Eclíptica escrita por Lehninger


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Este é um plot que tenho guardado há quase cinco anos. Desenvolver ele agora me traz uma nostalgia surreal, mas isso é bom. Não estranhem a repetição de nomes no lugar de substituições harmônicas, a narração é feita em primeira pessoa

Boa leitura! ♥



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Dizem que Dégel é um santo exemplar. Elogiam suas palavras e seu silêncio, as atitudes e orientações, como o faz e como o deixa de fazer; sua postura como um todo. Muitos lhe comparam, ou melhor, equiparam a Albafica, alegando que ambos são os cavaleiros mais honrados de todo o Santuário.

O que, de certa forma, não concordo. Dégel e Albafica são realmente honrados, mas colocá-los acima do restante não parece certo. Todos os cavaleiros dão o máximo de si, honram suas armaduras e a deusa pela qual lutam. É estranho falar “deusa” quando... Ela sou eu.

Kardia não perde uma oportunidade de brincar com os elogios direcionados a Dégel, mas, ao mesmo tempo, admite que são apropriados. Admira Dégel e não esconde isso, além de se mostrar especialmente grato quanto aos favores que lhe são prestados. Afinal... Kardia, literalmente, deve sua vida a Dégel.

Embora fôssemos próximos, e, logo, eu soubesse bastante de sua vida, percebi que sabia muito pouco quando o vi pela primeira vez sob os cuidados urgentes de Dégel. Enquanto eu corria de Escorpião para Aquário berrando chamados ao guardião desta casa, pude vê-lo correndo na direção oposta, carregando-me consigo sem relembrar de toda sua cordialidade quanto a mim. Diferente de Kardia, que me tinha como Sasha acima de Atena, Dégel sempre nutriu uma postura perante a Atena, não a Sasha. Foi a primeira vez que vi o santo de Aquário esquecer as próprias formalidades, cometendo atos que só lhe foram perceptíveis certo tempo depois. Nos momentos em que a vida de Kardia corria riscos, todo o resto era apenas um amontoado de detalhes secundários. E se antes Dégel havia me dito que fazia aquilo por Kardia apenas pelo bem do santuário como um todo, enxerguei todos os fatos omitidos ao me deparar com a prática da suposta teoria.

Kardia era inegavelmente importante para Dégel. Dégel, à sua maneira, silencioso e calmo, pegava frequentemente no pé de Kardia a fim de saber como estava sua alimentação. Havia algo que todos percebiam, inclusive eu, e que se tratava do constante consumo de maçãs por parte de Kardia. Acreditávamos que não passava de uma mera questão de gosto, mas, em uma das noites em que presenciei a frieza de Dégel amenizar a dor do calor de Kardia, um fragmento do diálogo me fez compreender o real significado por trás da lealdade àquele fruto. Foi Dégel que orientou Kardia a consumir uma determinada quantidade mínima de maçãs por dia, pois era benéfico à sua saúde, o que, claro, estava diretamente ligado aos problemas cardíacos.

Basicamente, Dégel era como um médico para Kardia, o único capaz de compreender a enfermidade que o acometia.

Quando comentei sobre isso em uma das próximas vezes que nos vimos, Degel pediu com gentileza para me esclarecer um pequeno detalhe. “Deusa Atena, maça não é fruto”. Para me explicar, arrancou uma maçã das próprias mãos de Kardia, ignorando os resmungos, cortando-a ao meio. Mostrou-me com o indicador o centro, apontando para as sementes e alegando que a casca que cobria as mesmas eram os verdadeiros frutos, e o que comemos na verdade é uma estrutura suculenta que se desenvolve ao redor, como se protegesse o verdadeiro fruto. A expressão surpresa em meu rosto era a mesma de Kardia, que, no final, apenas disse que o importante era ser comestível, fazendo pouco caso da nomenclatura.

Degel era muito inteligente. Digo... ele é muito inteligente.

Lembrando-me bem da primeira vez em que Dégel se esqueceu de suas formalidades comigo devido à urgência com Kardia, na manhã seguinte alegou para mim estar envergonhado de seus atos, pois não poderia ter colocado as preocupações para com um amigo acima do respeito para com Atena. Discordei um pouco desesperada, apressando-me para tirar aquela ideia de sua cabeça. Embora ele acreditasse que eu, como Atena, me sentia ofendida ou tivesse alterado em algo minha consideração para com Aquário, foi a partir daquele momento, na noite passada, que passei a lhe admirar ainda mais. Não apenas como Aquário, mas como Dégel. Embora tenha se surpreendido com meu abraço, este que alcançava somente a altura até sua cintura, colocou as mãos em meus ombros, retribuindo o gesto sutilmente, embora fosse perceptível sua hesitação instantes antes.

A forma de retribuir um abraço demonstrava com clareza o contraste entre Kardia e Dégel. Enquanto o primeiro me carregava pelo santuário, sufocava-me em seus braços e me fazia de bicho de pelúcia quando queria, Dégel se policiava até mesmo na forma de me olhar, hesitando em me retribuir um contorno de seus braços ao redor de meu corpo.

E se antes Dégel pensava duas ou mais vezes, geralmente não se aproximando com frequência de Kardia quando eu estava por perto, a partir de então as coisas passaram a mudar. Tive a oportunidade de presenciar a verdadeira amizade entre ambos, o elo inquebrável que tinham em todas suas nuances. Enquanto Kardia era toda a manifestação presente em uma batalha, Dégel era toda a calmaria presente na concentração necessária em elevar o cosmo. Exatamente assim que a harmonia em sua união era tão marcante, como se relembrasse que o equilíbrio é adquirido através de reagentes distintos.

Certa noite, em uma urgência de Kardia, Dégel percebeu que o estado alheio estava demorando a amenizar. Embora resfriasse o calor emanado do coração do outro, assim como sempre o fazia, era nítido que Kardia não melhorava. Dégel e eu, como se fosse automático, trocamos um olhar preocupado, como se nos perguntássemos o que estava acontecendo ali. Pode-se pensar que Dégel aumentar a intensidade de seu frio era o suficiente, mas não era assim que funcionava. Apesar de Dégel ter total controle sobre os próprios poderes, precisou treinar minuciosamente para depositar em Kardia somente o necessário; com uma intensidade menor não surtiria efeito, e, com uma maior, o risco de matar Kardia era praticamente palpável.

 O desespero em seu olhar era claro. O lilás de seus olhos parecia me pedir socorro, e o fato de eu não poder fazer nada me levou junto de si para esse caminho de desolação. A impotência parecia nos corroer, e Dégel, percebendo que aceitar o risco era a única alternativa, aproximou mais a mão do peito de Kardia. Após minutos rondados pelo medo, Kardia apresentou melhora, mas desmaiou logo em seguida, antes de poder pronunciar qualquer palavra. Dégel me explicou que se tratava de uma reação normal e que não devíamos nos preocupar, pois logo ele acordaria. Contudo, estranhei o fato de Dégel não ter me olhado nos olhos ao falar isso, pois sempre o fazia, era característico de si. E somente quando, após quase uma hora, Kardia despertou e Dégel e eu nos entreolhamos antes de nos abraçarmos, percebi que, pela primeira vez, o guardião de Aquário não estava seguro das próprias palavras há momentos. Sem hesitações, arrependimento e afins. Dégel, que era um cavaleiro tão famoso por, entre seus atributos, estar o perfeito equilíbrio, mostrou-me, mais uma vez, que, acima de ser um santo, era humano. Suscetível a cascatas de sentimentos, assim como todos os outros.

Dégel era um cavaleiro calmo, sério, polidamente educado e centrado, que tinha como o cerne de sua vida proteger a deusa Atena. Tido como exemplar, o santo mais inteligente de sua geração.  Mas Kardia personificava toda sua essência de ser humano, sua suscetibilidade à queda, aos riscos, à perda, aos sentimentos em geral, a tudo aquilo que caracteriza a humanidade.

A partir de tal noite, Dégel precisou manter a intensidade usada. Por algum motivo desconhecido até mesmo para alguém como ele, os problemas de Kardia haviam progredido rapidamente, como da noite para o dia, bem diante de nossos olhos. Dégel passou a aparecer menos pelo santuário, confinando na biblioteca da casa de Aquário, horas a fio absorvendo livros e mais livros sobre medicina em uma tentativa de descobrir o que havia ocorrido com Kardia. Em uma tarde, surgi em sua biblioteca para saber o que tanto fazia ali dentro, visto que não havia contado a ninguém. Então, pediu para que eu me sentasse ao seu lado, mostrando-me os livros e sua pesquisa em fragmentos. Marcações, anotações, indagações e um sentimento de obrigação em chegar a uma conclusão. Seu desapontamento consigo mesmo era claro, o que me deixou entristecida. Tentei lhe consolar, mas apenas puxei o gatilho para que Dégel despejasse toda sua fragilidade, a mesma sempre oculta. Contou-me sobre seu mestre Krest, culpando-se por não ser tão bom quanto ele, alegando que, em seu lugar, Krest já teria há muito percebido as mudanças quanto à enfermidade de Kardia, até mesmo antes dela se manifestar, como ocorrido algumas noites passadas.

Pensei que iria presenciar o cavaleiro de Aquário rendendo-se ao pranto, mas, indo contra seu corpo, ele se conteve. E mesmo sem perguntar ao próprio homem a minha frente ou a qualquer outra pessoa, incluindo Kardia, eu senti, naquele momento, que era uma das únicas pessoas a presenciar Dégel em seu estado mais frágil. Vi seus olhos parecerem vermelhos, mas era duvidoso, visto a coloração natural lilás que possuíam.

Dégel se recompôs. Pediu desculpas pelo comportamento, alegando que não encontrar respostas urgentes mexia com sua índole. Percebendo que aquilo lhe deixava ainda pior, mudei de assunto, instigando-o a me contar sobre o começo de tudo, como encontrou a solução que usava para a enfermidade de Kardia. Novamente, falou-me de seu mestre Krest, alegando que devia tudo a este. Dégel até procurou outros meios, estudando com afinco a medicina em todas suas áreas, dominando o estudo da farmácia para encontrar uma saída, chegando a dialogar seriamente com Albafica sobre questoes referentes a veneno e homeopatia, mas sua tentativa com maior êxito esteve e permanecia nas maçãs, que, de alguma forma, traziam um benefício silencioso a Kardia.

Dégel cobrava muito de si mesmo. Tentei lhe convencer de que já estava fazendo tudo ao seu alcance, mas, apesar dos agradecimentos, era perceptível que não havia concordado. Para ele, ainda havia muito a se descobrir, e era sua obrigação continuar a trilhar esse caminho. Dégel sentia que era sua obrigação. A vida de Escorpião pertencia a Aquário.

No mesmo dia, Kardia me perguntou como estava Dégel quando o procurei em sua biblioteca. Antes de eu responder, me contou que estava preocupado, pois, em suas palavras, o outro cavaleiro era um “teimoso” que não aceitava os próprios limites quando se tratava de encontrar respostas naqueles “livros comidos pela traças”. Apesar do grande respeito para com Aquário, Kardia não aceitava aquela procura incessante para algo que o destino não permitia. Tentava colocar na cabeça de Dégel que o máximo acessível em suas mãos era o que já fazia, amenizando o estado em urgência, mas que não podia evitar o progresso ou, ainda mais, cortar o mal pela raiz. Kardia aceitava o próprio destino, mas Dégel não se contentava. Foi um caminho óbvio chegar à conclusão de que ambos haviam discutido.

Que Kardia era orgulhoso, isso era do conhecimento de todo o santuário, até mesmo dos cavaleiros mais distantes. Alguns pupilos chegavam a brincar, alegando que até no reino de Hades sabiam que Escorpião era dono de um orgulho palpável. Como o esperado, estava decidido a manter certa distância de Dégel, recusando-se a pedir desculpas. E realmente acreditei que a situação iria assim permanecer por um longo tempo, o que me deixou triste e preocupada. Kardia não queria me ouvir, batendo com uma maça em minha cabeça quando insisti em lhe convencer a falar com Dégel; e este, por sua vez, alegava respeitar o espaço do outro cavaleiro, omitindo que também estava abalado pelo desentendimento.

Parte do santuário percebeu a distância entre os dois e os rumores se espalharam rapidamente, mas não chegavam nem perto do verdadeiro motivo. A amizade de ambos era algo reconhecido por todos, naturalmente seria estranho vê-los tão separados a ponto de não haver gestos simples como troca de palavras e cumprimentos em público.

Até que a noite chegou. Kardia conversava comigo na casa de Escorpião, querendo me ensinar uma piada que havia aprendido com um pupilo, mas, em meio à sua euforia, uma expressão inesperada irrompeu em suas feições, assim como o desequilíbrio de todo seu corpo. Às pressas, virei-me, pronta para correr até Aquário, mas senti a mão de Kardia se prender em minha perna. “Você não vai chamá-lo, Sasha” murmurou em meio à dor, decidido das próprias palavras. Tentei me desvencilhar, mas era incrível como, mesmo em um estado tão urgente como aquele, Kardia impedia que eu me movesse. O que, diga-se, foi inútil. Dégel surgiu em Escorpião mesmo sem meu chamado, pois havia sentido o cosmo de Kardia.

Ignorando as reclamações e a tentativa de se desvencilhar, Dégel fez o de sempre, trazendo o corpo do outro de volta a uma suposta normalidade. E Kardia, ainda ofegante, virou o rosto como uma criança, fazendo birra e alegando que não precisava. Murmurou ainda que “tanto faz se essa droga me levar embora de uma vez, o certo era deixar acontecer”. O comentário fez Dégel se exaltar, levantando o tom de voz ao perguntar de Kardia como ele era capaz de “falar isso na frente da deusa Atena”.

Dégel não foi embora até que Kardia se acalmar. Quando retornou a Aquário, novamente fiquei sozinha com Kardia, pedindo para ele parar com aquilo e se desculpar com o outro. Naturalmente, esperava apenas ver mais de seu orgulho, mas ele suspirou e relaxou os ombros, como se, finalmente, estivesse disposto a reconhecer o próprio erro. Juntos, fomos até a casa guardada pelo cavaleiro que havia salvado sua vida há instantes, encontrando-o sentado aos fundos de Aquário, de onde podia ter uma vasta vista do santuário e do céu. Fizemos o mesmo, embora Kardia estivesse travando um conflito interno contra seu orgulho, por vezes fazendo muxoxos e desviando o olhar numa expressão aborrecida.

Juntos, naquela noite, olhamos para o céu.

Seria ingenuidade de minha parte alegar que Dégel e Kardia eram grandes amigos. De fato, eram, mas o elo que mantinham era forte demais para ser limitado. E ouvindo Dégel ler as estrelas para nós, percebi quando, por trás de mim, o braço de Kardia percorreu um breve caminho até o de Dégel. O toque trocado foi rápido e logo Kardia retornou à posição de antes, afundando os dedos em meus cabelos, bagunçando-os enquanto Dégel lhe repreendia por “tamanha audácia com a deusa Atena”.

O céu estava reconfortante, mas não se comparava a sensação emanada pela união entre Aquário e Escorpião. 


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Notas finais do capítulo

Obrigada a você que leu até aqui!

Lembro bem que a sinopse, quando fiz o plot, era para ser "o amor aos olhos de uma criança". Bem, mudei hoje de ideia. Quem sabe eu nao altere, né? eheh

Aquela vontade de reler canvas do começo ao fim
saia de mim D:



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