Semente Tayla escrita por ADivas


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Olá, galerinhaaa.

O capítulo de hoje narra um dos acontecimentos mais importantes do enredo. Não podia deixar esse dia passar sem uma apresentação digna para vocês.

Espero que gostem.



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Mesmo que com todas as represálias, diferenças e dificuldades, ser negro ainda não era um crime. Até a presente data, a cor da pele ainda não era o suficiente para que um cidadão fosse preso atrás das grades. No entanto, era justificativa velada que negros não tinham capacidade suficiente para exercerem grandes cargos, ou que fossem confiáveis o suficiente para andarem durante à noite, no perigo da escuridão. Ser negro dificultava muito as condições de vida do ser humano brasileiro.

Ser negro era justificativa fácil para que qualquer deslize fosse suficiente para condenar uma pessoa. As melhores iscas, aos olhos do governo, para servirem como peões nas tentativas de apaziguamentos de quase-guerras. A morte de um militar negro não teria tanto peso quanto a de um branco, não importava o qual majestoso fosse em seu trabalho.

Tayla não havia conseguido ingressar em uma universidade como Olívia. As condições financeiras eram totalmente diferentes, e os princípios para conseguir estudar em uma instituição superior foram fortemente modificados, acabando com qualquer tipo de cotas, além de exigirem uma taxa de inscrição cujo valor era bastante considerável, mesmo nas chamadas universidades públicas, que, de público, realmente não tinham nada. A própria Olívia sabia o sacrifício que havia sido conseguir aquele diploma.

Nos fundos da padaria em que Tayla trabalhava, residiam os donos do estabelecimento: um casal de idosos negros, adeptos também ao projeto do bairro da jovem Tayla. Por vezes, liberavam as sobras dos alimentos para a caridade, assim como os lanches que demoravam a ser vendidos. A jovem entendia que eles não podiam liberar a comida nova, por saber que era unicamente daquele comércio que tiravam seu sustento. Até mesmo o processo de aposentadoria foi modificado no Brasil, e ambos, apesar da idade excedida, não haviam conseguido dar entrada na aposentadoria. Eram quase tão carentes quantos os vizinhos de Tayla.

A garota já trabalhava no local a alguns anos, sendo esse trabalho também a sua única forma de sustento. Claro que almejava mais, mas sabia que no momento, essa era a realidade, e dessa forma, se sentia grata pelo que tinha.

A porta da padaria foi aberta com força, trazendo à tona a pequena Sibelle, que mostrava para Tayla o mais doce sorriso que uma criança poderia ter. Mesmo que a placa indicasse que o estabelecimento já estivesse fechado, Sibelle sabia que a mulher gastava alguns minutos a mais para finalizar a contabilidade do dia.

— O que traz essa bela menina aqui essa hora? – Perguntou Tayla, os olhos correndo rapidamente do dinheiro em mãos para aquele rosto que mostrava que um dente havia sido extraído recentemente.

Todavia, os olhos da jovem negra correram rapidamente para o relógio no próprio pulso. Havia perdido um pouco do horário separando alguns sonhos e torradas para as crianças. Tais comidas seriam o suficiente para poderem programar um novo encontro nesse fim de semana. Olívia havia conseguido frutas frescas, além de outras doações, que, felizmente, nutririam muito bem os participantes da reunião. O coração de Tayla se regojizou só de imaginar a alegria dos pequenos.

— Uma coxinha, Tayla! Adivinha só quem ganhou um brinde por causa da prova.

— Aposto que foi uma menina bem banguelinha.

As crianças realmente conseguiam extrair a melhor parte da jovem negra. As crianças e Olívia. De certo, eram suas pessoas favoritas no mundo todo. E só de pensar que, quando chegasse em casa se depararia com o rosto preguiçoso de sua namorada, sentiu como se esfregassem um sorvete em sua barriga.

Olívia tinha os olhos acastanhados, quase sempre atentos a tudo que acontecia ao redor. Nesse ponto, elas se pareciam, porque a própria Tayla reconhecia que, fora de casa, todos os lugares gritavam por atenção e exigiam cuidado. Mas, dentro da sua pequena residência, dividindo as paredes com Olívia, sentia que a calmaria se fazia presente, mesmo quando tinha certeza que o mundo lá fora estava um completo caos.

A vida ensinara as garotas dividirem muito mais do que apenas objetos materiais. Ou lugares. Ou obrigações. Dividiam sentimentos, momentos e desejos por um mundo em que pudessem celebrar seu amor em paz.

Os dedos das mãos de Tayla encontravam conforto no emaranhado de fios que fazia no cabelo de Olívia, enquanto deitadas, interligavam os olhares. Os olhos profundamente pretos se perdiam nos acastanhados. Por vezes, o dedo indicador mais alvo desenhava sob e conforme o nariz de ponta gelada da jovem negra. Por outras, os dedos delicados de Tayla brincavam sobre as bochechas sempre coradas de Olívia, a vermelhidão sendo uma herança dos raios solares paraibanos.

Se aquilo não era amor, o universo tinha obrigação de criar outra palavra boa o suficiente para nomear o que aquelas meninas tinham.

Esses pensamentos sempre faziam nascer um sorriso espontâneo nos lábios de Tayla. Os pés estavam no chão, mas diante desses sentimentos, quase achava que podia voar.

Pedalava sua bicicleta, subindo com dificuldade a ladeira que a levaria para casa. Nos ouvidos, os fones ecoavam a melodia de Beautiful, uma antiga canção de uma cantora norte-americana chamada Christina Aguilera. Era o tipo de música que lembrava as pessoas das suas forças e dos seus valores, exaltando a unicidade de cada um, e assim, a perfeição singular de cada indivíduo, a sua maneira.

Viver em um mundo preconceituoso era como respirar areia: a inspiração é muito difícil e fazia uma grande pressão quando chegava nos pulmões. O medo de existir aprisionava e nada nunca era seguro o suficiente. Viver se tornava um desafio, cujo prêmio era a própria vida, que podia ser tomada ou podia continuar vivendo com o mesmo medo. Sempre.

Quando uma pessoa está crescendo e percebe que é alguém fora dos padrões, a insegurança se torna sua sombra mais fiel. Não só pelo medo da violência, mas pelo questionamento que: se nascemos e vivemos só uma vez, por que tínhamos, nessa única chance que temos, ser diferente do que é considerado normal?

Quando uma criança cresce ouvindo que ela foge do que é esperado, ela não vai querer continuar sendo o outsider. Tayla já foi essa criança. Ela não tinha noção que podia ser bonita a sua maneira, como Aguilera cantava. Não cresceu tendo uma referência negra em que pudesse se espelhar. Não existia uma heroína como ela, negra, pobre, cabelos cacheados, que gostava de outra mulher. Era como se não houvesse espaço para pessoas como ela. Então, na falta, ela decidiu completar o próprio buraco que tinha em sua existência. Não adiantava lutar contra o que ela era. Se não existiam boas referências, ela seria sua própria guia.

No fundo, Tayla desejava que um dia pudesse passar tanta inspiração para outras pessoas como Aguilera conseguiu através de Beautiful.

Mal sabia ela que seria semente.

O vento frio da noite já fazia com que seu nariz ficasse irritado. Não queria olhar o relógio, pois sabia que ele não seria seu amigo. Só de imaginar a posição dos ponteiros, seu corpo reagiu, temendo e afastando qualquer pensamento negativo.

O toque de recolher havia sido uma norma criada pelo governo com o pretexto de revistar qualquer pessoa que estivesse nas ruas fora do horário. Uma brecha fácil para capturar as pessoas e lotarem as cadeias.

A jovem negra já respirava com dificuldade quando chegou na esquina da rua que morava. O coração palpitava, cansado, mas quase explodiu quando percebeu as sirenes que indicavam o quanto estava ferrada. Que golpe de azar.

Havia uma viatura andando lentamente em sua direção, deixando a rua em contraste, ora iluminada de azul, ora de vermelho. Instintivamente, Tayla quis forçar os pés para aumentar a velocidade das suas pedaladas, todavia, o carro fez questão de tampar sua passagem. Ela se preparou. Para o que, não sabia, mas se preparou.

Dois policiais saíram do carro, as expressões duras. Os olhares, ausentes de piedade, fitaram a jovem da cabeça aos pés. Atrás deles, uma rua deserta. Forçando os olhos, Tayla quase podia ver a calçada da sua casa.

— Mãos na cabeça, pernas afastadas – A voz imperativa de um deles quase rasgou o coração da garota.

Sem demora, a jovem soltou a bicicleta e levou as duas mãos até a nuca, deixando os cotovelos longe do seu corpo. Tinha noção que qualquer movimento involuntário podia lhe custar a vida. Sua nova posição fez com que sua blusa subisse um pouco, possibilitando que os homens pudessem ver um pedaço da sua barriga, o suficiente para verem que não havia uma arma ali.

A camisa que os policiais usavam era uma mistura de verde e amarela, tendo seus nomes bordados de modo minúsculo no peito esquerdo. Armas estavam ameaçadoramente bem guardadas na cintura, além de outros aparelhos que, anteriormente, Tayla só conhecia pela televisão. Não gostaria de ter sido apresentada aos mesmos.

— Identificação! – Pediu o outro, a voz tão azeda quanto a do parceiro.

Engolindo em seco, Tayla tirou a mochila das costas lentamente, mas antes que pudesse abri-la para pegar seu RG, com ferocidade, um dos homens puxou a bolsa de suas mãos.

Ela o assistiu abrir o zíper da bolsa e vasculhar o que tinha dentro: seus documentos, os lanches das crianças – que, agora jogados no chão, não teriam como ser reaproveitados – e uma garrafa com água quase vazia. Tayla tentava manter o rosto inflexível, mas sentiu um queimor subir com velocidade por todo o seu corpo. Não sabia se era medo ou ódio.

— Tayla Menezes – Pronunciou o homem que puxou sua mochila, os olhos fixos na carteira de identidade da garota – Passagem pela polícia?

Ele não voltou a olhá-la quando perguntou. Apenas fitava a carteira, retirando um instrumento quadrado do bolso da sua camisa. Cabia facilmente na palma de sua mão. Com a voz seca, Tayla negou a sua pergunta, mas nenhum dos dois homens pareceu levar em consideração.

O homem encaixou a identidade de Tayla no instrumento quadrado, que soou um apito fino enquanto fazia surgir luzes verde, amarela e azul, como se estivesse carregando informações. Com dois apitos mais fortes, o instrumento piscou mais intensamente e o homem prestou atenção no visor do aparelho: apresentou uma foto da jovem, com alguns escritos que Tayla não conseguiu ver o que era.

— Limpa – O homem informou ao outro, que acenou a cabeça levemente, antes de voltar sua atenção para Tayla.

Aquele havia sido um dos mais novos aparelhos desenvolvidos pelo sistema de segurança do país. Através do Acusador era possível que os policiais ou militares tivessem informação instantânea sobre o histórico de crimes dos apreendidos Bastava inserir o documento de identificação do sujeito e através do visor do aparelho, as informações surgiam como mágica. Assim, andar com o RG havia se tornado outra norma brasileira. Quem fosse apreendido sem, era preso por Descumprimento da Ordem e Não-Contribuição com os Projetos de Segurança do País.

— Não sabe que esse é um horário em que cidadãos de bem devem estar em suas casas? – O outro policial perguntou. Não existia realmente interesse em sua voz. Ele se aproximou alguns passos a mais de Tayla, mas logo seu parceiro colocou a mão em seu ombro, freando-o.

— Ainda tem o outro aparelho – Não havia entusiasmado na voz desse também.

Tayla sabia qual seria o outro aparelho. Já tinha visto o criador do instrumento se gabar em uma entrevista na televisão. Lembrava que tinha debochado sem piedade do que, supostamente, agora seria seu passaporte para o inferno.

O policial que anteriormente estava com o Acusador entregou o outro aparelho para seu parceiro. O rastreador homossexual parecia uma arma, com uma ponta quadrada, lembrando a lente de uma câmera. Seu brilho demonstrava que estava novo em folha. Com grande azar, talvez Tayla fosse a primeira vítima daquele instrumento desgraçado.

O policial apontou a arma para o rosto de Tayla, puxando o gatilho com leveza. O interior da jovem clamava, com todas as forças possíveis, que houvesse um defeito ali. Pedido em vão, porque segundos depois, um clarão rosa saiu da ponta do rastreador, formando um quadrado de luz na face de sua vítima. A cor rosa cintilava tão forte que batia nas casas ao lado. Logo após, no meio do quadrado de luz, surgiram letrinhas brancas, com um chiado suave: lésbica.

Os segundos pareçam horas. Enquanto baixava o rastreador, os policiais se encararam por um breve momento. Foi depois de um leve acenar com a cabeça de um deles, que Tayla percebeu que o outro já havia pegado as algemas.

— Vai ter que vim conosco, senhorita – A voz do que estava com as algemas saiu arrastada. Pela primeira vez, havia um interesse ali

— Mas por quê? – Tayla se exaltou, afastando-se para trás, quase tropeçando em sua bicicleta caída. Ela sabia a resposta, mas a esperança não podia morrer – Eu estou limpa, como vocês conferiram checando minha identidade e minha mochila.

— Nem tudo está correto aqui – O policial continuou, voltando a andar em sua direção. As algemas chiavam em suas mãos.

— Cara, eu só quero ir pra casa. Depois de um dia inteiro de trabalho, eu só quero descansar, pra amanhã começar tudo outra vez.

Essa era a tentativa de Tayla de extrair qualquer resquício de humanidade que aqueles homens poderiam ter. Sabia que nem todos os policiais ou militares tinham um coração de pedra que nem o presidente. Muito deles só cumpriam ordens. Outros, só queriam os privilégios que essa classe trabalhista ganhava. Porém, ainda haviam aqueles que se escondiam e se apoiavam atrás dessas ordens para executar, sem piedade, o que realmente gostariam de fazer. Pobre Tayla que topou justamente com essa terceira opção.

— Acho que você vai descansar bastante no CCIS, garota – Disse o policial que estava mais distante. Embora parecesse impossível, tinha um pouco de humor no seu tom – Soares, pega o celular dela!

Ali, esquecido por completo no chão, estava o celular da jovem. Sabia que Aguilera já havia parado de cantar faz tempo. Mas quem procurasse mais profundamente, nele, encontraria muito mais do que as músicas favoritas de Tayla – que, nada tinham a ver com exaltações ao país.

Registrado com muita alegria, estavam os sorrisos das crianças, assim como os passos dos mais velhos na capoeira. No fundo, sabia que tinha sido uma péssima ideia fotografá-los. Mas que mal podia ter em, uma única vez na vida, registrar a imagem da felicidade de um povo tão sofrido? Foi essa pergunta, feita por Olívia, que havia convencido Tayla.

Olívia.

Com um soco imaginário, a jovem negra sentiu seu coração ser atingido. Havia fotos de Olívia também. Fotos que registravam seus momentos felizes. Fotos que, aos olhos de qualquer pessoa do governo seriam pecaminosas, ainda que, cada detalhe que existisse ali, aos olhos humanos, eram só reflexos do que era o amor romântico. Não ia entregar quem amava assim, de bandeja.

Então, em um impulso bem pensado, Tayla ergueu o joelho e, com força, depositou o pé sobre o celular, amassando-o e partindo a tela em milhões de pedacinhos. Porém, não mais do que o próprio coração.

— Filha da puta! – Xingou o policial mais próximo, quebrando a distância que ainda os separava.

Um pestanejar foi o suficiente para que a garota sentisse a mão pesada do homem em seu rosto. Ainda desnorteada por toda a situação, Tayla nem tentou se manter firme fisicamente. Já por dentro, sabia que tinha feito a coisa certa.

Caída, sentiu as palmas das mãos raladas.

— Negrinha do cão, vem cá – Continuou o policial, se curvando para cima da garota.

Pelo canto do olho, ao vê-lo se abaixar para pegá-la, Tayla moveu a perna, fazendo um arco no ar e acertando em cheio o rosto do policial. O impacto foi tal, que este se desequilibrou, precisando se apoiar com os dois braços no chão, evitando a queda.

Tayla já estava em pé, os olhos fixos em seu oponente, que praguejava e segurava o nariz fortemente. Do outro lado, o parceiro já havia sacado sua arma, apontando, rígido, para jovem negra.

— Sua puta imunda! – Disse, fanho, o homem que havia sido atingido. Seus dedos e nariz mostravam um líquido vermelho e pastoso. O sangue do negro e do branco sempre teriam a mesma coloração – Eu só não vou derrubar o teu sangue aqui, agora, porque eu honro a minha nação e sei que o meu país precisa estudar para vencer aberrações como você.

— Eu não tenho tanta piedade assim, então se você partir pra cima de mim, pode considerar ter seus miolos estourados – Avisou o outro, ainda mirando a arma para a cabeça de Tayla. Com um gesto, indicou que o parceiro algemasse a garota.

Tayla juntou os pulsos, os estendendo. As algemas apertaram seus braços e ela tentou tranquilizar a si própria. Parecia tão em vão, mas não queria apagar o fogo que a mantinha. O fogo que, por vinte e cinco anos, foi o que a sustentou para viver: esperança.

O policial machucado a conduziu para a viatura, uma mão amassando seus cachos com força e a outra, em suas costas, empurrando-a sem delicadeza para dentro do carro. Não poupando seus sentimentos, Tayla olhou em direção a sua casa, mal sabendo que seria a última vez que estaria naquela rua.

O carro seguiu, deixando para trás uma bicicleta caída cujas rodas ainda giravam; comidas que estavam sendo infestadas por formigas e um olhar curioso e repleto de lágrimas de uma das tantas crianças que enxergavam Tayla como referência.


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Notas finais do capítulo

Comentários, críticas construtivas e sugestões são sempre bem aceitas!

Abraços.



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