Embaixo do Visco escrita por Joice Santos


Capítulo 1
Capítulo Único – Embaixo do Visco


Notas iniciais do capítulo

Oii, docinhos!

Escrevi essa história ano passado, mas só neste ano pude postá-la para ficar de vez no site. Gostaria de ter postado na semana de Natal, mas infelizmente não deu.
Ainda assim, espero que gostem e se divirtam com meus amorzinhos. Nicholas e Emma estão ansiosos para conhecê-los.



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Fazia mais frio naquele dia quando Emma desceu para abrir a confeitaria. O feriado de Ação de Graças havia passado fazia apenas alguns dias e o outono estava quase no final, indo embora com suas cores amareladas e dando espaço para o branco do inverno.

Emma não via a hora de o inverno chegar. Ela amava ver a neve cair, sentir o vento congelante no rosto e acender a lareira nas noites frias. Acima de tudo, adorava como as pessoas se mostravam mais unidas e gentis e como tudo à sua volta ficava bonito e iluminado pelas luzes de Natal.

Este Natal, no entanto, não seria um dos melhores para Emma.

Seu irmão caçula, de apenas seis anos de idade, estava internado há pouco mais de uma semana. Emma já deveria estar acostumada, as coisas eram assim desde o diagnóstico de Teddy. Ele possuía Mielofibrose, um tipo raro de câncer que atacava a medula óssea, causando sua cicatrização e prejudicando a formação de novas células sanguíneas. Teddy vinha lutando bravamente contra a doença há três anos, entre altos e baixos, e resistindo a cada etapa.

Os pais de Emma e Teddy haviam falecido pouco antes do garotinho ser diagnosticado com a doença, em um acidente de carro. No início, Emma achou que todo o cansaço, dores e perda de apetite de Teddy eram culpa da tristeza por perder os pais tão cedo. Às vezes, nem mesmo ela conseguia manter-se em pé. Mas quando os dias tornaram-se semanas e as queixas de Teddy continuaram, ela soube que algo estava errado e era hora procurar ajuda. O diagnóstico de mielofibrose veio depois de uma série de exames e ela não pôde acreditar. Ela e Teddy mal haviam se recuperado da bomba de perder os pais naquele trágico acidente e agora havia isso, o câncer. Emma deixou o consultório médico sem conseguir respirar direito aquele dia, com os exames na mão e o coração apertado no peito. Não podia perder o irmão também. Desde então ela vinha trabalhando com mais afinco e paixão para manter a confeitaria, que abriu sozinha logo após a morte dos pais, e poder pagar o tratamento caro do irmão.

O dinheiro do seguro de vida dos pais tinha bastado até ali para arcar com os custos do hospital e medicação, e ela vivia com o lucro da confeitaria, mas agora Teddy estava piorando, indo cada vez mais ao hospital e gastando com novos tipos de medicação – remédios caros os quais Emma não sabia até quando poderia pagar. Um transplante de medula óssea seria a única chance realmente eficaz de cura para Teddy, mas o hospital de Abberville, cidade onde moravam, não realizava esse tipo de procedimento, ainda mais com o risco ocasionado pelo avanço e instabilidade da doença que se dera nas últimas semanas. Teddy precisaria ir para um hospital em Atlanta, e Emma teria que desembolsar uma alta quantia para pagar o transplante do irmão. Ela não fazia a mínima ideia de onde iria tirar tanto dinheiro e em tão pouco tempo, e isso estava fazendo a cabeça de Emma girar.

Emma caminhou até a porta e virou a placa, deixando “Aberto” para o lado de fora, então foi para trás do balcão.

Os cupcakes que tinha preparado naquela manhã estavam deliciosos. Emma não precisava experimentar nenhum deles para saber que a massa fofinha e o recheio cremoso de chocolate com avelã estavam no ponto. Fazia aquela mesma receita há anos, desde que era uma garotinha aprendendo a misturar os ingredientes na cozinha da avó materna.

Preparar doces sempre foi a vida de Emma. Desde escolher os ingredientes certos, abrir o livro de receitas da avó mesmo já sabendo tudo de cor, ver a massa crescer até sair quentinha do forno. Tudo fazia parte de um processo mágico que encantava Emma Winscow.

Hoje ela iria levar os cupcakes para Teddy, no hospital.

— Ei Emma! – o sino no alto da porta soou. Angelo, um cliente que frequentava a confeitaria desde o início e que havia se tornado um amigo, entrou, tomando seu lugar em frente ao balcão.

— Bom dia, Angelo! Já trago seu café com leite, só um instante. Infelizmente hoje não tenho aquela torta com amêndoas – avisou. Ela já havia decorado, Angelo fazia o mesmo pedido há três anos.

— Não parta meu coração tão cedo. – ele colocou a mão sobre o peito, no lugar onde batia o coração, e fez uma careta de dor. Emma sorriu.

Na cozinha, a chaleira apitou e ela correu para desligar o fogo antes que derramasse leite por toda cozinha. Voltou com uma xícara de café e leite quente na chaleira para Angelo. Deixou os sachês de açúcar perto dele, mesmo sabendo que ele nunca os utilizava, então o serviu de um pedaço generoso de torta de maçã com nozes, a receita preferida dela e da avó.

Angelo levou um pedaço à boca, chegando a fechar os olhos de tão saboroso.

— Caramba, Emma, isso está delicioso!

— Espero que tenha ajudado a juntar os pedaços do seu coração.

— Se isso não ajudou, não sei o que mais seria capaz de fazer.

Ela riu mais uma vez, depois se virou para limpar o balcão do outro lado.

As horas andaram depressa e, quando se deu conta, passava do meio-dia. Hora de almoçar com Teddy.

Emma almoçava todos os dias com Teddy quando o irmão estava no hospital. Isso começou logo na primeira internação. Teddy não tinha gostado da comida do hospital e não queria ficar lá, cercado de pessoas desconhecidas, com os braços espetado por agulhas. Estava assustado demais até mesmo para comer. Então Emma passou a ir todos os dias no horário em que as enfermeiras serviam o almoço dos pacientes – se é que aquilo poderia ser chamado de almoço – e ajudava Teddy a fazer as refeições. Agora ele já estava crescido e gostava das pessoas do hospital, mas mesmo assim Emma mantinha o costume. Era como uma tradição, um momento deles além dos que ela tinha como acompanhante, e Emma fazia questão de preservá-lo.

Já ia fechar a confeitaria quando o sininho no alto da porta soou. Estava abaixada recolhendo os cupcakes que sobraram no balcão expositor e colocando-os em uma sacola de papel quando ouviu o barulho de um cliente chegando. Ergueu a cabeça e olhou para a porta, avistando um homem sério na entrada. Emma nunca tinha o visto por aqui.

— Oi, posso ajudar? – ela se mostrou solicita imediatamente. Largou a sacola e os doces e ficou de pé, alisando o avental.

O rapaz deu mais alguns passos até se aproximar do balcão. Ele era bastante alto e vestia um suéter azul marinho.Na mão carregava um casaco acolchoado bege. A calça jeans de corte reto moldava suas pernas longas e definidas, e ele calçava botas pretas. Os cabelos castanhos eram curtos e lisos, numa cor que fazia Emma lembrar e campos de centeio. Ele tinha sobrancelhas extremamente grossas, que logo chamaram a atenção da confeiteira,com vários fios fora do lugar. Ela notou a seriedade em seu rosto conforme andava, mas também viu certa curiosidade no belo par de olhos castanhos dele, um tom claro parecido com os dos cabelos, enquanto observava ao redor.

— Na verdade não sei bem o que estou procurando. Quer dizer, eu preciso de uma sobremesa – começou a se explicar, o que arrancou um riso sutil de Emma. –, só não sei exatamente o que levar.

— Você precisa para quantas pessoas?

— Cinco. Não, seis. – corrigiu-se.

— Que tal uma torta? Preparei uma receita especial hoje. Acho que ainda tenho uma sobrando. Vou buscar, só um minuto.

Ele assentiu e Emma deu as costas, sumindo pela porta dos fundos. Na cozinha, encontrou a caixa com a torta de maçã e nozes e a fechou. Voltou para onde tinha deixado o cliente e o encontrou observando o lugar. Os olhos dele varriam as paredes claras com papel de parede delicado, que iam do chão até a metade delas;o grande cardápio colorido no alto da parede e as mesas redondas com toalhas em tons pastéis de rosa, azul e amarelo; a caixa registradora antiga e barulhenta que ela tinha encontrado no sótão da casa dos avós e que pertencera a seu avô. Aquele objeto trazia à Emma memórias mais bonitas de um tempo em que tudo era mais fácil. Ela sentia falta dos avós maternos, falecidos há muito tempo, tanto quanto sentia dos pais.

Eles estão juntos, não é, Emma? O vovô, a vovó, o papai e a mamãe. Eles estão juntos no céu. Foi o que Teddy disse na primeira noite em que teve que dormir sem os pais. A primeira de todas as outras. Emma havia acariciado os cabelos loiros como ramos de trigo do irmão e dito que sim, ela também acreditava naquilo. Desde então Emma os imaginava assim: uma pequena família reunida no céu.

— Aqui está. – ela colocou a embalagem sobre o balcão.

— Aqui é muito bonito. – o rapaz apontou o espaço, girando o indicador enquanto andava de volta até o balcão. Tirou do bolso a carteira e entregou a ela um cartão de crédito vermelho sem nem perguntar o preço da sobremesa. – Há quanto tempo a confeitaria funciona?

— Três anos. – Emma respondeu, digitando o valor na maquininha de cartão. –São 14 dólares e cinquenta.

O rapaz recebeu a máquina e digitou a senha do cartão, devolvendo o aparelho para Emma.

— Trabalha aqui desde o início?

Ele parecia curioso e interessado e isso agradou Emma. Ela estava sempre preparada para uma conversa, fosse esta rápida e superficial ou extensa e profunda. Gostava de ouvir tanto quanto ser ouvida.

— Eu sou a dona. – ela sorriu e ele ergueu as sobrancelhas por um instante, depois assentiu. – Você não é daqui, não é mesmo?

Foi a vez dele de sorrir. O lindo rapaz olhou para baixo e balançou a cabeça.

— Morei minha vida inteira na cidade. Nasci aqui. Saí apenas para cursar a faculdade e voltei, e isso já faz algum tempo.

— Jura? Costumo conhecer quase todas as pessoas que passam por aqui. – ela queria dizer que era impossível ele morar na cidade e nunca ter notado a confeitaria. Abberville era uma cidade pequena e não havia tantas lojas de doces assim. Na verdade, todas as outras eram integradas a restaurantes, padarias ou serviços de Buffet. A confeitaria de Emma era única e naquele lado da cidade todos a conheciam.

— Eu não saio tanto quanto deveria. – os dois riram, parecendo sem graça. Aquilo era timidez? Emma quase nunca ficava tímida. E ele, bem, era lindo e charmoso demais para parecer se deixar abalar por algo tão bobo como aquilo.

O celular dele tocou, quebrando o silêncio estranho que se abatera sobre eles.

— Com licença. – ele se virou para atender. Emma voltou a rechear a sacola de papel com cupcakes. – Tá, tudo bem. Eu disse que estava indo. – Emma escutou ele dizer ao celular. – Eu sei. Só faz dez minutos, Saddie. – ela riu da expressão dele, então voltou a atenção para o que estava fazendo. – Tá legal. Eu não me esqueci. Certo, já estou indo.

O belo rapaz se reaproximou do balcão e pegou a torta ainda falando ao celular. Agora ele parecia com bastante pressa e começou a se afastar. Emma ouviu o barulho do sino na porta e soube que ele havia saído.

Foi só quando ficou de pé novamente que Emma percebeu o cartão de crédito vermelho ao lado da maquininha. Tomou o objeto nas mãos, onde pôde ler Nicholas Belmore Willians em letras douradas.

Belmore Willians!

Ela perdeu o fôlego. A família Belmore Willians era dona de um dos restaurantes mais famosos e frequentados de Abberville, estavam sempre saindo em revistas de culinária e até mesmo no jornal local. Emma já tinha ido ao restaurante deles uma vez, em um jantar de comemoração quando se formou no ensino médio, e a comida era mesmo incrível. Ela não conseguia acreditar que um dos Belmore Willians tinha estado em sua pequena confeitaria e ainda levado sua torta caseira.

E tinha esquecido o cartão.

Emma deu a volta no balcão depressa e correu até a porta. A decoração de Natal da loja ainda estava pela metade. Até agora ela só tinha conseguido pendurar as luzes pisca-pisca do lado de fora e o ramo de visco sobre a porta. Não era nem um pouco divertido fazer aquilo sem Teddy, por isso estava indo ao poucos. Quem sabe ele teria alta ainda essa semana e poderiam enfeitar a árvore juntos?

Ela abriu a porta com o nome de Nicholas na ponta da língua, pronta para chamar por ele, porém nem mesmo teve necessidade. Ele já estava voltando e os dois acabaram por se chocar na porta, bem embaixo do visco.

A embalagem com a torta desequilibrou-se, mas Nicholas conseguiu mantê-la na palmada mão. Emma estava com o peito colado ao dele, a respiração rápida e ofegante pelo susto e pela pequena corrida, mas nem mesmo isso impediu que um sorriso enorme alargasse seus lábios rosados.

— Seu cartão!

— Meu cartão!

Os dois falaram ao mesmo tempo. Emma caiu na risada e Nicholas a acompanhou. O coração dela falhou uma batida: Nicholas Belmore Willians tinha o sorriso mais lindo e risada mais deliciosa que ela já ouvira. Ela estendeu o cartão de crédito vermelho e dourado para ele, que agradeceu e se foi.

Da porta da confeitaria, Emma assistiu Nicholas se afastar, e quando o vento forte de outono soprou, olhou para cima, para o visco chacoalhando sobre sua cabeça, e sorriu.

Então virou-se e entrou, ansiosa para almoçar com Teddy.

[...]

Nicholas estacionou na frente da bela casa enfeitada para o Natal. Os Belmore Willians não costumavam economizar quando o assunto era festas e decorações, especialmente nas comemorações de fim de ano.

Ele desceu do carro equilibrando a torta, atravessou o caminho ladeado por flores, renas de plástico e luzes que se acenderiam de noite, e alcançou a porta. Sua irmã Saddie estava no alto de uma escada pendurando ramos de visco amarrados com laços de fita vermelha no teto do hall de entrada. Ao redor dela, caixas e mais caixas com decorações natalinas ocupavam a maior parte do carpete. Ele precisou andar como se estivesse em um campo minado para alcançar a mesa e deixar a torta cheirosa que trouxera.

— Você demorou. – Saddie reclamou, mas olhou para ele com um sorriso brilhante no rosto de adolescente. Ela tinha quinze anos, quase dezesseis, e usava um vestido amarelo de algodão. Nic achava que ela estava crescendo rápido demais.

Saddie terminou de pendurar o enfeite e desceu, indo pegar outro ramo na caixa.

— Trouxe a sobremesa? – Saddie ajeitava o laço na ponta da planta com delicadeza e perfeição. Tinha o cabelo castanho solto, com duas mechas presas atrás da cabeça.

Ela olhou para ele rapidamente e Nic assentiu. Ajudou Saddie a levar a escada para o outro lado do cômodo e ficou segurando enquanto ela subia.

— Por que você e a mamãe fazem isso?

— Você sabe que ela quer uma receita nova de doce para o restaurante. Aqueles críticos da revista de gastronomia virão antes do Natal e ela quer impressioná-los.

Não era sobre isso ele estava falando, mas como o assunto viera à tona, achou que deveria continuar.

— Ela não pode simplesmente pedir para os funcionários criarem algo novo ou ir ela mesma às confeitarias? Eu não posso visitar cada loja dessa cidade e pedir uma sobremesa diferente todo dia. Preciso trabalhar.

No alto da escada, Saddie revirou os olhos.

— Ela já está enjoada das receitas da Annelise. Não que ela não seja boa, mas mamãe quer algo que a surpreenda. – Saddie olhou lá de cima para o irmão. – Além do mais, você sabe que se ela aparecer em cada padaria ou confeitaria dessa cidade vão ficar bajulando ela.

E era verdade. A família de Nicholas era famosa na cidade, especialmente a mãe, que estava à frente do restaurante. Às vezes, jantar em um lugar diferente era um verdadeiro teste de paciência.

— Você é tipo nosso ajudante secreto. Pense em você mesmo como uma rena do Papai Noel. Rena Nic – ela riu e Nicholas bufou. – Eu também sou, só que agora estou ocupada.

Saddie terminou de amarrar o último ramo de visco da entrada e tornou a descer. Parou na frente do irmão e colocou as mãos na cintura como fazia desde que era garotinha e se entendia por gente, até mesmo antes disso. Nic a viu com cinco anos novamente, usando tranças e dizendo coisas com toda segurança do mundo. Precisou segurar a vontade de agarrá-la pelo pescoço e bagunçar seu cabelo como sempre fazia.

— Então, o que acha?

Ele olhou para cima, para o ramo de visco recém pendurado.

Nicholas não acreditava naquilo. Achava decorações de Natal bonitas e charmosas, mas não fazia questão de pendurar um par de meia na lareira nem acreditava que visco traria boa sorte. O completo oposto da irmã, que tinha herdado o espírito natalino da mãe e não abria mão das tradições natalinas e comemorações. Saddie encomendava suéteres iguais para toda família todos os anos e os obrigava a vestir na manhã de Natal. Nicholas vestia o suéter bobo, sorria e até procurava um presente na meia com seu nome, mas apenas para agradar aos pais e a irmã. Só não acreditava.

— Está lindo, Saddie. Você se superou mais uma vez. – ele segurou as mãos da irmã e depositou um beijo no dorso.

— Ah, aí estão vocês! – Genevieve apareceu. – Venham, vamos para cozinha. O pai de vocês está esperando e vocês sabem que comida fria...

— Perde o sabor. – os irmãos completaram em uníssono a frase da mãe.

Nicholas e Saddie se juntaram aos pais na sala de jantar. Vincent estava em seu lugar de costume, à cabeceira da mesa, e Genevieve sentou-se à sua direita. Saddie foi para seu lugar a frente da mãe e Nic se colocou ao lado dela. A empregada apareceu com uma travessa de carne assada e a depositou sobre a mesa, depois juntou as mãos no colo e esperou.

— Hoje é a sua vez, docinho. – Vincent se dirigiu a Saddie, que sorriu, estendeu as mãos e fechou os olhos. Todos deram as mãos e fizeram o mesmo.

Saddie os guiou em oração e todos encerraram com um sonoro e fervoroso amém, então Carla, a empregada que era mais parte da família do que apenas uma funcionária,ajudou a servir a refeição. Quando terminaram, Carla trouxe a torta que Nicholas tinha deixado no hall. O primeiro pedaço foi para Genevieve e todos aguardaram quase que apreensivos enquanto ela degustava a bonita torta de maçã com nozes.

— Então, mãe? – Saddie quis saber, os olhos brilhando de ansiedade.

— Me figa você mesmo. Tome, prove. – a mãe esticou o garfo para ela, que abriu a boca sem pestanejar. Os olhos de Saddie arregalaram-se e Nicholas soube que ela tinha adorado. – Onde comprou essa torta, filho?

Nicholas contou sobre a confeitaria bonitinha do outro lado da cidade, simples e com cheiro de massa caseira delicioso. De repente os olhos escuros da simpática dona invadiram sua mente e ele lembrou-se do calor que viu no sorriso dela quando se esbarraram na porta.

— Acha que essa é a receita, querida? – Vincent perguntou, olhando com carinho para a esposa. Nic costumava dizer que a mesma quantidade de determinação que havia nos olhos da mãe, havia de bondade nos do pai.

— Ainda não sei. – Genevive mastigou outro pedaço antes de voltar a falar. – Aquele cheesecake com creme brulee do Buffet da Sally também me agradou muito.

— E os brownies de nozes e castanha do Damien. – lembrou Saddie. Damien era o novo contratado do restaurante, um confeiteiro recém formado que estava aprendendo com Annelise, a chef confeiteira do restaurante, como agradar na cozinha dos Belmore Willians. O garoto negro de sorriso largo e bochechas grandes era um poço de simpatia, e ficava sem jeito sempre que Saddie aparecia na cozinha do restaurante para beliscar alguma coisa.

— Venha, Carla. Prove e ajude a mamãe a decidir. – Nic ofereceu seu prato à empregada, que aceitou sem muito receio.

Carla trabalhava na casa dos Belmore Willians há mais de vinte anos. Tinha acompanhado o crescimento de Nicholas e visto Saddie nascer, ajudado com a criação dos garotos e sido uma grande amiga para sua patroa. Ela tinha um casal de filhos também, todos já crescidos, e Tiara, sua menina, a ajudava com o serviço nos Belmore Willians quando não estava na faculdade de enfermagem. O mais velho, Robert, cursava medicina em Atlanta e era o orgulho da família.

Hoje era sábado e Tiara não estava na casa. Nicholas havia perguntado sobre ela à Carla já que havia incluído a moça na conta quando pensou na sobremesa.

Carla experimentou a torta e fez um sinal de aprovação com o polegar.

— Certo, o que vamos fazer então? – perguntou Nicholas, olhando para os pais. A mãe parecia pensativa.

— O que a mamãe vai fazer. – Saddie corrigiu. – Isso aqui está parecendo aquele programa de televisão. – ela se levantou e foi até a empregada, abraçando Carla pelos ombros e deitando a cabeça no ombro da mulher que fora como uma segunda mãe. Carla colocou um pedaço do recheio de nozes na boca de Saddie, que a beijou na bochecha depois de mastigar.

— Um concurso. É isso que vamos fazer. – Genevieve ficou de pé, com as mãos na cintura igualzinha a filha fazia. – Vamos anunciar e pedir que as pessoas tragam suas melhores sobremesas e oferecer um prêmio.

Todos olharam de Gen uns para os outros e concordaram. Era uma ideia interessante, divertida e traria ainda mais propaganda e visibilidade ao restaurante. Além disso, estava chegando o Natal e isso animava as pessoas a cozinhar seus doces e unirem-se ao restante da cidade. Saddie já estava empolgada, Nicholas podia ver nos olhos dela. No minuto seguinte Gen e Vincent estavam discutindo os detalhes, como o lugar do concurso e valor do prêmio.

— Isso vai ser tão legal! Vou terminar de pendurar os viscos pela casa e depois te ajudar com tudo, mamãe. Podemos fazer o concurso no jardim, vai ser tão divertido!

Saddie bateu palmas e rodopiou ao lado de Carla, fazendo o vestido de algodão girar. Nicholas não entendia o porquê de tanta pressa para enfeitar a casa, ainda estavam na primeira semana de dezembro.

— Não entendo porque ela pendura todas as essas plantas pela casa.

— São viscos. E traz boa sorte. Além do mais, se um homem e uma mulherse beijarem embaixo de um deles, quer dizer que terão um amor duradouro e verdadeiro. – a irmã explicou, repleta de romantismo.

Se havia algo em que Saddie acreditava verdadeiramente era na força do amor e na magia do Natal. Conhecia todas as histórias e superstições natalinas, importava-se com cada uma das tradições, por mais simples que fosse, e estava sempre conseguindo embarcar as pessoas ao seu redor na levada do espírito natalino. Nem mesmo o próprio Grinch era páreo para ela.

— Acho que alguém está apaixonada. Você os espalhou pela casa toda, querida. – o comentário de Vincent arrancou risadas dos demais.

Agora que haviam decidido por onde começar, os pais de Nicholas foram para o escritório organizar o concurso. Tinham pressa para que tudo acontecesse antes do feriado. Carla retornou aos afazeres da casa, encarregando-se da cozinha, e Saddie voltou aos enfeites natalinos. Nicholas pensou em dar uma passada no haras da família, seu local de trabalho e onde passava a maior parte dos dias, mas sabia que os pais e a irmã ficariam chateados se ele fosse. Quando estava lá, esquecia-se do tempo e não pensava em nada mais que não fossem os belos cavalos de raça correndo livres pelos pastos. Nic os amava, cada um deles. Era tão apaixonado por sua profissão, um veterinário especializado em equinos, que nem mesmo considerava aquilo um emprego. Era a sua vida.

No entanto hoje era o dia da família, por isso ele se levantou, beijou os pais e foi atrás de Saddie. Juntos penduraram ramos de viscos no alto das portas e colocaram as luzes pisca-pisca do lado de fora. Saddie estava tão feliz por enfeitar a casa com o irmão em mais um ano que Nicholas não pôde deixar de sorrir enquanto a via acender as luzes na tomada e admirar a majestosa iluminação ao final daquela tarde.

[...]

Emma chegou ao hospital vinte minutos depois de deixar a confeitaria. Passou pela porta dupla de vidro e cumprimentou o segurança já conhecido, que sorriu para ela. Com as recepcionistas foi a mesma coisa. Todas a conheciam pelo nome, assim como as enfermeiras e os médicos da ala infantil. Ela se apressou até o elevador e apertou o botão para o terceiro andar.

Na frente do quarto de Teddy, Emma respirou fundo e abriu a porta. Ela sabia que seu irmão estava bem, do contrário, se houvesse qualquer mudança em seu estado, o hospital já teria telefonado. Essa garantia, no entanto, não mudava a pequena movimentação na boca no estômago que sempre sentia antes de vê-lo. Teddy era seu bem mais precioso e ela não suportava ver o irmãozinho sofrer.

Quando entrou, Teddy estava fazendo cara feia para bandeja em seu colo. A enfermeira tentava convencê-lo a comer, mas ele negava com a cabeça enquanto mantinha os braços cruzados.

— Ei, parece que alguém está se fazendo de difícil hoje.

— Emma!

Teddy abriu um enorme sorriso assim que viu a irmã. Emma curvou-se sobre ele, dando-lhe um abraço apertado, e plantou um beijo no top da cabeça. Os cabelos loirinhos de Teddy haviam crescido novamente após a quimioterapia, um ano e meio atrás.

— Oi, garotão. Como você está?

— Se recusando a comer sem você. Eu não sei o que fazer com esse rapazinho, Em. – Sarah, a enfermeira, olhou de Teddy para Emma e de volta para Teddy. Abriu um sorriso para o menino e então se levantou da cama, cedendo o espaço para a recém chegada.

Com a mesma facilidade que fazia doces, Emma alimentou Teddy. Ele era um menino adorável, fácil de lidar e que nunca reclamava, nem quando estava com dores ou quando era espetado por agulhas. Era obediente e muito esperto, e Emma o amava mais que a própria vida. Entretanto, a hora do almoço era sua nova tradição com a irmã, algo só deles, e Teddy odiava que isso fosse quebrado, fosse por Emma ficar presa no trabalho ou por algum exame de última hora do qual não poderia se esquivar.

— Você demorou. – ele reclamou após engolir a primeira colherada da sopa preparada na cozinha do hospital. Emma não achava aquilo saboroso ou nutritivo, mas nunca fazia cara feia para não desencorajar Teddy.

— Desculpe, campeão. Fiquei presa na confeitaria. Um cliente de última hora.

— Eu disse à enfermeira que ele só iria comer quando você chegasse, mas ela quis insistir. –Trudie, do outro lado do quarto, olhou para Emma por cima dos óculos.

Trudie era uma senhora bondosa de sessenta e sete anos que morava ao lado da casa de Emma. Dona de um coração enorme, Trudie estava sempre disponível para dar conselhos e ajudar . Nas horas em que Emma não podia estar no hospital porque precisava trabalhar, Trudie fazia companhia para Teddy. A vizinha costumava passar quase todas as tardes com o menino e Emma não sabia como agradecer por tanto auxílio e carinho. Trudie era como uma avó generosa, cheia de tempo e amor para doar os outros.

— Teddy... Já conversamos sobre isso. – Emma tentou fazer uma advertência, mas o sorriso em seus lábios a impedia de soar como pretendia.

— Você está alegre. Mais que o normal. O que aconteceu? – Trudie, muito observadora, abaixou o livro e os óculos para o colo.

— É verdade, Em. Você está... Como se diz? Ah, já sei! Radiante! – Teddy disse, com os olhinhos azuis brilhando. – É alguma coisa especial?

Emma não queria dizer nada, mas não podia negar o que estava sentindo. O encontro com Nicholas Belmore Willians havia lhe arrancado suspiros e pregado um sorriso imenso em seu rosto que já deveria estar fazendo-a parecer uma boba. Um homem tão lindo e educado como ele, com uma família digna de estampar cartões de Natal, era capaz de despertar o interesse de qualquer mulher, mas como Emma foi muito além. Ela não estava pensando na fama dos Belmore Willians, mesmo que o sucesso deles fosse uma grande inspiração. Ela tinha sentido algo ao esbarrar em Nicholas do lado de fora. Seu coração tinha batido muito mais rápido e, quando se deu conta, estava sorrindo e cantarolando pela rua.

Nicholas era o homem mais bonito que já vira na vida. Ela ainda conseguia ver claramente os intensos olhos castanhos dele e as sobrancelhas grossas; o modo como ele observara a confeitaria, notando os detalhes com curiosidade e respeito; até as ruguinhas sutis que se formaram no canto dos olhos quando ele riu ao falarem ao mesmo tempo.

Emma não queria dizer, mas tinha se conectado com ele de alguma forma, e o visco balançando sobre sua cabeça quando ele partiu só lhe dava mais certeza de que aquilo era real.

— O que é isso?Um complô? – as sobrancelhas de Emma se ergueram e ela olhou de Teddy para Trudie. – Vocês se uniram para me interrogar, é isso?

Teddy riu com a boca cheia de um pedaço de pão de forma. Trudie estreitou os olhos e murmurou algo sobre Emma disfarçar muito mal, então colocou novamente os óculos no rosto e voltou a ler.

— Ei, Trudie, você pode ir se quiser. Vou passar o resto da tarde com o Teddy. – ela não havia planejado, mas resolveu que podia manter confeitaria fechada naquela tarde de sábado. Teddy era mais importante e, agora que estava aqui, não queria mais deixá-lo sozinho.

Ela aproveitou para mostrar ao irmão a sacola com os cupcakes e Teddy foi logo colocando um inteiro na boca. Emma tentou repreendê-lo, mas tudo o que conseguiu foi rir das bochechas dele sujas com chocolate e cobertura de açúcar. Sarah retornou para levar a bandeja e Teddy lhe ofereceu um cupcake como pedido de desculpas. Emma entregou a ela a sacola para levar os doces para os outros funcionários e Sarah agradeceu a gentileza, elogiando Emma pelo bolo de frutas da semana passada.

Debaixo da coberta de Teddy, Emma passou um braço por trás do menino e o trouxe para perto si. Teddy entregou a ela o livro de histórias infantis que Trudie havia trazido aquela manhã e, antes da irmã chegar à metade da leitura, já estava caindo no sono.

— Esse Natal vai ser especial, Em – murmurou Teddy, de repente. Emma acariciava a testa dele, afastando os fios loiros e teimosos para longe do rosto. Ela não entendeu o porquê dele ter dito aquilo, mas há muito Emma já havia deixado de tentar entender o motivo das coisas. Se Teddy tinha dito, ela acreditava.

Emma beijou a testa do irmão e continuou a leitura, mesmo depois de ele ter adormecido.

[...]

Uma semana se passou e Teddy ainda estava no hospital. Emma conseguia disfarçar bem na frente dele e dos outros, mas, todas as noites, quando voltou para casa após visitá-lo, ela chorou por não trazê-lo consigo.

Teddy não estava melhorando. A mielofibrose continuava atacando sua medula óssea, destruindo a capacidade de produzir novas células sanguíneas. Os médicos estavam administrando uma nova dose da medicação para combater a anemia e uma série de outros compostos para evitar possíveis infecções, já que a baixa quantidade de glóbulos brancos o deixava praticamente indefeso no combate contra vírus e bactérias estranhas.

No momento ele estava estável, mas a equipe médica não podia precisar até quando. Eles tinham conversado com Emma novamente sobre o transplante de medula, mas antes teriam que submeter Teddy a uma nova fase de quimioterapia. O coração dela se partiu no peito. Os enjoos, o cansaço, a perda de cabelo. Tudo de novo. Teddy iria odiar, ela sabia. E eles teriam que ir para Atlanta, porque logo após a quimioterapia Teddy passaria pelo transplante.

Mas isso tudo dependia de Emma e do dinheiro que ela precisava arranjar. Ela sentia que não conseguiria respirar direito até estar em um voo para Atlanta com o irmão caçula.

Naquela manhã, Emma acordou determinada a colocar a mão na massa e fazer os melhores biscoitos que já fizera na vida. Antes da hora do almoço ela já tinha vendido mais da metade das fornadas e recebido duas encomendas de bolo. Emma ligou para Trudie e pediu para falar com Teddy, avisar que não iria almoçar com ele hoje. Ouviu as reclamações do irmão ao celular e soube que Teddy estava chorando. Quase largou tudo para ir até ele, mas precisava trabalhar, precisava de todo dinheiro que pudesse juntar. Pediu desculpas a ele e prometeu levar um doce especial no dia seguinte. Teddy disse que tudo bem – ele era mesmo um bom garoto.

Naquele dia o balcão expositor da confeitaria ficou praticamente vazio. Deus a estava ajudando, não restava dúvidas.  Estava fazendo tudo colaborar para seu dia de sucesso.

Fechou a confeitaria às oito da noite e subiu para casa, que ficava em cima do estabelecimento.

O jornal da cidade do dia anterior estava jogado no chão ao pé da cama e os olhos de Emma foram magicamente atraídos para um anúncio de concurso culinário. O restaurante dos Belmore Willians estava oferecendo um ótimo prêmio em dinheiro para a melhor sobremesa da cidade, além de ter a receita integrada ao cardápio oficial do restaurante e participação nos lucros com as vendas da mesma.

Alguma coisa se acendeu no interior de Emma e ela sorriu esperançosa. Aquela era sua chance. Podia até ouvir a voz de avó dizendo o quanto ela era talentosa na cozinha. Emma tinha que participar do concurso.

No dia seguinte, quando foi almoçar com Teddy, Emma o encontrou com uma bolsa de soro maior ligada ao braço. Estava sem apetite e abatido, mas sorriu quando viu a irmã. Emma passou um tempo com ele, contando tudo sobre o trabalho do dia anterior, até que a chamaram para conversar. Havia algo errado, ela podia sentir enquanto andava atrás de Jason Alpert, médico oncologista de Teddy.

— Emma, as notícias não são muito boas.

— O que houve com Teddy? – havia um grande nó em sua garganta, como se o coração tivesse subido e ficado por lá.

— Teddy está com inchaço no fígado. – ele mostrou os exames feitos naquela manhã.

O Dr. Jason contou a ela sobre a febre alta que Teddy teve mais cedo e que já tinha baixado, e sobre a medicação para o fígado que estavam colocando no soro. Emma o ouviu falar nomes estranhos de substâncias que ela não entendia e sobre algum remédio que viria da capital para ajudar Teddy. Mais dinheiro que Emma teria que conseguir.

— Ele precisa do transplante, Emma. Isso com o fígado... Podemos controlar, mas não é permanente. Eu sinto muito.

Emma fechou os olhos e respirou fundo. Tinha sofrido tanto nos últimos anos que seu coração já estava anestesiado, mas naquele momento tudo lhe doeu. Ela assentiu para o médico e foi até o quarto de Teddy, parando antes na porta para limpar as lágrimas que vieram a rolar. Trudie já havia ido embora e Sarah tinha acabado de checar o acesso no braço magricela do garoto. A enfermeira deu um sorriso compreensivo para Emma e os deixou a sós.

Emma beijou a cabeça do irmão e se sentou ao lado dele. Passou as quatro horas seguintes observando Teddy dormir, acariciando os dedinhos dele, as veias saltadas na pele branca e as marcas de agulha nas mãos e braços.

O sinto muito do médico ressoou em sua cabeça durante todo o trajeto de volta para casa. Emma não iria perder Teddy, ela precisava fazer alguma coisa. O jornal local sobre a escrivaninha era como uma luz no fim do túnel de chances que Emma precisava agarrar. Ela folheou as páginas e foi direto ao anúncio dos Belmore Willians. Em seguida pegou o notebook, acessou o site do restaurante e fez sua inscrição, que incluía anexar ao formulário uma cópia da receita que pretendia apresentar no concurso. Quando acabou, tomou banho e caiu na cama, sendo tragada pelo cansaço rapidamente.

Na manhã do dia seguinte, ao checar a caixa de mensagens, Emma comemorou ao ver o email de confirmação do concurso.

Pronto, estava dentro. E iria ganhar.

Por Teddy.

[...]

No dia do concurso, Emma saiu bem cedo de casa para passar no hospital.

Teddy estava radiante com ideia de a irmã participar de um concurso de culinária. Ficou triste por não poder ir ver Emma ganhar, mas aceitou receber uma foto da irmã com sua torta vencedora. Ele tinha certeza que ela iria vencer.

— Boa sorte, Em. Traga a medalha para eu ver, tá bem?

— Não sei se vai haver uma medalha, Teddy, mas o que eu ganhar você será o primeiro a ver.

Emma se despediu dele com um beijo na testa e se foi. Trudie ficaria com Teddy novamente, ambos torcendo para ela, e Emma telefonaria para dar o resultado quando acabasse.

A casa dos Belmore Willians era gigantesca, ela observou assim que chegou ao endereço que recebeu por email. Havia dois seguranças no portão, recebendo as pessoas e indicando o caminho. Emma avisou que estava ali como concorrente, mostrou a cópia impressa do email de inscrição e foi direcionada ao jardim onde aconteceria o tão aguardado concurso.

O gramado era incrivelmente verde e vivo. Mesas de piquenique estavam dispostas lado a lado, cercadas por pessoas conversando ou dando os últimos retoques em seus doces saborosos. Era fácil identificar quem estava ali como participante e quem viera só para assistir: os primeiros usavam toucas de chef, uniformes brancos ou aventais coloridos. Emma usava um avental azul bebê com estampas de cupcakes, infantil demais, mas tão delicado quanto ela e sua confeitaria, e sua touca branca de chef com a faixa em xadrez vermelho estava em sua sacola.

Ela encontrou um lugar à mesa e colocou a famosa torta de maçã com nozes – agora adaptada com recheio mais cremoso – de sua avó sobre ela. Havia pequenas placas de cartolinas para que os participantes pudessem escrever o nome de suas sobremesas. Emma pensou e instantaneamente soube que nome dar à torta: Torta do Teddy.

— Olá pessoal! – uma garota com vestido branco estampado de folhas verdes e usando cardigã cinza surgiu no jardim. Ela carregava uma prancheta na mão e sorria muito. – Eu sou Saddie e gostaria de dar as boas-vindas a todos vocês. Minha família está muito feliz por tê-los aqui e me pediu para avisar que começaremos em vinte minutos. Enquanto isso, a cozinha estará aberta caso alguém precise dar os últimos retoques. – ela apontou na direção de uma porta de madeira envidraçada para mostrar a direção. – É bem ali. Boa sorte a todos!

Quando ninguém fez menção de entrar na cozinha dos Belmore Willians, completamente seguros de seus pratos ou envergonhados demais para isso, Emma achou que era o momento perfeito para melhorar seu prato. Pegou sua sacola com ingredientes e correu na direção que menina apontara. Lá dentro, encontrou panelas, utensílios e ingredientes básicos dispostos no balcão e em uma mesa. Os Belmore Willians realmente tinham se colocado à disposição dos participantes.

Emma sorriu e foi até o fogão, acendendo uma das bocas e colocando uma pequena panela antiaderente para esquentar. Em seguida, cortou a maçã em fatias cumpridas como uma lua crescente. Ela estava derretendo o açúcar na panela e medindo o leite quando alguém apareceu na cozinha. De início ela nem se virou, achando que poderia ser um dos concorrentes vindo utilizar a cozinha, mas quando a pessoa se aproximou e espiou a panela lado dela, Emma precisou olhar.

Quase teve um ataque do coração ao dar de cara com Nicholas.

— Hmm, eu adoro esse cheiro. – ele tinha um lindo sorriso no canto dos lábios ao dizer isso. Emma ficou tão em choque ao vê-lo de novo que acabou se esquecendo do que fazia e o caramelo borbulhou na panela, espirrando no fogão.

— Ai, droga! – murmurou baixinho, então desligou fogo rapidamente. Nicholas deu uma risadinha.

— Ei, eu te conheço. Você é a dona daquela confeitaria onde eu quase esqueci meu cartão.

Emma enrubesceu, mas sorriu. Ele se lembrava dela.

— Meu nome é Emma. – ela deixou a panela sobre a mesa, ao lado das fatias de maçã, e estendeu a mão para ele, mas antes a limpou no avental.

— Muito prazer. Sou Nicholas. – ela quis dizer que já sabia quem ele era, porém o toque quente da mão dele na dela a fez perder a própria voz. Nicholas tinha um aperto forte e firme, mas também havia elegância e calor em seu contato, e ela pensou que poderia ficar segurando os dedos dele pelo resto do dia, talvez até o dia seguinte.

— Então você veio pelo concurso. – era uma afirmação, não uma pergunta.

Nicholas sentou-se a mesa, pegando-a de surpresa. Ele a observou colocar o leite e as fatias de maçã dentro da panela e mexer com calma e cuidado, quase como se embalasse um bebê nos braços. Emma assentiu e olhou rapidamente para ele. Será que havia experimentado a torta dela aquele dia? E, se sim, havia gostado?

De repente ela estava nervosa demais e ele percebeu a mudança em seu rosto.

— Não se preocupe, eu não vou julgar os concorrentes. Isso é com meus pais e os convidados deles.

— Oh, não! – Emma tratou de se explicar. – Eu não estava pensando nisso.

Nicholas notou como as bochechas dela ficaram vermelhas, porém, ao olhar as mãos dela trabalhando, percebeu que em nenhum momento os dedos de Emma vacilaram. Ela poderia ficar tímida com uma conversa ou com a presença dele, mas não deixava que isso atrapalhasse seu desempenho na cozinha. Na verdade, nada era capaz de fazer Emma se sair mal nas panelas. Se estava feliz, cozinha, se estava triste ou nervosa também. No fim das contas, a cozinha era o que lhe dava equilíbrio.

Nicholas admirou a maneira delicada e precisa com que ela mexia a panela e ficou hipnotizado com sua concentração. Emma era linda e centrada, com o cabelo curto preso atrás das orelhas e aquela touca boba de culinária, e Nic teve certeza que poderia ficar por horas ali, na cozinha de sua família, olhando-a cozinhar.

O que é que estava acontecendo com ele? Quem era aquela moça que, com tanta gentileza e simplicidade, havia despertado em Nicholas um sentimento nem ele sabia existir dentro de si mesmo?

Ele observou Emma tirar algo do bolsinho da frente do avental – um potinho de vidro com um pó cor de areia – e salpicar na panela.

— Ingrediente secreto? – apontou com o queixo para ela e esticou o pescoço para olhar dentro da panela. Ele achou que pudesse ser canela, mas não tinha o mesmo cheiro.

Emma abriu um enorme sorriso.

— Um toque secreto da minha avó.

— O que é? – os olhos dele eram grandes como enfeites de Natal e brilhavam igualmente de curiosidade olhando para ela.

— Se eu te contar, deixa de ser secreto. – ela olhou de volta com um tom brincalhão no rosto. Com uma mão na cintura, Nicholas a achou igualzinha as mulheres de sua vida, Genevieve e Saddie. Emma esticou a colher para que ele provasse e Nicholas pareceu ter ido ao céu com a calda feita por ela.

Ele não percebeu, mas tinha ficado com doce no canto da boca e Emma, involuntariamente, se curvou sobre a mesa para limpar. O olhar deles se prendeu,diferentes tons de castanhos, porém com a mesma intensidade. Emma nem notou o quanto estava sorrindo ao fazer aquilo. Limpou a bochecha de Nic com tanto amor e gentileza como se cuidasse da pessoa mais especial no mundo, como se cuidasse de Teddy. Nicholas mal piscou. Foi preciso que o ramo de visco que Saddie havia pendurado há alguns dias na luminária caísse entre eles para que saíssem do transe. Emma riu, segurando a planta pelo laço vermelho brilhante amarrado na ponta.

— Saddie – riu Nicholas. – Minha irmã pendurou vários desse pela casa.

— São lindos. – Emma suspirou, admirando o enfeite. – Dão sorte e... – antes que pudesse concluir o pensamento, outro mais importante lhe ocorreu. O que ela ainda estava fazendo ali? Tinha que voltar para o jardim. – Minha torta! Eu preciso ir! – Emma agarrou a panela e correu para fora, deixando o rapaz atordoado para trás.

No gramado, ela correu sobre as sapatilhas até a mesa. Sua torta – a Torta do Teddy – estava do mesmo jeito que deixara dentro da embalagem. Retirou de lá e colocou sobre o suporte. Com cuidado e agilidade, Emma derramou a cobertura e enfeitou com três pedaços de maçã caramelizada, deixando a sobremesa tão bonita quanto saborosa. A senhora Belmore Willians estava apresentando os demais jurados: seu marido, Vincent Belmore Willians, a chef confeiteira de seu restaurante, Annelise Johnson, e a editora de uma revista gastronômica da capital, Julia Jones. Ela deu o concurso como iniciado, anunciou os prêmios e desejou boa sorte a todos.

Emma respirou fundo.

Era agora.

[...]

Emma Winscow venceu o concurso por dois pontos de diferença. No final, quando todos já haviam sido eliminados e restava apenas ela e uma dona de Buffet, os jurados precisaram votar novamente para escolher o vencedor. Emma nunca suou tanto na vida vendo um grupo de pessoas experimentar sua receita. No fim, apenas Annelise não votou nela, e a Torta do Teddy venceu o petit gateau de chocolate branco.

— Eu nem acredito que você colocou o meu nome na torta, Emma! – Teddy irradiava empolgação ao telefone. – Eu sabia que você iria vencer. Você ganhou uma medalha?

— Não, mas ganhei algo melhor que isso.

Emma olhou para o cheque assinado por Genevieve Belmore Willians. Ela mal podia esperar para mostrá-lo a Teddy e ao doutor Alpert. O valor seria suficiente para pagar pelo transplante de Teddy. O restante daria um jeito, já tinha provado a si mesma que era capaz de resolver as coisas. Quase podia respirar aliviada – quase, porque isso só aconteceria quando Teddy estivesse, de fato, bem.

Com o broche de vencedora pregado na camisa, o cheque no bolso e um sorriso satisfeito no rosto, Emma agradeceu outra vez aos jurados. Julia Jones anotou seu email e disse que entraria em contato para fazer uma matéria para a revista gastronômica. Emma mal podia acreditar, estava se sentindo uma celebridade! Abraçou e agradeceu Genevieve, que a arrastou até o escritório para tratar do assunto da participação nos lucros do restaurante com a venda da Torta do Teddy. Ela, Emma e Vincent Belmore Willians passaram quase duas horas falando de negócios e cozinha e Emma adorou o casal. Eles eram tão educados e gentis, e tinham o mesmo amor por culinária que Emma. Ela só deixou a casa dos Belmore Wilians no final daquela tarde, e, ao passar pela porta, Emma se viu procurando por Nicholas no gramado. Ele não estava lá, ela nem sabia se ele tinha visto o concurso.

Uma pequena massa de decepção quis ganhar forma e tamanho no peito de Emma, mas ela não deixou. Afastou aquilo da cabeça, tratando de ficar contente, pois quem mais importava estava feliz por ela: Teddy.

Despedindo-se dos seguranças, Emma deixou a belíssima casa para trás. Satisfeita e ansiosa, ela percorreu as ruas de Abberville até o ponto de ônibus mais próximo. Vinte minutos depois estava saltando em frente ao hospital, e foi direto levar a fotografia que Saddie Belmore Willians havia tirado dela ao lado dos jurados para o irmãozinho ver.

[...]

— Hm, isso não está igual. – Saddie estava de pé, atrás da cadeira da mãe. Eles estavam no restaurante, todos os Belmore Willians, provando a receita de Emma Winscow, agora preparada pelas mãos talentosas de Annelise.

— Saddie tem razão, mãe. – Nicholas, do outro lado da mesa, apoiou o garfo na borda do prato.

— Eu sempre tenho. – a garota deu de ombros e se sentou ao lado do pai.

Àquela hora o restaurante ainda estava fechado e os funcionários estavam na cozinha, se preparando para receber os primeiros clientes dali a duas horas. Annelise tinha preparado a Torta do Teddy seguindo exatamente cada passo e ingrediente deixado por Emma. Então, o que havia dado errado?

— Ela seguiu a receita? – Nicholas olhou para mãe, que parecia preocupada.

— Sim, eu conferi com ela. Acompanhei o preparo.

— Talvez Annelise tenha perdido seu grande toque de mestre. – Saddie revirou os olhos e, mesmo tendo certeza de que a torta feita pela confeiteira do restaurante estava diferente da de Emma, espetou o garfo no prato e comeu mais um pedaço.

— Crianças, vamos pegar leve. Annelise está conosco há anos. Talvez ela tenha se esquecido de algo. Tenho certeza que há uma explicação para isso. – Vincent tratou de ir em defesa de Annelise, afinal ela era extremamente talentosa, tinha até escrito um livro de culinária para crianças e agora estava escrevendo outro sobre doces para festas, e trabalhava com eles há seis anos.

Ela estava na cozinha agora, de portas fechadas com os outros cozinheiros e garçons, e por isso não podia ouvi-los. Mesmo assim eles falavam baixo.

— Seu pai tem razão. Não está ruim, muito pelo contrário. Só está...

— Diferente. – Nicholas e Saddie concordaram, em uníssono.

— Por que não trazemos Emma aqui? Ela pode preparar a receita junto com a mamãe e Annelise, assim eliminamos qualquer chance de erro. – Nicholas sugeriu, terminando seu pedaço.

Ele não iria falar em voz alta, mas já havia admitido para si mesmo que queria vê-la de novo. Tinha passado apenas dois dias desde o encontro na cozinha de sua família e Nicholas ainda podia sentir o toque dos dedos dela em sua bochecha. A suavidade da mão com pequenos arranhões e cicatrizes do trabalho diário na cozinha e forma como sua pele ficou formigando depois que ela correu apressada para o jardim. O sorriso dela era brilhante como uma manhã de verão, os olhos intensos como chocolate e avelã.

Nicholas havia se conectado com aquela mulher de alguma forma e se não aceitassem convidar Emma para o restaurante, iria passar na confeitaria com a desculpa de comprar alguma coisa só para vê-la novamente.

[...]

O inverno havia se instalado em Abberville de maneira rigorosa logo no início. A primeira nevasca tinha sido na noite anterior e, quando acordou pela manhã, Emma só conseguia pensar em Teddy e no quanto o irmão adoraria se divertir na neve branca e macia.

Teddy estava há exatas três semanas internado. Ele havido tido uma melhora considerável nos últimos dias: o inchaço no fígado havia diminuído e ele já conseguia se alimentar melhor. Estava mais forte e isso animava tanto Emma quanto os médicos para a realização do transplante. Se tudo continuasse a correr bem – e Emma e Teddy tinham muita fé nisso –, em janeiro poderiam ir para Atlanta, onde o menino seria submetido a uma nova sessão de quimioterapia e, em seguida, o tão aguardando transplante de medula óssea.

O relógio marcava pouco mais de nove e meia da manhã quando Emma deixou a confeitaria nas mãos de Trudie. A senhora generosa tinha passado para tomar café e comer biscoitos de canela que faziam um sucesso enorme entre os clientes. Emma recebera uma ligação enquanto servia Trudie e se surpreendeu ao ouvir Genevieve Belmore Willians do outro lado da linha. Ela pedia que Emma passasse no restaurante, se possível aquela manhã, para resolver um probleminha com a receita da Torta do Teddy. De início Emma congelou, achando que tinha feito algo grave, como enviar a receita errada, mas a dona do restaurante tratou de acalmá-la.

Agora Emma caminhava apressada para chegar ao restaurante dos Belmore Willians. Trudie se oferecera para ficar na confeitaria para que Emma não tivesse que fechá-la. Hoje era quinta-feira, dia em que os voluntários levavam as crianças com câncer do hospital para a sala de recreação. Teddy ficaria bem sem ela ou Trudie.

Assim que chegou, Emma retirou o gorro e as luvas. O restaurante abria às dezoito horas, então não havia nenhum cliente naquele momento. Ela se sentiu meio perdida ao empurrar a porta de vidro e dar de cara com as mesas vazias. Ouviu ruídos de conversa atrás das portas brancas modelo vai e vem com visor e caminhou naquela direção. Antes de chegar foi surpreendida pela caçula dos Belmore Willians, vinda de outra porta.

— Ah, você chegou! Venha, estão todos de esperando na cozinha.

Saddie tomou Emma pela mão e a arrastou, empurrando uma das portas com a mão livre.

Ao entrar na cozinha, vários pares de olhos se direcionaram a ela. Emma não sabia o que dizer, nem sabia ao certo porque estava ali, mas a forma como a observavam, sorrindo e esperançosos, deixou Emma mais aliviada.

— Emma! Que bom que veio, minha querida. Precisamos de uma ajudinha aqui. – Genevieve foi logo cumprimentá-la, segurando Emma pelas mãos.

— Olá, senhora. – Emma sorriu, encantada com tanta simpatia.

— Sem essa de senhora, meu bem. – Gen descartou com um aceno de mão. – Precisamos que nos ensine a preparar a Torta do Teddy. Exatamente como fez no concurso.

— Algum problema coma receita?

— Problema nenhum, mas talvez você queira nos ensinar alguns truques. – Genevieve não quis ser indelicada dizendo que a torta feita por Annelise não estava igual à de Emma. Annelise tinha se esforçado, todos reconheciam, e estava ali de boa vontade para aprender com Emma. Genevieve jamais falaria algo para deixá-la envergonhada, ou a qualquer outro, e nem permitiria que alguém o fizesse. Saddie já tinha sido alertada quanto a seus comentários.

Genevieve guiou Emma até a bancada gigantesca no centro da cozinha. Ingredientes, panelas e utensílios aguardavam para serem utilizados. Emma viu sua receita impressa próximo a um saco de farinha de trigo. Damien, o mais novo confeiteiro contratado, foi quem se aproximou primeiro e entregou a Emma a parte de cima de um uniforme. Ela agradeceu e vestiu a peça, alisando o símbolo do restaurante bem em cima do coração.

— Tudo bem, podemos começar. – Genevieve parecia ansiosa pra aquilo, como se fosse descobrir algum tipo de segredo.

Saddie e Nicholas riram no fundo da sala. Só então Emma se deu conta da presença dele ali, escondido atrás de outros dois cozinheiros, sentado em um banquinho alto de metal. Nicholas sorriu para ela e acenou com a cabeça. Emma devolveu o sorriso, mas precisou desviar o rosto para ele não notar o quanto mexia com ela. De repente a sala tinha ficado apertada e quente, e ela precisou coçar a garganta para falar.

— Talvez seja melhor dar uma olhada na receita. Posso ter cometido algum erro.

Annelise foi quem alcançou a receita e entregou a Emma. Por mais que tivesse certeza que não tinha anotado nada errado, nem os ingredientes, nem o modo de preparo, não faria mal eliminar a dúvida. Humildade era algo intrínseco nela e não via problema algum em pedir desculpas.

Mas não havia nada de errado na receita. Talvez a confeiteira deles tivesse se esquecido de algo, pulado alguma etapa. Emma não iria acusá-la. Em vez disso, arregaçou as mangas e se dirigiu a Annelise.

— Vamos preparar juntas, ok? Eu faço uma e você, outra, e eu garanto que vão sair igualmente deliciosas.

Annelise assentiu. No instante seguinte estavam as duas misturando farinha e manteiga em tigelas, quebrando ovos e medindo xícaras de leite. Emma falava em voz alta cada ingrediente e passo que dava, mantendo sempre o sorriso no rosto. Os Belmore Willians, Damien e outros dois cozinheiros acompanhavam o processo em silêncio, com exceção de Genevieve que fazia perguntas ou completava algum pensamento de Emma.

Nicholas, do fundo da sala, mal piscava ao observá-la. A maneira como mexia manualmente a massa, a concentração nos olhos castanhos ao medir uma xícara de açúcar ou uma colher de fermento, e como se movia com graça para lá e para cá, explicando a receita como quem lê um conto de fadas para crianças. Aquilo era a alma de Emma, ele podia ver. E isso o encantou ainda mais.

— Você está babando, Nic. – Saddie o provocou, mas ele não deu atenção. Estava ocupado demais vendo Emma falar sobre a importância de deixar a massa bem lisa.

— Costumamos usar uma batedeira pra isso. É mais fácil e rápido. – Damien, do outro lado do balcão, respondeu.

— Eu gosto de bater a massa à mão. Minha avó me ensinou assim e ela costumava dizer que quanto mais caseiro o preparo, melhor. – Emma girava a colher com rapidez e habilidade, sem deixar uma gota sequer pingar no chão. Ao lado dela, Annelise respirou fundo e ela notou o incômodo da moça. – Mas isso não faz grande diferença. O importante é que a massa fique lisa.

Emma completou a massa amolecida com mais farinha até que criasse consistência suficiente para ser aberta sobre o balcão. Damien espalhou farinha de trigo sobre a superfície e as duas confeiteiras começaram a esticar a massa com rolos de macarrão, em seguida cobriram o fundo e as laterais onduladas das formas. Reservaram parte da massa e, então,partiram para o recheio. Com a mesma agilidade e concentração, elas derreteram chocolate no fogo, misturaram os demais ingredientes e completaram com as nozes processadas. Annelise e Emma encheram suas formas, cobriram com o restante da massa e levaram ao forno.

— Agora é só esperar. – Emma sorriu, limpando os dedos em um pano de prato.

— O cheiro já está ótimo. – Saddie passou o dedo na panela do recheio, fazendo um sinal positivo para Emma ao provar. Estava realmente delicioso e Emma sussurrou um agradecimento. Annelise, próximo ao balcão, retirou a touca e pediu licença, caminhando apressada para fora da cozinha. O coque em seu cabelo preto e escorrido desmanchava a medida que se afastava. – Não ligue pra ela. Annelise está acostumada a ser o centro das atenções na cozinha. Ela não aguenta ser superada.

Era verdade que ali todos reconheciam o esforço e talento de Annelise, mas também era verdade que sabiam o quanto ela gostava de ser elogiada, apreciada e parabenizada por sua criações. Era uma ótima confeiteira, não havia como discordar disso, mas, no quesito humildade, Annelise Johnson precisava aprender algumas lições.

Annelise se dedicava tanto ao trabalho que, às vezes, se esquecia que era humana e cometia erros. Precisava se recordar de que nunca seria tarde demais para aprender alguma coisa e que perfeição em sua totalidade jamais existiria. Às vezes o fundinho queimado do biscoito ou a bolinha na massa da panqueca era o que os deixavam realmente saborosos.

— Eu não estou aqui para superar ninguém. – a voz de Emma soou baixa demais, mas isso não impediu os outros de ouvirem.

Minutos depois, quando Annelise já estava de volta e o cheiro doce das tortas preenchiam o nariz de todos, Emma retirou as formas do forno e deixou sobre o balcão. Todos pareciam ansiosos para experimentar, como se tivessem participado de uma experiência científica. Damien colocou pratos e talheres a disposição de Emma, que serviu cada um, recebendo sorrisos e agradecimentos em troca.

— Meu Deus, Emma! Isso está maravilhoso! – Saddie elogiou, devorando seu pedaço ao lado do irmão.

Emma viu, com satisfação, todos concordarem com acenos de cabeça e polegares erguidos. Os gemidos de prazer de cada um ao levar uma garfada à boca era um som mágico que Emma guardaria no coração, como fazia cada vez que um cliente se deliciava com suas receitas. Annelise era a única que parecia emburrada na sala, observando o pedaço que lhe fora servido como se fosse algum tipo de caixa mágica que precisava desvendar. Muito paciente, Emma se aproximou, parando ao lado dela.

— Eu precisei de anos para chegar ao ponto da minha avó. Ninguém acerta de primeira, cozinhar é sempre um aprendizado.

Ela não tinha nenhuma intenção de ofender, mas Annelise entendeu o contrário.

— Estudei anos para isso. Não preciso que me ensine a cozinhar.

De cara fechada, Annelise recolheu sua touca e saiu pisando do duro. A porta fez um ruído alto quando ela a empurrou com força, sumindo logo em seguida da vista de Emma. Todos olharam de onde Annelise havia partido para seus pratos, constrangidos, depois George, um dos cozinheiros, disse que precisava ir ao mercado. Ele levou o outro chef e Damien para fora. Genevieve e Vincent agradeceram a Emma e disseram que ela era bem-vinda para aparecer sempre que quisesse. Saddie a convidou para jantar qualquer dia, então acompanhou os pais para fora. Nicholas foi o único a permanecer na cozinha, e, ao se dar conta disso, Emma se virou, tímida de repente.

— Minha mãe tinha razão. A maneira como você cozinha é diferente.

De pé, Nicholas aproximou-se para olhar o rosto dela. Emma estava curvada sobre o balcão, passando um pano úmido para limpar a sujeira deixada pela farinha de trigo.

— Eu só cozinho com amor. É claro que estudei para ser uma chef confeiteira, mas não fiz milhares de curso no exterior ou trabalhei na cozinha de grandes nomes da culinária. Na verdade, a única grande chef com a qual trabalhei foi minha avó e tudo que ela aprendeu foi com a mãe dela. Ela não tinha nenhum diploma ou prêmio, mas era a melhor cozinheira que já conheci.

A maneira como Emma falou da avó acendeu ainda mais o coração de Nicholas. Ele pôde sentir a chama arder, assim como a viu brilhar nos olhos claros de Emma. Finalmente tinha encontrado alguém que tinha a mesma paixão pelo próprio trabalho quanto ele. Seus pais e Saddie costumavam dizer que ele tinha aquele brilho inflamado nos olhos quando falava dos cavalos do haras.

Impelido talvez pela força e paixão das palavras dela, Nicholas se aproximou mais, até que seu peito estivesse colado às costas dela. Emma sentiu a respiração quente e o hálito em seu pescoço. Virou-se imediatamente, dando de cara com Nicholas Belmore Willians e seu belo par de olhos cor de centeio admirando-a. Ele tinha um olhar sério, mas ela também conseguiu notar algo mais, talvez uma espécie de confusão ou algo parecido, como se ele quisesse saber tudo sobre ela, como se ela despertasse nele curiosidade e encanto. Ela sentiu as mãos firmes e grandes de Nicholas segurarem sua cintura. Em momento algum ele deixou de analisar cada traço no rosto delicado de Emma. Ela estava sem a touca de cozinha agora, com os cabelos castanhos na altura dos ombros presos num rabo de cavalo pequeno.

Emma também não conseguia desviar os olhos dele. A pele levemente bronzeada de sol, as sobrancelhas extremamente grossas, a boca tão vermelha quanto uma cereja. Nicholas parecia uma pintura feita por anjos, ou, melhor ainda, por Deus. Sem que percebesse, a mão de Emma foi parar na bochecha dele.

— Nicholas...

O modo como seu nome soou pronunciado pelos lábios dela foi suficiente para aumentar a chama dentro dele. Nicholas agarrou Emma subitamente, juntando seus quadris, e a olhou como se o mundo estivesse acabando. Então a beijou calorosamente. Os lábios de Nicholas devoraram os de Emma como quem prova a mais doce e suculenta das maçãs, sorvendo cada gota da essência e deliciando-se com o sabor. Emma não sabia dizer de onde veio aquilo, aquele rebuliço todo dentro dela, mas retribuiu o beijo com a mesma intensidade.

Nenhum dos dois havia notado, mas bem acima deles, no suporte onde ficavam penduradas milhares de panelas, pendia um ramo de visco. Saddie havia passado no restaurante na semana anterior e trazido as toalhas de Natal que a mãe encomendara para as mesas do restaurante. Ela achou que um pouco de boa sorte não fariam mal a ninguém, por isso pediu permissão para a mãe para voltar lá e colocar alguns enfeites. Damien foi quem a ajudou a pendurar os viscos e, enquanto segurava as escadas para ela, ouviu com atenção a jovem contar a história sobre o beijo que um casal deveria dar embaixo do ramo.

Nicholas e Emma estavam entregues ao beijo apaixonado quando Annelise empurrou a porta da cozinha novamente.

— Eu esqueci... – ela se interrompeu, surpreendendo-se com a cena.

Assim como tantas outras mulheres, Annelise Johnson também tivera uma queda por Nicholas. Tinha se mostrado interessada no rapaz assim que foram apresentados, quando ele voltou para Abberville depois de uma longa temporada fora se especializando em equinos. Tudo que conseguira fora um beijo e nada mais, e já que não tinha dado certo, como a boa orgulhosa que era, ligou botãozinho do desinteresse e seguiu em frente. Agora ela via Nicholas apenas como o filho bonito de seus patrões.

— Esqueci minhas chaves por aqui.

Emma e Nicholas pareciam tensos e sem jeito ao ouvirem a voz de Annelise. Ela deu a volta no balcão até um dos bancos de metal no fundo da cozinha onde tinha deixado as chaves da motocicleta. Sentindo-se estranha com a situação, apressou-se em sair dali. Nicholas e Emma só voltaram a olhar um para o outro quando já não era possível ouvir os passos da chef confeiteira do outro lado da porta.

Emma riu baixinho, cobrindo a boca com a mão. Por dentro seu coração disparava feito uma britadeira.

— É quase uma da tarde. Nós podíamos sair para almoçar – sugeriu Nicholas, tornando a se aproximar dela.

— Uma da tarde? Meu Deus, Teddy!

Ela não tinha visto a hora passar. Chegou aqui por volta das dez da manhã e agora já passava do meio-dia. Teddy podia ficar entretido com o grupo de voluntários, as roupas de palhaço e as brincadeiras, mas a hora do almoço deles era indispensável e ele com certeza notou a falta de Emma.

— Me desculpe, Nicholas. Eu preciso ir.

Ela juntou suas coisas rapidamente. Se corresse, conseguiria pelo menos ajudá-lo com a sobremesa – aquela gelatina sem gosto ou salada de frutas. Teddy provavelmente teria bancando o difícil sem Emma por perto, então ela ainda tinha algum tempo.

Jogou o uniforme da cozinha dos Belmore Willians sobre o balcão, pegou sua bolsa e correu para a porta, não se importando com a aparência desleixada que deveria estar depois de horas com o cabelo preso na touca e os braços ainda sujos com resquícios de farinha. Ela nem notou a mancha de chocolate na calça jeans clara, apenas correu para fora do restaurante, deixando Nicholas para trás mais uma vez.

[...]

Nicholas mal dormiu aquela noite. Revirou tantas vezes na cama que desistiu dela, e, às três da manhã, estava na cozinha tomando uma caneca de café bem forte.

O beijo que trocou com Emma não lhe saía da cabeça. A forma como o corpo dela se moldou ao dele, a maciez dos lábios, o cheiro adocicado suave, o aconchego que sentiu. Ele nunca imaginou que uma mulher que mal conhecia pudesse lhe despertar tantas sensações. Nunca se apaixonara de verdade por ninguém. Fugia de relacionamentos superficiais sem se importar com a quantidade de tempo que passasse sozinho. Seu foco era o trabalho e a família e não via qualquer motivo suficiente para mudar isso.

Até agora. Até Emma Winscow surgir em sua vida.

Tivera apenas três encontros com ela, mas a sensação na boca do estômago e o jeito estranho como seu coração batia lhe dizia que quantidade não importava, que ela era especial. Pela primeira vez perdeu o sono por uma mulher, mas Emma valia o incômodo. Ele sabia que valia.

Depois de tomar café com os pais e Saddie, Nicholas foi para o haras. Ajudou os outros dois funcionários da manhã a tirar os cavalos das baias, escová-los e limpar os cascos. Levou Ventania, um Mangalarga cinza de crista longa, para correr na areia, depois o alimentou e foi para o escritório.

Passava do meio-dia quando o estômago de Nicholas roncou. Tinha ficado a manhã toda fazendo listas de materiais e remédios para reabastecer o haras e negociando com um fazendeiro rico que queria comprar material genético de um dos cavalos premiados dos Belmore Willians. Ele deixou o escritório faminto, pegou o carro e dirigiu até o lado leste da cidade. Estacionou em frente à confeitaria minutos depois, observando a porta de vidro com um visco pendurado no topo. Pretendia convidar Emma para almoçar, então poderiam conversar sobre o beijo e se ela se sentia tão atordoada quanto ele. Foi então que viu Emma sair da confeitaria, apressada como sempre, e sorrindo. Ela carregava uma sacola de papel nas mãos e usava um cachecol tão grosso que ele quase não podia ver seu rosto. Nicholas curvou-se e abriu o porta-luvas, retirando de lá o par de luvas azuis com listras cinza que Emma esquecera no restaurante no dia anterior.

— Ei! Emma! – ele saltou do carro e deu dois passos largos para alcançá-la. A calçada estava cheia de neve derretendo no meio-fio.

Emma parou e olhou para ele, seu sorriso se alargando ainda mais.

— Nicholas! Oi! – Emma o abraçou. Nic não estava esperando por isso, e para ele acabou rápido demais.

— Eu... queria te ver. E te devolver isso. – Emma recebeu o par luvas, abrindo a boca como se tivesse ganhado um presente. – Você as esqueceu no restaurante.

— Achei que tinha perdido. Obrigada, Nicholas.

Emma sorria de forma tão alegre e doce que Nicholas não conseguia formular um pensamento coerente. Estava mesmo encantado por aquela linda mulher, gentil, simples e talentosa.

— Você está indo para algum lugar? Eu gostaria de levá-la para almoçar.

— Estou indo ao hospital. Almoço lá praticamente todos os dias.

—Você está bem? – de repente ele parecia preocupado com ela. O sorriso de Emma se alargou. Era boa a sensação de ter alguém se preocupando com ela outra vez. Permitiu se deliciar com aquilo. Nicholas era lindo, educado e atencioso, e fazia Emma acreditar que todos seus sonhos românticos eram possíveis.

— Eu estou ótima, Nicholas. Por que não vem comigo? Assim pode conhecer meu parceiro de almoço.

Apesar de parecer um tanto relutante, ele acabou por aceitar o convite de Emma. Ofereceu para irem de carro e ela aceitou, grata com a possibilidade chegar mais rápido ao hospital, e Nicholas avisou que iria parar em restaurante de culinária caseira para comprar o almoço deles.

Minutos depois estavam caminhando pelos corredores hospitalares do segundo andar com embalagens nas mãos. Nicholas percebeu a naturalidade com que Emma caminhava por aquele espaço, como cumprimentava todos os funcionários e até alguns visitantes daquele setor. Era a ala infantil, ele percebeu assim que passaram por uma porta automática, e a tristeza abateu seu coração ao ler Oncologia em uma placa.

Ela abriu a porta ao chegar em um dos quartos.

— Onde está meu parceiro de comida? – um enorme sorriso iluminou o rosto de Emma quando colocou a cabeça para dentro do quarto.

— Em, você chegou! Advinha só? Eu já comi tudo. – Teddy contou, orgulhoso. Ele ergueu o prato da bandeja para mostrar como estava vazio.

— Como é? Então os milagres de Natal acontecem de verdade? – brincou ela. Caminhou até o irmão e sentou-se na beirada da cama, cutucando a barriga do menino.

— Você está atrasada. – Teddy acusou. Tomou o último gole do suco de laranja e Sarah, a enfermeira, retirou a bandeja.

— Me desculpe, Teddy. Mas olha só, eu trouxe alguém para te conhecer.

Teddy seguiu o olhar da irmã, avistando um homem bastante alto na porta. Nicholas, que até então tinha se mantido distante, apenas observando, se aproximou. Parou ao pé da cama e sorriu para o garotinho sobre os lençóis do hospital. Ele percebeu o quanto o menino estava magro e tinha manchas roxas nos braços, resultado de várias doses intravenosas, e como o cabelo loiro dele dava voltas precisando de um corte. Ainda assim Teddy Winscow parecia um pequeno anjo, com dentes pequeninos e olhos azuis tão brilhantes quanto o céu em um lindo dia ensolarado de verão.

— Teddy, esse é o Nicholas. – Emma virou-se para o rapaz por quem havia se apaixonado. – Nicholas, esse é meu irmãozinho Teddy.

Diante do olhar curioso do garoto, Nicholas esticou o braço com a mão em punho, fazendo um cumprimento de menino com Teddy, que soltou uma risadinha. Nicholas não havia parado para pensar que Emma também tinha uma família. De repente quis saber tudo que podia sobre ela.

— Você é amigo da minha irmã?

— Sou. E quero ser seu amigo também. Se estiver tudo bem pra você, é claro. – ele ergueu uma mão como que dizendo para Teddy que não queria pressioná-lo. A expressão brincalhona não deixou o rosto de Nicholas momento algum.

— É, eu acho que sim. Eu confio na Em, ela é esperta.

A fala orgulhosa de Teddy arrancou sorrisos dos demais. Emma aproveitou para apresentar Sarah a Nicholas, que trocaram cumprimentos e sorrisos simpáticos.

— Teddy, por que não conta a Emma e ao seu novo amigo o que o Doutor Jason disse? Com licença. – a enfermeira sugeriu antes de deixar o quarto com a bandeja nas mãos. Nicholas teve a impressão de achar o rosto de Sarah familiar quando a enfermeira passou por ele.

— O Doutor Jason disse que, se ficar tudo bem, eu posso ir para casa passar o Natal com você.

— O que? Não brinca! Isso é demais, Teddy! – Emma o abraçou apertado. Meu Deus, tinha chorado dias atrás imaginando que Teddy passaria o Natal nesse quarto sem graça. É claro que estaria ao lado dele, dando total apoio quando o irmão dissesse que aguentaria ficar acordado até meia-noite, mesmo sabendo que ele apagaria às dez e meia como aconteceu no ano anterior.

Só que ele mereceria mais. Merecia uma árvore com luzes, uma ceia de verdade e abrir presentes na manhã de Natal. Teddy merecia passar aquele feriado em casa, como em todos os anos, e isso iria acontecer. Ela fez um rápido agradecimento a Deus e aos pais enquanto afundava o rosto na pequena curva do pescoço do irmão.

Quando se afastaram, Emma tinha algumas lágrimas nos olhos, que ela logo tratou de secar. Nicholas, ainda meio sem jeito, mas completamente interessado naqueles dois, tocou o ombro de Emma e bagunçou os cabelos de Teddy. Na outra mão segurava a sacola com o almoço deles.

— Isso parece uma ótima notícia para se receber na semana de Natal.

— É ótima, sim. – Emma olhou de Nicholas para Teddy. – Esse Natal vai ser mesmo especial. – ela recordou o que Teddy havia dito há poucas semanas.

Teddy convidou Nicholas para se sentar na cama junto com eles e Emma passou para o outro lado, deixando o menino entre os dois. O menino passou a fazer perguntas sobre como eles se conheceram e com o que Nicholas trabalhava. Ficou encantado ao ouvir sobre o trabalho de veterinário do novo amigo e Nicholas prometeu levá-lo ao haras para ver os cavalos e montar.

Nic passou uma das embalagens de comida para Emma e eles começaram o almoço. Enquanto comiam, Emma contou à Teddy sobre o dia que Nic apareceu na confeitaria e depois sobre o concurso, e como foi divertido preparar a Torta do Teddy para a família dele no restaurante. Nicholas contou sobre Saddie e que a irmã adoraria conhecê-lo. O garoto ficou tão empolgado com os planos que, quando Brigit, a enfermeira do turno da noite, veio lhe colocar uma nova bolsa de soro, chegou a dizer que não se importava em tomar mais remédios hoje desde que isso o fizesse melhorar mais rápido.

Ele adormeceu pouco depois disso.

— Ele é incrível, Emma. – Nicholas elogiou, admirado.

Ambos caminhavam pelos corredores em direção à recepção do hospital. O sorriso dela se alargou e o coração ficou cheio de calor e orgulho ao ouvir as palavras dele sobre seu irmãozinho.

— Ele é sim. Teddy é tudo que tenho e eu sou tudo o que ele tem. Faço qualquer coisa pelo meu irmãozinho.

— Seus pais...?

— Eles morreram. Há três anos. Logo depois Teddy foi diagnosticado com mielofibrose e aqui estamos.

— Eu sinto muito. – E ele realmente sentia. Podia dimensionar a dor de Emma e Teddy, família era tudo para Nic.

— Eu também. – Emma suspirou. Então, tão rápido quando surgiu, a tristeza se foi e ela estava sorrindo novamente. – Obrigada por ficar aqui hoje. Significou muito para mim.

Os olhos deles se encontraram quando ficaram de frente um para o outro. Emma poderia ter dito que o fato de Nic passar aquela tarde com ela e seu irmão significava muito para Teddy, mas a verdade é que aquilo tinha tocado ainda mais fundo em seu coração. Ele havia sido tão gentil com seu irmãozinho, dado risada sem ficar cheio de dedos por causa da doença, respondido pacientemente cada pergunta que Teddy fizera e se interessado de verdade por tudo que os contaram. Emma jamais se esqueceria daquela tarde.

Nicholas segurou as mãos dela e curvou-se para beijá-la. Emma correspondeu sem pestanejar e quando terminou, viu tanta intensidade nos olhos de Nicholas que precisou se esforçar para manter as pernas firmes, que mais pareciam ter adquirido consistência de gelatina. Eles se despediram com um adeus e infinitas declarações silenciosas expressas no olhar. Nic foi embora e Emma deu a volta, indo buscar um café na cantina do hospital.

[...]

A imagem de Emma e Teddy no hospital não deixou a cabeça de Nicholas nas horas seguintes. Pela manhã, enquanto tomava café no sofá e respondia a emails de trabalho, Saddie se sentou ao lado dele e esperou. Ele sabia, só de olhar para ela, que a irmã queria respostas quanto ao que estava incomodando-o. Nicholas contou sobre o beijo que ele e Emma trocaram no restaurante, o que estava sentindo por ela e sobre o adorável irmãozinho dela no hospital.

Antes de qualquer coisa, Saddie abraçou Nicholas. Estava feliz por finalmente ver o irmão apaixonado e ainda por alguém tão legal como Emma. Depois começou a fazer perguntas sobre Teddy e os sentimentos de Nic, deixando o irmão tonto. Quando ela olhou para ele com a expressão de quem havia tido uma ideia de gênio e estalou os dedos, Nicholas teve certeza que a irmã iria aprontar algo. Em poucos minutos Saddie estava enviando mensagens pelo celular e fazendo anotações em um caderninho.

[...]

Na Véspera de Natal o hospital cheio. E não era de acidentados ou doentes na emergência.

No meio da tarde, Saddie Belmore Willians chegou ao Hospital de Abberville com uma verdadeira equipe e muita disposição. Os seguranças de sua casa carregavam caixas, guiados por enfermeiras em direção ao amplo refeitório. Dois garçons do restaurante, os cozinheiros e Annelise traziam embalagens e bandejas de comida. Vincent, pai de Nicholas, preparava seu famoso ponche de frutas sem álcool na cozinha da cantina. Damien e um casal de médicos organizavam as mesas cumpridas com toalhas de renda, pratos de louça, taças e talheres trazidos por Genevieve, que estava igualmente com a mão na massa, completando os arranjos com castiçais e velas. Um grupo de enfermeiros, sob o comando e ajuda de Saddie, colocava nas paredes enfeites e luzes pisca-pisca tirados das caixas trazidas pelos seguranças. Nicholas, que tinha buscado Emma mais cedo e explicado a ideia de Saddie, estava no alto de uma escada pendurando guirlandas com laços e viscos na estrutura de aço do teto da cantina. Emma, Sarah e o doutor Jason enfeitavam uma grande árvore de Natal próximo a entrada.

Toda a equipe da ala infantil, os funcionários do restaurante dos Belmore Willians e a família de Nicholas tinham se reunido com um único intuito: fazer uma noite mágica de Natal para as crianças que estavam internadas. Um médico de plantão e um casal de enfermeiros estavam cumprindo seus turnos com as crianças no terceiro andar, que não faziam ideia do que as aguardava lá embaixo. Tudo estava sendo feito com agilidade, dedicação e muito amor. Seria uma maravilhosa surpresa de Natal.

Teddy não estava no hospital. Ele havia recebido alta no dia anterior e Emma tinha dado um jeitinho de convencê-lo a ficar com Trudie enquanto ela fugia para o hospital com Nicholas, sem contar ao irmão o motivo disso.

Quando a noite começou a cair, Saddie agradeceu a ajuda de todos e os mandou para casa, avisando com seu jeitinho carinhoso e exigente para estarem de volta às oito.

E assim foi.

Duas enfermeiras se encarregaram de trazer as crianças para o refeitório. Algumas delas tinham um suporte com soro carregado por um adulto, duas crianças estavam em cadeiras de rodas e o restante caminhava animado ao lado dos pais ou responsáveis. Elas foram conduzidas para baixo e nada no mundo seria suficiente para pagar a expressão no rosto delas ao verem a grandiosa Ceia Natalina. A maioria dos pais caiu no choro assim que entrou, e a emoção dos demais adultos no recinto não foi menor. Até Annelise, que parecia estar sempre de cara fechada, se emocionou. A enfermeira Sarah, que Emma descobrira aquela tarde ser irmã de Annelise, abraçou a irmã e repousou a cabeça no ombro dela.

Todos estavam impressionados com o trabalho realizado em equipe. Não só as crianças estavam recebendo aquele presente, mas todos do hospital que se dedicavam a elas. Era algo feito por todos e para todos, uma bela representação do espírito natalino.    

O doutor Jason apareceu com uma garotinha sobre os ombros. Teddy, que havia sido trazido por Trudie ao hospital e aguardava com seus amiguinhos de tratamento, largou a mão de Brigit assim que avistou Emma em um canto do refeitório. Ele correu para ela, sendo pego no ar assim que se atirou com toda confiança do mundo nos braços da irmã. Emma o beijou nas duas bochechas.

— Que demais, Em! Foram vocês que fizeram tudo isso?

Emma assentiu. Ao lado dela, Nicholas sorria para Teddy.

— A ideia foi da irmã do Nicholas, a Saddie. Pode agradecê-la depois. Mas agora, eu tenho uma surpresa pra você.

Sem nenhuma dificuldade, Emma carregou Teddy até a árvore de Natal próximo da entrada. O garotinho sorriu ainda mais ao admirar os enfeites natalinos e as luzes pisca-pisca. O pinheiro de plástico tinha a altura de Nicholas e fora doado ao hospital por Vincent.

— Faltou a estrela, Em. Bem ali. – Teddy apontou o topo desnudo da árvore e fez biquinho.

— Essa é a surpresa. Nicholas?!

Diante da deixa dela, Nicholas entregou a grande estrela prateada ao garoto. Emma ergueu Teddy para que alcançasse e ele colocou a estrela na ponta, completando a decoração da árvore. O grande sorriso no rosto dos irmãos Winscow era a mais bela imagem de felicidade, amor e companheirismo.

— Viu só? Agora não falta mais nada. – Emma o beijou novamente e colocou o irmão de volta no chão. Teddy olhou da árvore iluminada para irmã algumas vezes antes de correr para agarrar as pernas de Emma. Escondeu o rosto nas coxas dela e quando Emma conseguiu fazê-lo erguer a cabeça, viu que Teddy estava chorando.

Ela ficou de joelhos no mesmo instante.

— O que foi, Teddy? Era pra você estar feliz.

— Eu estou feliz, Emma. É choro de alegria. – Com uma mão, ele secou os olhinhos azuis. – Obrigado, Em. Esse é o melhor Natal de todos!

Com os bracinhos ao redor do pescoço dela, Teddy expressou toda emoção que estava sentindo em seu coraçãozinho. Em seguida desgrudou dela para abraçar Nicholas e recebeu um beijo nos cabelos enquanto estava no colo do homem que conquistara o coração de sua irmã. Quando voltou para o chão, correu para se juntar as outras crianças em uma das mesas.

Depois que o jantar foi servido e todos estavam satisfeitos, um dos médicos oncologistas plugou o celular no pequeno rádio trazido da área de recreação e várias pessoas se juntaram no centro para dançar. Vincent ofereceu o braço à esposa, Saddie arrastou Damien para o meio do salão e até Annelise se juntou ao Dr. Jason em uma dança desengonçada enquanto davam às mãos a uma linda garotinha com cateter no nariz.

Nicholas observou cada um ali presente, a particularidade de cada cena. Alguma atmosfera incrível de comunhão e empatia os unia. A intensidade daquilo o deixava sem fôlego. As coisas tinham mesmo dado certo naquele ano. Uma grande revista gastronômica havia publicado uma matéria sobre o concurso, tecendo inúmeros elogios a culinária e iniciativa dos Belmore Willians, além de ter dedicado um espaço para falar da deliciosa Torta do Teddy. Sua família e Emma estavam nas nuvens. E ele havia feito ótimos negócios no haras e estava até pensando em estudar mais sobre genética e reprodução voltada para equinos.

Pela primeira vez, Nicholas Belmore Willians estava acreditando de verdade no espírito e poder de Natal.

[...]

Agora a música que tocava era lenta. Emma tinha um largo sorriso enquanto dançava com os braços em torno do pescoço de Nicholas.

— Isso está sendo uma bela despedida.

— Despedida? – ele parou no mesmo instante, as sobrancelhas grossas e um tantinho bagunçadas arqueadas em sinal de surpresa. Uma surpresa nada agradável.

Emma suspirou. As mãos de Nicholas repousavam na cintura dela como se o lugar tivesse sido feito para isso. O calor que emanava delas penetrava até os ossos de Emma e ela desejou que essa noite nunca acabasse.

— Teddy e eu estamos indo para Atlanta em janeiro. Ele vai começar a quimioterapia novamente e depois passará por um transplante de medula.

Nicholas ficou arrasado diante das palavras dela. Conhecia Emma há pouco menos de um mês e já iria perdê-la. Nunca tinha se apaixonado e a primeira mulher por quem isso aconteceu iria embora. Mal aprendera a lidar com esse sentimento avassalador que era o amor e já teria que aprender a enfrentar a dor que ele causava.

Ele apertou a cintura dela como se isso pudesse mantê-la ali para sempre.

— Quanto tempo?

— O tempo que for necessário para Teddy se recuperar. – Não houve qualquer sinal de hesitação nas palavras dela. A expressão de determinação no rosto de Emma se transformou em tristeza diante da desolação que viu na face de Nicholas. Ela ficou na ponta dos pés e afundou o rosto na curva do pescoço dele. – Eu sinto muito.

— Eu não. – A resposta dele não passou de um sussurro no ouvido dela.

A música pareceu cada vez mais distante enquanto eles voltavam a se mexer lentamente. Emma cheirou o ombro de Nicholas, absorvendo o aroma delicioso do perfume masculino, e manteve o queixo apoiado ali. O olhar dela era distante enquanto ele a conduzia lentamente pelo salão. Imagens do que ela e Nic tinham vivido em tão pouco tempo passaram por sua mente, assim como do que ainda poderiam viver. Ela queria ir para Atlanta, Teddy vinha antes de qualquer coisa ou pessoa no mundo, mas isso não significava que não iria lamentar a partida.

E ele pensava como ela. Olhou para a irmã dançando com Damien há poucos passos de distância. O sorriso dela era capaz de iluminar a cidade inteira e derreter todo gelo de inverno. Nicholas daria a vida por Saddie, por isso não podia lamentar o fato de Emma se mudar para Atlanta pelo irmão. Mesmo que isso significasse não vê-la por tempo indeterminado. De repente a ideia de acreditar em milagres não era mais absurda e ele rezaria por Teddy mais vezes do que já pretendia fazer.

Quando a música lenta terminou, sendo substituída por batidas de pop, o casal de afastou o suficiente para olhar nos olhos um do outro. Foi então que Nicholas Belmore Wilians soube. Não poderia deixá-la ir. Agora que tinha experimentado esse tipo de amor, não iria deixá-lo escapar pelos vãos dos dedos. Precisava explorar e sorver até a última gota daquele sentimento, para então senti-lo encher seu coração novamente, dia após dia. E queria isso com Emma.

— Eu vou com você. – ele disse.

— Como é?

— Vou para Atlanta com você e Teddy.

— Nicholas, você não pode... – ela ia dizer que ele não podia largar tudo que tinha e ir para longe apenas para ficar com ela. Ele tinha família, trabalho, uma vida em Abberville. Era loucura.

— Eu acabei de te conhecer, e eu não vou perdê-la, Emma. – havia tanta certeza e sinceridade na voz de Nicholas. Ele percebeu no olhar de Emma que ela iria tentar dissuadi-lo exatamente por conta disso, por se conhecerem há tão pouco tempo, por sequer definirem sua relação ou exporem seus sentimentos. – Eu não preciso saber toda sua história, pelo menos não agora. O que eu sei sobre você é suficiente para me fazer pegar o próximo vôo para Atlanta e alugar um apartamento bem na frente do seu. – Emma riu das palavras dele. – Então, o que me diz, Emma Winscow? Vamos para Atlanta juntos?

O brilho nos olhos de Nicholas e o sorriso em seu rosto bastaram para convencer Emma de que ele estava falando sério, que estava ansioso para embarcar nessa aventura com ela e Teddy. O coração dela batia enlouquecido nos ouvidos antes de responder.

— Está bem, Nic. Vamos para Atlanta. Juntos.

No segundo seguinte ela estava nos braços fortes de Nic outra vez. Emma o abraçou com tanta gratidão por ele dar essa chance aos dois que Nicholas podia sentir toda a força dela em seus músculos. Ele ergueu o queixo de Emma e uniu os lábios aos dela em um beijo cheio de emoções, sentimentos, aventuras e momentos que ambos desejavam viver.

Juntos.

Em Atlanta ou onde quer que fosse.

Nem Emma ou Nicholas notaram o belo ramo de visco balançando sobre suas cabeças, presente como um velho padrinho cheio de bênçãos para dar.

Fim


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Notas finais do capítulo

Espero de todo coração que tenham gostado.
Deixe um comentário se quiser, responderei com todo amor.
Obrigada, docinhos! Feliz festas de fim de ano!



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