Crescendo - Shirbert escrita por Sabrina


Capítulo 12
O piquenique




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***

— Não precisa fingir – Marilla disse ao entrar por meu quarto. – Sei que estava ouvindo. Vi a ponta de sua trança no topo da escadaria.

— Eu estava apenas observando, o que é bem diferente de ouvir.

— Chame como quiser, Gilbert já foi. Ele ia convidá-la para um passeio, mas devido ao... ao acidente com o forno... Como está sua mão?

— Doendo. Doendo muito.

— Amanhã iremos ao médico, prometo. Se formos agora só chegaremos depois que o consultório estiver fechado.

Desviei o olhar para o meu quarto, que provavelmente seria minha prisão pelo resto do dia. Marilla me olhou com pesar.

— Amanhã dispensará a escola, está bem? – disse. – Mandarei um bilhete para a Srta. Stacy explicando. Pegaremos o trem das sete.

— Vou perder um dia de aula? – erguei a cabeça, de repente. – E tudo por minha estupidez de abrir o forno sem luvas?!

— E o que espera? Não pode ir pra escola assim.

Suspirei e deixei o corpo cair sobre a cama. Aquilo era tão chato! O que Diana pensaria? Ela ficaria preocupada!

— Suas tarefas estão suspensas até que sare. Até lá, repouse.

Ela fez uma caricia desajeitada no meu cabelo antes de sair do quarto. Mal sabia eu que o “repouso” não se aplicava só as tarefas. Eu precisava de ajuda para me vestir e até pra pentear o cabelo, pois embora pudesse fazê-lo com uma mão só, não podia fazer tranças, e minha mão boa ficava cansada pelo esforço de desembaraçar. Eu precisava da ajuda pra tudo, até pra cortar a carne do meu prato. Me sentia uma incapacitada. Quando o dia seguinte chegou, mal pude esperar para ir logo ao médico. Minha atadura havia sido trocada, mas eu ainda sentia dor. A cada quilometro que percorríamos na carroça até a estação, eu sentia mais urgência. Só sosseguei quando nos sentamos no assento acolchoado do trem e Marilla trocou o curativo mais uma vez.

— Está ansiosa assim só pela dor – perguntou enquanto passava pomada na gaze – ou também por ver Gilbert?

— Ele não estará lá – falei, tentando disfarçar o desapontamento em minha voz. – Seu estágio é depois da escola, sequer o veremos.

— É uma pena – disse Marilla. – Tenho que elogiar o trabalho dele. Sua mão parece melhor. Está menos vermelha e as bolhas estão menos inchadas. Graças a Deus que são pequenas!

— É – concordei. – Gilbert será um bom médico.

— Tomara, assim não terão que gastar dinheiro com médico para as crianças.

Engasguei com a própria saliva e comecei a tossir. Quando me recuperei, consegui perguntar:

— Crianças? Que crianças?

— As que terão, ora.

A tosse voltou, e mais forte. Crianças? Ela já estava pensando em crianças?  Que crianças?

— É muito cedo pra pensar nisso. – falei, mal recuperada. – Nós não estamos noivos, Marilla.

— Mas estarão – ela sorriu, e quando viu a incredulidade em meu rosto, arqueou as sobrancelhas. – Anne, você sabe que está comprometida com aquele rapaz, não sabe?

— É claro que sei!

— O tipo de compromisso que firmaram é uma mera cortesia pra dizer que ficarão noivos futuramente. É o que se espera.

Cobri a boca com a mão boa para a tosse que veio a seguir. Ela está ficando velha, disse a mim mesma. Só está dizendo isso porque quer ter netos um dia. É perdoável.

Dormi o resto da viagem, o que me poupou de continuar aquela conversa esquisita. A consulta foi curta. O médico nos disse para continuar com o mesmo procedimento e voltar lá na semana que vem. À tarde, já de volta a Green Gables, tomávamos chá quando Gilbert me visitou. Eu estava sentada de forma relaxada á mesa, enquanto Marilla enchia minha xícara, tagarelando sobre como é chato não ir a escola e ainda não poder fazer nada em casa.

— Gosto das tarefas, gosto mesmo – eu dizia. – Claro que é um pouco cansativo, mas sinto falta delas. Ah, Marilla, você não imagina como é chato não poder fazer nada! Precisar de ajuda para tudo! Não posso nem cortar um pão pra comer! Consegue imaginar?

Ela me deu um olhar irônico. Foi quando águem bateu na porta.

— Espere! – falei quando ela se virou na direção do som. – Deixe que eu abro! É a única coisa que consigo fazer! Não me tire isso!

Marilla suspirou. – Vá logo então. Vou pegar os biscoitos.

Abri um sorriso do tamanho da lua e praticamente saltitei até a porta. Gilbert sorria de lábios fechados pra mim. Usava suas roupas habituais e tinha livros sob os braços.

— A Srta. Stacy me pediu pra trazer sua lição de casa – disse ele. – Achei que podíamos estudar juntos.

Senti meus olhos se encherem de lágrimas. Fiquei tão tão tão feliz que saltei sobre seu pescoço, num abraço.

— Obrigada! Não sabe como senti falta disso!

— De mim?

Não— me afastei, franzindo as sobrancelhas. – Da escola. De estudar.

Foi quando Marilla voltou com uma bandeja de biscoitos. – Sr. Blythe...

— Sra. Cuthbert – cumprimentou ele com um sorriso. – Vim trazer as lições da Anne e convidá-la para um passeio.

— Não sabe como me ajuda! – ela suspirou, agradecida. – Acabei de fazer biscoitos. Por que não preparo uma cesta e vocês fazem um piquenique enquanto estudam?

— Parece uma ótima ideia – disse Gilbert – Se Anne não estiver se sentindo indisposta...

— Estudar e sair um pouco daqui? Estou ótima! Por que não vamos logo?

— Contenha a ansiedade – disse Marilla. – Vou preparar a cesta. Por que não vai trocar de roupa?

Olhei pra baixo e vi que estava de roupão. Era mais fácil que vestir vestidos.

— Claro – concordei, e subi as pressas pro quarto.

Dez minutos depois, ela veio me ajudar. Não deixou que eu vestisse o belo vestido verde que ganhei de aniversário, nem o azul antigo que Matthew me dera. Foi o marrom habitual de todos os dias, junto do avental branco. Mas, pra fazer um agrado, prendeu fitas azuis nas pontas de minhas tranças.

— Pode ir agora – ela sorriu, olhando para o meu reflexo no espelho. – A cesta está sobre a mesa de jantar. E quero você de volta antes do pôr do sol.

— Está bem – me inclinei para beijá-la na bochecha. – Obrigada, Marilla!

E saí correndo do quarto para o corredor, do corredor para a escada e da escada para cozinha, onde peguei a cesta, e a seguir porta afora, agarrando a mão de Gilbert com a minha boa e o levando comigo.

— Uau, quanta animação! – disse ele. – Por que estamos quase correndo?

— Porque eu não aguento mais ficar presa dentro de casa – falei. – Marilla não me deixava nem ir aos estábulos. Essa é a primeira vez que saio desde que chegamos do consultório médico. Aliás, você não deveria estar trabalhando lá hoje?

— O estágio é só três dias por semana. Hoje não é um desses dias.

— Que bom, porque considerando que fosse, você não viria até aqui e eu não estaria saindo agora. Aliás, mal posso esperar pra começar o piquenique! Onde iremos fazê-lo? Particularmente acho que deveria ser perto de um lago. Piqueniques são sempre belos perto de um lago. Ou perto de uma árvore bem alta! Mas há tantas árvores altas...

— Passei por um lago há caminho daqui.

Fiquei ainda mais empolgada. Felizmente, tinha uma árvore alta próxima ao lago. Gilbert forrou o pano que Marilla colocou na cesta próximo a ela, de modo que quando se sentou, apoiou as costas contra o tronco. Depois, perguntou o que o médico disse sobre minha mão e pediu para vê-la.

— Ele elogiou o que você fez – contei, estendo a mão para que a examinasse. – Disse que tive sorte de você estar lá. Em uma semana, talvez menos, não precisarei mais usar gazes.

— Ainda bem que não foi a mão com que escreve.

Ele tocava meus dedos, olhando-os com atenção. Comecei a corar.

— É... – falei, desviando o olhar. – Pode passar a cesta pra cá? Tá muito longe pra mim.

Deixando meus dedos de lado, Gilbert fez o que pedi e espalhou os livros pelo pano. Ele me explicou como fazer a atividade e logo começamos, cada um com a sua, ás vezes fazendo comentários aqui e ali e perguntas um ao outro sobre determinada questão. Até demos algumas risadas. Foi no meio da questão quatorze de geometria espacial que o clima mudou. Gilbert se inclinou pra me mostrar seu quadro negro com uma conta. Ele ficou próximo. E embora não parecesse ter segundas intenções, pois estava bem concentrado em me explicar como chegou a tal resultado, eu não consegui parar de pensar “ele viu como minha mão ficou ontem. Ele nunca mais vai querer me beijar”, e ao invés de prestar atenção no que ele dizia, fiquei olhando para seu rosto.

— Entendeu? – disse Gilbert. – Achei um pouco avançado pra nossa turma. Não sei se os outros vão conseguir resolver. Essa parte da multiplicação...

Gilbert— falei, e ele olhou pra mim. Olhou pro meu rosto.

— Anne – respondeu.

— Você me acha feia?

— É claro que não! – ele riu, como se a ideia fosse ridícula. – Por que está me perguntando isso?

— É que... – toquei a ponta da minha trança com a mão boa. – Eu sou ruiva. E ruivo é a pior cor, sabe? Como alguém pode gostar de uma ruiva? Além do mais, olha minhas sardas! E agora essa mão toda estropiada... Eu não consigo nem me vestir so...

Não terminei a frase, porque Gilbert segurou meu rosto entre as mãos e me beijou. Simplesmente me beijou.

— Pra alguém tão inteligente, ás vezes você me surpreende, Anne – soltou meu rosto. – Se eu não gostasse nem a achasse bonita, por que estaria aqui agora fazendo dever de casa com você, apesar de não ter obrigação nenhuma disso?

— Vai ver – fiz uma expressão sugestiva, embora estivesse sorrindo – você só está interessado nos doces da Marilla.

Ele riu longamente. – É claro. Só estou aqui pelos doces. Não tenho interesse nenhum em você. Voltemos aos estudos.

E tornou a apoiar as costas no tronco da árvore. Não sei ele, mas eu fiz o resto da atividade com um sorriso no rosto. “Ele me acha bonita!”, pensava repentinamente em meio ao cálculo de um volume e outro. Quase não consegui terminar ao mesmo tempo em que ele.

— Obrigada por trazer minha lição – falei, quando largamos os materiais de lado. – E por topar o piquenique.

— Precisamos ir agora? – Gilbert fez uma careta. – Minhas mãos doem de tanto escrever. Queria ficar mais um pouco aqui, descansando.

— Tenho até o pôr do sol pra voltar – abri um sorriso. – Podemos nos deitar e imaginar formas nas nuvens. Costumo fazer isso com Diana e Ruby. É uma forma de exercitar a imaginação.

— Ou podemos nos beijar.

Parei de sorrir imediatamente. Gilbert Blythe estava ficando ousado...

— Achei que quisesse descansar... – murmurei, de repente achando a grama muito interessante de se olhar. – Por isso sugeri deitar e imaginar formas nas nuvens.

— Podemos fazer isso depois – Gilbert se arrastou para mais perto de mim sobre o pano. – Agora eu preferia matar as saudades de você. É claro, se você não se importar...

— Não me importo! – falei rápido demais. Ele sorriu. Então, tocou meu rosto com uma mão, e aproximou a face da minha. Houve distância entre nossos corpos durante todo o beijo. Quer dizer, todos os beijos. Gilbert segurava meu rosto de forma delicada, e eu me sentia inebriada toda vez que seus lábios roçavam ou encostavam nos meus. Quando me deixou em casa, ele me deu um último, na mão. A mão feia e ferida.

— Até amanhã, Srta. Cuthbert – disse, me olhando divertido. – Que sua mão melhore logo.

E enquanto o observava ir embora, pensei novamente “ele me acha bonita!”.


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