Yu-Gi-Oh! - O Segredo das Feras Sagradas escrita por Le Combattant


Capítulo 2
Não Estou Sozinho




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/771602/chapter/2

Página 64:  

O nome da substância é, para mim, até agora desconhecido. Aparentemente, trata-se de um metal pesado. Porém, sua composição simula os efeitos de longo prazo de um elemento radioativo. Portanto, há um duplo envenenamento: um que causa falência de órgãos; outro que acelera a produção de células, i.e., causa câncer.  
Trataram também de criar um antídoto, porque, como veremos no capítulo seguinte [...] 

 

Depois de conhecer David, testemunhar sua vitória contra Lucas, voltamos à casa onde estávamos hospedados, bebemos mais um pouco, a Clara tentou ficar com ele, mas passou mal antes de qualquer cafuné e, na manhã seguinte, após despedidas acompanhadas de muita água e remédios para a náusea, meu futuro colega de casa voltou para a capital paulista.  

Só cruzamos olhares novamente em 2014, dia cinco de janeiro.  
Naquela ocasião, mal trocamos palavras ao longo do dia, visto que saímos cedo e voltamos tarde. Haviam questões burocráticas no colégio antes mesmo das aulas começarem e da parte dele, talvez, algum artigo a ser escrito ou aula particular.   
No final do dia, todavia, tive minha oportunidade de conversar novamente com o “jornalista”. Naquela noite quente de verão, saí do banho deliciosamente gelado, troquei de roupas no próprio banheiro, e encontrei o rapaz sentado no sofá, digitando com muita pressa qualquer coisa.  

— Matéria pro seu jornal? — indaguei, secando o cabelo que (definitivamente) precisava de um corte.  

— Mais ou menos — Respostas enigmáticas, respostas enigmáticas!  

Sorri, fui até o outro lado do sofá e desenterrei das almofadas meu tablet. Desbloqueei a tela e mostrei a David as guias de meu navegador.  

— Que que tem? — perguntou ele, um pouco confuso e já vasculhando o bolso em busca de um cigarro. Não levou muito tempo para eu notar que essa era sua barreira natural para lutar com a culpa de mentir.  

As guias todas mostravam jornais online, revistas e sites de imprensa alternativa.  

— Eu disse pra você que sou formada, não disse? — Ele assentiu. — Eu não disse pra você que estou fazendo pesquisa para um mestrado. Sabe com o que trabalho? Imprensa. Faço uma discussão entre autores relevantes do século passado sobre as temáticas da imprensa atual, por isso, leio muito, inclusive as mídias alternativas.  

— E...?  

— E, que eu nunca vi seu nome em lugar algum.  

Tudo bem, eu sei o que você está pensando.  
Intrometida. Deixa o cara. Você não tem nada a ver com isso, etc.  
Não posso evitar.  

Na época que perdi minha mãe, uma série de coisas estranhas aconteceram. Pessoas chegaram perto de mim, machucaram meu coração e, de repente, minha mãe estava morta. A coisa toda é bem complexa. Daqui a pouco você chega nessa parte, teremos a deixa para isso.  

Mas entenda: perder um ente querido em circunstâncias bizarras molda você.  
Neste caso, moldou-me como alguém que não tolera mentiras em meu círculo de convivência.  

— Talvez... Você não pesquisou direito — As reticências foram para marcar a pausa do isqueiro.  

— Então, uma pesquisadora não sabe pesquisar?  

— Por que o interesse, moça? — O sorriso rápido com a pergunta não bastou para esconder o nervosismo que ele transpirava.  

— Sou muito curiosa.  

— Isso não é desculpa, caso eu alegue, digamos, que não devo explicações sobre meu trabalho para você.  

— Escuta... — Decidi ser sincera. — Passei por umas coisas pesadas no passado. Por gente que se aproximou do nada e fez um monte de merda com minha vida. Se você me ajudar a te entender, nossa relação será bem melhor.  

O “jornalista”, para mim, naquele momento, deixou de ser o personagem que estava escondido atrás da nuvem de nicotina.  

— Eu sei.  

O silêncio foi cortado pelo som do notebook sendo fechado, e pelo tablet voltando para as almofadas.  

— Sabe...?  

— Quem você é, do que está falando, etc. — Apenas esperei ele continuar. — Você é a campeã do torneio de 2010, não? Você também teve sua mãe assassinada. Tem posse de uma carta de Monstros de Duelo que vale essa casa e talvez mais uma porção de carros novos, jóias... Prossigo?  

— Quem é você?  

— Como eu disse, um jornalista. Mas, se eu tiver sorte, você, e nem ninguém, nunca vai achar para onde escrevo e sob qual pseudônimo.  

— Eu sou parte da sua reportagem? — indaguei, percebendo o suor frio que escorria pelo meu rosto. — Você escolheu essa casa para me usar? Escuta, eu não quero falar com a imprensa sobre isso e...  

— Foi só coincidência — Um copo grande e uma garrafa de uísque vagabundo apareceu na mão de David, que prosseguiu, num tom tão sério quanto preocupado: — Esse lugar é o ideal para mim. Centro de uma metrópole, escondido à plena vista. Invento uma ocupação qualquer, faço a minha parada das sombras. Do nada, você, logo você veio morar aqui. Por algum tempo, pensei em tirar proveito desse furo, porém, sua história é muito trágica e, no que diz respeito ao que estou escrevendo, é apenas uma evidência anedótica. Preciso de mais, e por isso estou nesse campeonato.  

— Você acha que se for longe o suficiente, farão o mesmo com você? — Liguei os pontos.  

— Esse é o plano.  

Naquele momento, tive raiva daquele idealismo narcisista disfarçado de altruísmo.  

— Escuta, não sei que quadrinhos você andou lendo, ou que filme andou vendo, mas na vida real as pessoas morrem quando mexem com essas coisas, sabe? Foi o que aconteceu com minha mãe e, se permite que eu aponte o óbvio, é o que vai acontecer com você também se...  

Pela primeira vez, o rapaz que aguardava o término das frases alheias com olhares perdidos para o horizonte interrompeu.  

— Você não é única que perdeu alguém nessa coisa toda.  

— Vingancinha? — debochei.  

Os olhos castanhos do jovem mergulharam no abismo da tristeza.  

— O nome que você dá é sua responsabilidade. A ação, é minha.  

Percebi que fui longe demais.  

— Desculpe — falei, respirando fundo. — Eu só... Esse assunto desperta muitas coisas aqui dentro.  

— Eu sei onde ele está.  

A frase de David foi seguida por um longo silêncio.  

— De quem...? De quem você...? — disse eu, trêmula.  

— De quem você acha? Do cara que surgiu do nada. Envenenou sua mãe. Sumiu.  

Olha ela aí, a deixa.  

Eu não menti. De fato, não sou uma duelista. Não mais.  
O “chefão” do meu baralho, o Dragão Alado de Rá, foi a carta raríssima que ganhei por vencer o torneio brasileiro de Monstros de Duelo, oferecido pela mesma Monstros das Sombras.  

Muita coisa estranha, no entanto, aconteceu no decurso de toda a competição. Para começar, nas quartas de finais ofereceram dez mil reais para que eu vendesse a partida para um tal Rafael.  

Não aceitei, venci com muito esforço o canalha. Uma semana depois, viramos melhores amigos. Depois de um tempo (muito curto, confesso meu demérito), namorados.  

Ele era tudo que minha família (e, devo dizer, eu mesma) queria: endinheirado, bonito e sedutor com as palavras num nível sobrenatural.  

Minha mãe e meu pai, dois médicos, não viam isso apenas com bons olhos, como também uma verdadeira negociação de sucesso. Uma vez que já apostavam em meu futuro como médica, o jovem endinheirado com futuro provável em engenharia era mais uma oportunidade de fazer crescer o capital da família Corleone.  

Aliás, seguindo o clichê de todo ítalo-paulista, aqui está o sobrenome que revela minha ascendência italiana.  

Na época que conheci melhor Rafael, meus pais, após irem em festas da Monstros das Sombras, discutir “assuntos de grande importância” e "reservados", começaram a comentar sobre “corrupção generalizada” e “coisas nojentas” que “davam medo”. Na época, ambos concordaram soturnos em não falar nada sobre o assunto. 

Acontece que, durante as semanas que ficamos juntos, Rafael provou ser um mentiroso patológico e um estranho “estudante de engenharia” muito acostumado com encontros misteriosos e privados com senhores bem mais velhos e ricos.  

Pouco depois da final, em que venci, minha mãe foi diagnosticada com câncer em estágio avançado num exame de rotina, sem nenhum sinal disso em todo seu histórico médico, e, em um dia qualquer, descobri Rafael pingando gotas de algo incolor e inodoro em um copo de água para ela.  

Depois de algumas semanas, ela morreu.  

Eu liguei os pontos, confrontei Rafael. O desgraçado não apenas negou, como sumiu poucas horas depois. Levei o caso até a polícia e, quando não deu resultados, para a imprensa. Resultado: o cara era um indigente caminhante. Ninguém sabia de sua existência, nem de sua família. 

Meu pai começou a alucinar, gritava coisas impronunciáveis, e acusava a Monstros das Sombras de alguma relação com isso.Foi internado pouco depois num hospital psiquiátrico, e logo fui rotulada por parte da mídia sensacionalista como uma louca por influência genética. Sumi da mídia, da vida pública em geral.  

Meu pai recuperou a sanidade para, depois, com a pensão de minha mãe, pegar a aposentadoria mais cedo e ir torrar tudo em algum lugar da Europa que ele mesmo insistiu em não revelar. Está lá até hoje, em silêncio.  

Esse episódio da minha vida ensinou duas coisas: primeira, nunca conviver com mentiras, elas matam; segunda, fazer o que quero da minha vida, não o que querem, visto que até meu pai largou minha companhia para fazer o mesmo.

Por isso, enterrei as toneladas de livros e apostilas para entrar na faculdade de medicina e fui realizar meu sonho de cursar filosofia. O seguro de vida da minha mãe garantiu meu sustento na época da faculdade, e cá estou: filósofa e professora.  

— Como? Por que está me falando isso? — questionei nervosa.  

— Para começar, para que você saiba que há algo muito maior por trás disso. Eu não achei o tal Miguel, Rafael, Gabriel, ou, seja lá qual nome ele esteja usando agora, por vasculhar seu caso, porém, por muitos outros. Ele estará nesse torneio. Provavelmente, e eventualmente, duelarei com ele e espero ser confrontado com uma tentativa de assassinato também, para sobreviver e botar esse bandido e quem quer que mande nele num buraco bem fundo.  

— Que “algo maior” você está se referindo?  

— A Monstros das Sombras articulou uma verdadeira peneira para duelistas, desde que assumiu o monopólio dos eventos de duelo no início dos anos 2000. Mais que isso, eles também controlam as apostas, justamente com essa peneira.  

— Como assim?  

— É simples: só chegam nos torneios mundiais que saem na televisão, e rolam nos grandes estádios, quem eles querem que cheguem. Quem é controlável, e pode ser manipulado de acordo com as apostas. Por isso te subornaram, como você disse naquela reportagem em 2011. Era um teste, para saber se você poderia ceder e virar mais um dos peões. 

— Isso inclui assassinatos por qual motivo...?  

David coçou o queixo. Estava na sua quinta dose de uísque.  

— Até onde acho, a questão não envolve só apostas. Eles têm o monopólio da exibição do evento no mundo todo e, mesmo assim, parece não existir esforço de parte alguma para derrubá-los. Eu acho... Que tem algo ver com governos, outras corporações, sei lá. Afinal... Ninguém silencia o mundo todo.  

Uma pausa, dois novos cigarros, duas novas doses de uísque. 

— Você bebe, bebe e bebe, e não fica bêbado. Além disso, fuma um cigarro atrás do outro — observei, tragando meu próprio cilindro tóxico. — Alcoólatra e fumante. Apesar de jovem. 

O moço relaxou o corpo, olhando para o nada, como habitual. 

— Como eu disse, você não foi a única que perdeu alguém para eles.  

— O seu plano é péssimo e arriscado, sabia?  

— Eu não estou sozinho — Aquela afirmação trazia riscos para ele, entretanto, saiu de seus lábios tranquila e confiantemente. 

— Por que confia tanto em mim?  

— Se eu não confiasse em alguém que perdeu tudo, eu não teria caráter.  

— Diga-se de passagem, eu não sou pesquisadora dessa área. Só joguei um verde.  

Nós dois permitimos um alívio do assunto pesado e gargalhamos.  

— Se você quer ir longe o suficiente para provar as desgraças que esta corporação faz, você vai precisar uma treinadora com experiência na arte de vencer — O sorriso silencioso de David foi o começo de nossa parceria.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Yu-Gi-Oh! - O Segredo das Feras Sagradas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.