia sido um guerreiro.

   De fato, mesmo enquanto Nizar ainda estava vivo, as crianças na aldeia já ouviam as histórias acerca dos seus grandes feitos — ouviam sobre como ele havia salvado a vila do ataque de um leão das montanhas, derrotando a criatura com as próprias mãos, ou sobre como ele havia salvado a Árvore dos Imortais de um incêndio certa vez. De qualquer forma, as histórias espalhavam-se, ao contrário dos outros heróis, que só tinham suas lendas imortalizadas após uma morte honrada. Mas qualquer um podia perceber que seus dias de glória há muito haviam se passado. Nizar já não era tão ágil, nem tão forte. Porém, apesar de tudo, ainda sabia lutar. Aquele tipo de conhecimento não desaparecia.

   — Teremos carne para comer hoje. — Anunciou Yetkin, abrindo uma das cestas que seu cavalo carregava enquanto dava uma profunda gargalhada. — Talvez isso esquente seus estômagos um pouco.

   Todos riram um pouco. O riso de Amin e de Rashid foi mais contido, mas Nizar, Khaira e Zahra riram alto. E, em poucos minutos, todos os seis estavam ao redor da fogueira feita com alguns galhos secos por Khaira, aquecendo-se e esperando que o jantar daquela noite ficasse pronto. Era quase um banquete, na verdade. Rashid se lembrava de que, nas histórias, os suprimentos de viagem consistiam em pães duros com algumas fatias de queijo. Carne era algo raro, e Rashid sorriu para si mesmo, imaginando em como havia sido duplamente sortudo.

   Primeiro, havia sido escolhido para escoltar Nizar até Javanshir, que ficava após o Vale de Khattak. Há algumas semanas, o rei Ingmar havia morrido e, embora ninguém soubesse dizer ao certo qual havia sido a causa de sua morte, Nizar havia deixado escapar num dos dias de cavalgada que desconfiava que Ingmar havia sido assassinado. Então, seguindo um das únicas tradições em comum entre as aldeias do sul, um conselho com todos os líderes das vilas havia sido convocado para eleger o novo monarca. A viagem, partindo de Jagdal, tinha uma duração estimada de seis dias, e isso porque a vila era a mais próxima do Vale. Ser escolhido para escoltar o líder era uma honra, e só os melhores guerreiros eram escolhidos para tal. Por isso, Rashid ficou surpreso ao receber a notícia de que também iria, já que era apenas um novato.

   Com uma longa e volumosa barba grisalha, Yetkin ocupava o posto de melhor guerreiro da vila atualmente. Sua pele era mais clara que o comum, mas ainda sim, escura, de modo que não abria nenhum questionamento quanto à sua origem. Khaira e Zahra não ficavam muito atrás. Ambas eram guerreiras formidáveis, e Rashid já tinha tido o privilégio de testemunhá-las em ação. Khaira era mortífera com sua lança, abatia os auroques nos dias de caça com movimentos rápidos e limpos. Os grandes touros caíam no chão com um baque forte. Talvez sem nem saber o que havia os abatido. Tinha a cabeça completamente raspada e um nariz largo, e usava um conjunto de argolas douradas e prateadas nas orelhas. Zahra, por sua vez, preferia usar espadas duplas. Era mais rápida e audaciosa que a outra mulher, mas igualmente hábil. Seus cabelos eram longos e cacheados, e seus olhos eram de um âmbar tão puro que parecia hipnotizar a maioria das mulheres e dos homens mais jovens em Jagdal.

   Não era surpresa que, diante de um grupo tão distinto e quase lendário como aquele, Rashid se sentisse intimidado. Em Jagdal, os rapazes eram proibidos de pegar em armas até que completassem dezesseis anos. Antes disso, ajudavam no campo e na colheita, cuidavam dos animais e da casa, ajudando seus pais. Para as mulheres, a idade mínima era um pouco menor; quando completavam quatorze anos, todas as garotas da vila tinham a chance de escolher se seriam ou não treinadas na arte do combate. Portanto, diante deles, Rashid se sentia um pouco inferior e incapaz. Amin era seu único refúgio. Era jovem como ele e, ainda que fosse considerado um dos prodígios de Jagdal, Rashid conseguia encontrar conforto em seus braços e em seu sorriso.

   — Devemos chegar amanhã, perto do meio-dia. — Khaira disse, ainda mastigando a comida e encarando Rashid. — Está ansioso?

   Zahra bocejou, segurando o pedaço de carne que comia próximo à boca. — Como ele não estaria, mulher? Não é todo mundo que tem o privilégio de ver a Árvore dos Imortais.

   Rashid sorriu e acenou com a cabeça, chupando a ponta dos dedos engordurados. A Árvore dos Imortais, dizia-se, era uma árvore gigantesca, cujas raízes se espalhavam sobre a terra, altas e grossas. As menores, segundo as histórias contadas por sua mãe, Saadia, tinham a grossura de dois homens adultos, e as maiores eram tão grandes quantos as maiores árvores do Vale de Khattak. Debaixo de seu tronco, erguia-se Javanshir, a Cidade Sagrada. Rashid tinha ouvido os contos da Árvore desde pequeno, e conhecia bem as lendas: dizia-se que a Árvore dos Imortais era mais antiga que os próprios homens que habitavam aquela terra e que, nela, estavam gravados os nomes de todos os reis e todos os heróis dos três cantos do mundo. Ainda segundo sua mãe, o povo de Baljubar, uma cidade ao norte mais ao norte, acreditava que as raízes subterrâneas da Árvore estendiam-se por toda a terra, segurando o continente para que ele não afundasse no mar. Rashid ainda se lembrava do riso da mulher ao proferir aquelas palavras, como se achasse aquilo um absurdo sem tamanho.

   O fato era que, dali a poucas horas, Rashid estaria na Cidade Sagrada pela primeira vez, e não podia estar mais ansioso. Sabia que Amin também devia estar tão ansioso quanto ele, já que, apesar de ter cruzado o Vale certa vez, Yetkin nunca havia deixado que ele se aproximasse da cidade.

   — É bonita, mas não tem nada demais, você vai acabar percebendo com o tempo. É só uma árvore grande com...

   — Ora, Khaira! Deixe o rapaz tirar as próprias conclusões quando chegar lá. — Nizar interveio com um sorriso, limpando as mãos engorduradas no tecido das calças. Mas, pela forma como ele havia pronunciado a frase, Rashid soube que o líder de Jagdal também não considerava a Cidade Sagrada tão sagrada assim. — E tratem de descansar logo. O dia de amanhã vai ser... complicado. É bom que vocês estejam descansados.

   Khaira resmungou, mas riu logo em seguida, balançando a cabeça e mordiscando seu último pedaço de carne. E assim a noite enfim caiu sobre o grupo.

   O lugar escolhido para passar a noite ficava numa região mais limpa do Vale, com poucas árvores ao redor. A relva verde estava coberta pela neve, bem como a maioria das pedras. As poucas árvores do ambiente, ou estavam completamente secas, ou as poucas folhas que lhes sobravam estavam cobertas pela neve. Sob uma elevação rochosa, ladeada por outras rochas verticais, que pareciam formar uma espécie de muralha ao redor da clareira, o puro branco da neve do fim do inverno misturava-se com o tom cinzento das pedras do solo. A luz da fogueira iluminava um perímetro considerável; as sombras daqueles homens e mulheres se projetavam nas pedras atrás deles, fazendo-os parecer maiores do que eles realmente eram. A lua, encoberta pelas nuvens, lançava uma luz tímida do céu, iluminando apenas as encostas das grandes montanhas que cercavam o vale. O vento uivou sobre as montanhas, trazendo consigo uma brisa fria e um punhado de folhas secas, que rodopiaram pelo ar acima do topo das árvores.

   Depois que terminou de comer, Rashid se levantou e caminhou para longe da fogueira, até os cavalos. Ao descer os degraus naturais da pedra larga e achatada sobre a qual todos estavam, quase escorregou por causa da neve. Desequilibrando-se, Rashid ergueu os dois braços para o lado em busca de equilíbrio. Zahra, que há alguns instantes atrás parecia muito entretida conversando com Yetkin e Khaira, deu uma gargalhada alta, e Rashid soube que ela estava rindo dele. Será possível que eu só vou passar vergonha até chegarmos lá? Mas Rashid não caiu. Com as pernas bem abertas, ele conseguiu se equilibrar. Amin correu atrás dele e colocou a palma da mão em suas costas, fazendo menção de segurá-lo.

   — Cuidado, Rashid. Não quero ter que carregar você daqui até Javanshir.

   — Que meigo você. — Rashid riu, e seu sorriso se alargou quando viu seu amante erguer as sobrancelhas diante do comentário.

   — Yetkin disse já vai começar a contar as histórias dele. Para onde você vai? — indagou ele.

   Rashid deu uma risada, erguendo a sobrancelha da mesma forma e falando em tom sarcástico:

   — Vou mijar atrás daquela árvore ali. Quer vir comigo também? — E então, se afastou do outro rapaz, caminhando até depois de onde os cavalos estavam enquanto deixava Amin para trás e desabotoava as calças. Uma neblina esbranquiçada recobria o céu, impedindo que ele ou qualquer um pudesse ver o céu estrelado da noite ou que a luz plena da lua iluminasse o caminho, mas Rashid estava confiante de que a luz emitida pelo fogo seria o suficiente para evitar com que ele tropeçasse em algum galho solto.

   Dali, ele podia observar o resto da trilha que o grupo estava seguindo; era um caminho antigo que, àquela altura, estava quase apagado pela ação do tempo e pela relva, que recuperava-se aos poucos da passagem nem tão constante dos homens e dos animais. A estrada seguia por algumas dezenas de metros na mesma paisagem: um solo branco misturado com o verde da relva descoberta, ou o marrom do solo revirado, ladeado por árvores secas e, mais para trás, um bosque denso, que se alastrava pelo vale, partindo do sopé das montanhas. Mais à frente de onde estava, outras trilhas se juntavam à estrada principal numa espécie de encruzilhada. Os outros caminho, pelo que Rashid conseguia enxergar, advinham bosques ao redor, e estavam ainda mais apagados.

   Perdido em devaneios, Rashid demorou alguns instantes perceber o barulho do movimento de um grupo que se aproximava na escuridão. Seus pés se arrastavam pela terra fofa, e todos pareciam bastante cansados. Quando Rashid os viu, abotoou rapidamente as calças e deu alguns passos para trás até bater de costas com um dos cavalos. Ele resmungou para si mesmo, assustado mas, antes que pudesse falar qualquer coisa, ouviu a voz grave de Zahra atrás dele.

   — Quem vem aí? Quem são vocês?

   Depois de passado o susto, Rashid notou que Zahra estava mais perto dele do que havia imaginado; num instante, ela já caminhava na direção do grupo, com a postura rígida. Foi então que Rashid pôde analisar o grupo melhor: nove figuras encapuzadas, vestidas com mantos tão negros quanto a noite, caminhando em fileira. Apenas um deles carregava uma tocha, que iluminava o caminho do grupo. O fogo crepitava com força, e parecia que ia apagar a qualquer momento em decorrência da brisa fria que soprava no vale.

   A grande figura que se punha a frente do grupo ergueu mão e abaixou o capuz com delicadeza, revelando o rosto duro e com algumas cicatrizes de uma mulher de meia-idade. Pela aparência, devia ter mais ou menos a idade de Yetkin. Sua pele era mais escura, e seus cabelos, brancos e grisalhos. Um contraste interessante, Rashid pensou ao vê-la. Os outros, seguindo o exemplo dela, abaixaram também seus capuzes, revelando seus rostos. Eram mais homens e mulheres. Alguns tinham o cabelo esbranquiçado da mulher que seguia à frente apesar de serem mais jovens que ela. Outros eram completamente carecas, mas todos eles tinham a pele tão escura quanto a primeira mulher. Todos eles carregavam consigo algum tipo de arma. A mulher grande portava uma espada enorme, quase do seu tamanho, enquanto os outros portavam escudos, lanças e espadas menores.

   — Me chamo Karuna. Estamos vindo de Rajput. Acredito que estamos indo para o mesmo lugar que vocês. — Enquanto terminava a frase, Karuna se aproximou lentamente de Zahra, abaixando as mãos e demonstrando confiança. — Javanshir.

   Zahra manteve um olhar desconfiado e inflexível por vários segundos. Parecia que estava pronta para voar no pescoço da outra mulher a qualquer momento. Rashid permaneceu calado, e foi só quando ele relaxou a postura que Zahra finalmente disse:

   — Bem-vindos, irmãos. Temos lugar para todos ao redor da nossa fogueira. Bem, talvez não para todos, mas vocês podem se juntar a nós de qualquer maneira. — Com um aceno de cabeça para Rashid e para Karuna, ela indicou para que eles a seguissem até a fogueira.

   Rashid assentiu e fez como ordenado. Amin aguardava nos degraus de pedra, com um olhar também desconfiado. Nizar e Yetkin ficaram em silêncio, observando a aproximação do grupo. Quando Karuna finalmente subiu os degraus e se sentou num dos troncos ao lado de Zahra, e as outras figuras com mantos negros retiraram seus sobretudos e se acomodaram em torno do fogo, Yetkin se pronunciou, tentando quebrar o clima tenso que havia se instaurado desde então:

   — Rajput? Não piso lá há muitos anos. Mais do que gostaria. Tenho muitas saudades. Como é que anda o velho Mirzaii? Ele está a caminho da Cidade Sagrada também, eu imagino.

   Rajput era a maior das cidades do Sul. A mãe de Rashid adorava contar sobre como, certa vez, havia se perdido nas ruas confusas da cidade que, segundo ela, pareciam mais um labirinto. Era onde todas as poucas rotas comerciais do continente se encontravam. Seu líder, Mirzaii, era um homem de grande reputação, que havia competido pelo Trono de Javanshir com o próprio Nizar há anos atrás. Os boatos que corriam em Jagdal falavam de uma suposta rivalidade entre os dois homens.

   — A esta altura, Mirzaii já deve ter chegado. Ele partiu há duas semanas. — Disse uma outra mulher, com uma pintura estranha ao redor do olho.

   Yetkin ergueu as sobrancelhas e franziu a testa, e Khaira se levantou, murmurando algo e caminhando na direção dos cavalos. A atenção de Rashid, porém, não se voltou para nenhum dos dois. Foram as palavras de Nizar que despertaram sua curiosidade.

   — Se ele partiu há tanto tempo, o que vocês estão fazendo aqui, se me permitem a curiosidade de perguntar? — o líder de Jagdal abriu um sorriso largo. — Se o conheço bem, ele deve ter levado sua própria guarda consigo. Mirzaii não é tolo de atravessar o Khattak desprotegido.

   Karuna ficou em silêncio por alguns instantes, com as mãos entrelaçadas e uma expressão impassível. Então, num único instinto, sua expressão mudou; erguendo as sobrancelhas e comprimindo os lábios, ela encolheu os ombros e balançou a cabeça, como se negasse algo para si mesma.

   — Estou preocupada. O conselho é... Vai ser diferente este ano. Vai ser mais perigoso. Ingmar era um velho fraco e tolo. Agora que está morto...

   — Se será tão perigoso assim, por qual razão ele não a levou consigo? Imagino que, se você acha que faria tanta diferença assim, ele seria capaz de perceber isso e, agora, você estaria na Cidade Sagrada com ele. Ou eu estou errado?

   Com aquilo, o clima ao redor da fogueira ficou ainda mais pesado. Rashid pôde notar as posturas rígidas de Amin e de Zahra, e modo como Yetkin contorcia o nariz, como se algo o incomodasse. Logo, porém, Khaira voltou, trazendo consigo uma grande jarra de cerveja, que havia trazido de Jagdal. Com um sorriso, ela caminhou até uma das mulheres que seguiam Karuna e ofereceu-lhe um gole.

   — Não temos muito, mas é de boa qualidade. Beba um pouco.

   A mulher a encarou com um olhar profundo e desconfiado. Quando Khaira percebeu sua desconfiança, deu uma gargalhada e bebeu ela mesma um gole. A mulher encarou Karuna enquanto Khaira bebia, e a líder do grupo acenou positivamente em sua direção.

   — É feio recusar, Naya.

   Instantes depois, a jarra já havia passado de mão em mão, e todos já haviam bebido. A tensão, porém, continuava palpável. Quem é essa mulher? Rashid perguntou para si mesmo. Yetkin e Nizar não parecem convencidos. Os dois homens nem sequer tentavam esconder sua desconfiança. Nizar mantinha seu sorriso sarcástico, deixando claro que não acredita em nenhuma palavra do que a mulher de ombros largos havia dito. Yetkin, por sua vez, se manteve em silêncio. Será que ela é mesmo de Rajput? Não lembro de nenhum sulista ter a pele tão escura... Mas também não era como se Rashid tivesse conhecido muitas pessoas de fora de Jagdal.

   Como se lesse seus pensamentos, Nizar fez outra pergunta, já que seu questionamento anterior parecia ter sido ignorado com a chegada da bebida.

   — Não me lembro de ninguém em Rajput possuir uma pele tão escura. Com certeza alguém como você seria mais notável que os outros. Você é chagatai?

   Os chagatai eram viviam além das montanhas, nas planícies geladas que levavam o nome de seu povo. Nunca, ou quase nunca, pelo que Rashid sabia, atravessavam a grande cordilheira que cortava o continente. Eram um povo recluso que tinha, inclusive, uma língua própria, diferente da língua comum em razão do isolamento da comunidade.

   Ela fala nossa língua muito bem para ser uma chagatai. Ou as histórias estão erradas e...

   — Eu... cresci em Rajput. Vivo lá desde que me entendo por gente. — Karuna afirmou, claramente desconfortável.

  — Nizar, é melhor deixarmos eles descansarem... — Yetkin interveio começou a dizer e, assim que o nome foi pronunciado, a expressão no rosto de Karuna mudou notavelmente. Yetkin e Nizar perceberam de imediato a mudança, e Rashid também notou que os rostos de todos os seguidores de Karuna também haviam mudado. O silêncio se instaurou e a tensão estava quase tangível naquele momento. Devagar, Rashid compreendeu a situação e começou a se levantar, deslizando a mão lentamente para o cabo da espada.

   — Rashid! — Amin gritou em alerta, mas foi tarde demais.

   O empurrão o levou ao chão na hora. Quando Rashid se deu por si, um homem de olhos escuros estava sobre ele, segurando uma espada verticalmente na direção de seus olhos. Ele se assustou, e gritou quando o homem fez a menção de enfiar a lâmina na sua cabeça. Porém, no último instante, o homem que estava em cima dele voou para longe, levado por uma grande lança, atirada contra ele.

   Rashid deu outro grito e, quando virou a cabeça, pôde ver que Zahra tinha atirado a lança. Seus olhares se encontraram por um instante, e Rashid soube, naquele momento, que não havia espaço para hesitações. Levantou num sobressalto, e se deparou com um campo de batalha que havia acabado de explodir: com a morte de um dos nove homens pelas mãos de Zahra, Karuna Naya e outros seis guerreiros haviam desembainhado suas espadas e agora, estavam com suas armas em mãos. Eram oito contra seis, mas o ataque parecia ter sido uma surpresa tão grande para Karuna quanto tinha sido para eles.

   Rashid olhou ao redor. Ouviu gritos e o clangor do ferro contra ferro. Karuna brandia sua espada contra Yetkin que, numa posição defensiva, erguia seu grande machado de guerra para tentar aparar o golpe da mulher. Nizar erguia a própria espada contra um golpe de escudo de Naya, uma das seguidoras de Karuna. Naya gritava, batendo as laterais do escudo contra a espada de ferro, buscando desesperadamente quebrar a defesa de Nizar. Tola. Está cheia de aberturas, pensou Rashid, ainda tentando se situar. Quando retirou a espada da bainha e virou o rosto para o lado, viu Zahra cercada por dois homens que brandiam dois punhais de aço. Ela mantinha uma posição defensiva, com os dois punhos erguidos à frente do peito e um olhar determinado.

   Malditos, malditos. Nós acolhemos vocês em nossa fogueira, nós... Amin ! Cadê você? Caindo em si novamente, Rashid olhou em volta mais uma vez e viu Amin sofrer um corte no ombro pela espada de uma das mulheres. Outro homem mais baixo que também o atacava, se abaixou e deu uma cotovelada em sua barriga, fazendo-o cair no chão. Rashid gritou e correu na direção dele, arrodeando a fogueira e tomando cuidado para não escorregar na neve. Porém, no meio do caminho, foi interrompido por outro homem, que portava um bastão de ferro. Seu coração apertou. Droga. Ele não vai me deixar chegar até Amin , eu...

   Antes que pudesse terminar de pensar, o homem atacou; primeiro, ergueu o bastão na direção do ombro direito de Rashid. Devido ao estado catártico do rapaz, acertou em cheio. Rashid foi empurrado para trás, mas se manteve em pé. Grunhindo, ergueu a espada na frente do corpo e esperou o próximo ataque. Era tudo o que não precisávamos agora. Definitivamente.

   O ataque veio, como esperado: com um pequeno salto para o lado, seu oponente brandiu o bastão num golpe horizontal. Antecipando-se ao ataque, Rashid ergueu o antebraço para o lado, na esperança de defender o ataque, mas não tinha previsto a força do golpe. Ele gritou, pois era quase como se os ossos do seu antebraço tivessem partido ao meio. Mas Rashid não parou. Não poderia parar. Com um movimento rápido, ele girou o braço pelo eixo do bastão e o segurou, usando o resto das forças para se içar na direção do homem com a espada em riste. Pretendia finalizá-lo com um único golpe no pescoço, mas seu oponente simplesmente esquivou para o lado, soltando o bastão, abaixando-se e levantando novamente para dar uma cabeçada em Rashid.

   Cambaleando para trás, ele sentiu o mundo ao seu redor girar. Começou a perder o equilíbrio e, diante da situação, ergueu os braços para os lados para tentar manter a postura. Não. Não. Não! Que merda. Amin vai... Num instante, Rashid sentiu sua espada ser arrancada de suas mão. No instante seguinte, sentiu um chute forte na barriga e logo, estava no chão novamente. Ele inspirou fundo, buscando o ar que havia escapado de seus pulmões com o golpe. Com a visão embaçada, pôde ver que o homem se preparava para dar-lhe o golpe final. Vou morrer pela minha própria espada, percebeu. Porém, com a visão ainda turva, pôde perceber que o homem estava parado. Quando moveu um pouco a cabeça, pôde ver que seu oponente havia sido decapitado.

   Sentiu as mãos gentis de Khaira envolverem suas costas e sorriu ao ver o rosto da mulher sobre si. — Rashid! — Gritou ela. — Levante-se! Agora!

   Ele respirou fundo. Conseguia respirar melhor agora. Não tinha sofrido nenhum ferimento. Não é nada grave. Ninguém me cortou, disse para si mesmo. Eu ainda posso lutar. Rashid acenou com a cabeça, indicando para que a mulher o largasse. Khaira o fez, e logo ele estava de pé novamente. Quando olhou em volta, no entanto, a situação parecia mais controlada. Os corpos alguns dos homens e das mulheres encontravam-se estirados no chão, e o chão branco recoberto de neve estava vermelho.

   A última de pé era Karuna, que segurava um escudo redondo com a mão esquerda, e sua espada com a direita. Uma espada tão grande que Rashid ficou abismado com a capacidade da mulher de brandi-la com uma única mão. Yetkin estava de frente para ela, com o machado de guerra ainda empunhado. Um filete de sangue escorria de seu ombro esquerdo, mas ele se mantinha tão firme quanto uma pedra.

   — O grande Yetkin... — Karuna murmurou, ofegante. — Vejo que histórias que são contadas sobre você não são apenas histórias...

   Yetkin não respondeu. Em vez disso, se limitou a semicerrar os olhos na direção da mulher. Nizar deu um suspiro e caminhou lentamente até a mulher com sua espada abaixada.

   — Não precisava ser assim, Karuna. Se você tivesse decidido não atacar...

   Ela grunhiu, largando o escudo no chão com força. Tinha um grande corte logo acima do olho, e seu sangue pingava e escorria sobre sua bochecha. — Se eu soubesse quem você era antes, você não estaria desse jeito agora, Nizar Rouhani. Seu corpo e o corpo de seus homens e mulheres estariam no chão agora, e não os dos meus.

   — Eu duvido muito disso — entoou Zahra, caminhando até Yetkin e se colocando ao lado do homem barbudo. Seus braços estavam cobertos de sangue, e suas roupas, rasgadas em alguns pontos. Mas não é o sangue dela, Rashid percebeu. — Você precisaria do dobro de guerreiros que tinha consigo para, talvez, ter uma chance contra nós.

   Khaira riu, mas todos os outros ficaram calados. Antes que Rashid pudesse falar qualquer coisa, Amin pôs a mão em seu ombro e lhe sorriu. Ao vê-lo, Rashid sorriu de volta e o abraçou. Amin também estava ensanguentado; um corte em sua testa fazia um pouco de sangue escorrer por seu rosto, que também estava sujo de terra. Mas Rashid ficou feliz ao saber que ele estava vivo. Só aquilo bastava.

   — Eu ouvi você gritando — sussurrou. — Achou que eles iam me matar tão facilmente assim?

   — Eu... — Rashid começou a formular uma frase, mas Amin o interrompeu, rindo da situação:

   — Talvez você estivesse com razão. Se não fosse por Khaira, minha cabeça estaria rolando pelo chão agora.

   Os dois ficaram em silêncio. Quando Rashid olhou para a frente novamente, viu Karuna correndo em direção ao bosque. Em direção à escuridão. Rápida, Khaira correu até seu cavalo e agarrou um arco e encaixou uma flecha na corda. Quando ela virou o rosto para Nizar, para pedir permissão para atirar, o homem mais velho ergueu e abaixou a palma da mão lentamente. Khaira assentiu e relaxou a corda do arco, observando Karuna sumir dentre as árvores.

   — Deixe que ela vá.

   — Mas e se ela chamar reforços? — Rashid quebrou o próprio silêncio.

   Nizar virou o rosto para ele e sorriu. Um sorriso genuíno e tranquilizador. Ali, Rashid percebeu a razão daquele homem ser o líder de sua vila. Pois, com um simples sorriso, Nizar era capaz de passar uma imensa sensação de segurança.

   — Tenho fé de que ela não chamará mais ninguém. Descansem e cuidem de seus ferimentos. Amanhã a esta hora já deveremos estar perfeitamente acomodados em Javanshir.

   Depois de terminar a frase, Nizar caminhou até a fogueira e sentou-se num dos troncos. O cinza e o branco do chão tinham dado lugar ao vermelho, que cobria boa parte do solo ao redor da fogueira.

   — Vamos — entoou Rashid. — Vou limpar esse sangue do seu rosto.

   O resto da noite foi relativamente tranquilo, se é que era possível falar em tranquilidade após um massacre como aquele. Zahra, Yetkin e Rashid, com a ajuda de Nizar, ficaram responsáveis por enterrar os corpos dos homens e das mulheres que haviam caído em batalha.

   — Eles tentaram nos matar — Nizar tinha dito assim que Yetkin começara a puxar os calcanhares de Naya, e havia colocado ela ao lado de outro homem. — Mas são da nossa gente. Não vamos deixá-los aqui, apodrecendo ao ar livre.

   Do pouco tempo que dispôs para dormir, Rashid passou um terço pensando no motivo de Karuna ter mudado de expressão tão repentinamente ao ouvir o nome de Nizar. Não precisou de uma única palavra, pensou. Um simples nome e, instantes depois, oito corpos estavam atirados no chão. Ele suspirou, cansado. Algumas partes de seu corpo ainda doíam pelos golpes que tinha recebido na testa, no ombro e na barriga. Aquela tinha sido sua primeira situação real de vida ou morte. Na vila, havia passado alguns poucos anos em treinamento, mas nada o havia preparado para o que ele tinha acabado de enfrentar. Não consegui fazer nada, pensou. Se não fosse por Zahra e Khaira, estaria morto. Duas vezes morto. E por qual razão?

   Em silêncio, ele permaneceu ali, esperando que o sono chegasse. Percebeu que, àquela hora da noite, a neblina que recobria o céu no Vale de Khattak havia começado a se dissipar. Sem que ele percebesse, porém, o sono chegaria mais tarde. E quando ele veio, Rashid tentou não sonhar com sangue dos homens e das mulheres que haviam sido mortos naquela noite.


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Notas finais do capítulo

Impressões sempre são bem vindas ♥.

Feliz ano novo a todos!



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