Iesabel - O Segredo do Fogo escrita por MMenezes


Capítulo 1
Capítulo 1 - A Puta do Sol




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Um galo cantou em algum lugar, e Iesabel sentiu-se muitíssimo grata ao sol que, enfim, dava o ar da graça.

— Amanheceu, meu senhor — disse, escorrendo para longe das mãos suadas do fidalgo e pondo-se de pé, sentindo o sêmen seco dele entre suas coxas.

— Vim de longe para ter uma noite contigo.

— E a teve, meu senhor. Agora amanheceu, deve vestir-se e se retirar.

O homem, com um ar contrariado, esticou-se e tirou do bolso da camisa de couro, pendurada na cômoda, um saco de moedas robusto e tilintante.

— Qual o preço para tê-la por mais algum tempo? Dinheiro não é problema — ele disse.

Iesabel abriu a janela, deixando uma brisa fria adentrar o quarto e refrescar seu corpo nú.

— Seu dinheiro não me interessa, meu senhor. Veja, amanheceu.

— Que tipo de puta não quer dinheiro? — perguntou o fidalgo. — É o motivo pelo qual abrem as pernas.

— Há mulheres com desejos que não podem ser comprados com ouro ou prata, meu senhor — retorquiu, vestindo-se com um roupão de cetim branco.

— Diga-me o que deseja que te darei, sou um homem de terras.

— Seu pai é um homem de terras, meu senhor — corrigiu-o, docilmente.

— Ele é duque, e eu seu herdeiro, nada mais normal de ter como meu o que é dele — inquiriu o fidalgo, ficando de joelhos sobre a cama, como um suplicante apaixonado, o membro entre as pernas tentando tocar o umbigo. — O céu é o limite para o que posso lhe dar, minha querida. Basta dizer o seu preço… digo, o que deseja.

Iesabel matutou na questão por um ínterim. Sabia bem o que desejava. Quem não sabe o que quer, nada há de conseguir, pensava.

— Poderia tirar-me daqui… a mim e a minha irmã?

O homem sorriu, quase triunfante.

— Desejo simples de se atender. Tomarei-a como minha segunda mulher, amante, como dizem. Tu terá uma casa, com criados e criadas, não muitos, apenas o suficiente para não se cansar com tarefas rotineiras e poder estar sempre disposta para mim.

— E minha irmã?

— Nunca antes me disse sobre sua existência.

— Acredito não ser o tipo de coisa que queira ouvir quando vem aqui — respondeu. — Então, teria lugar para minha irmã nessa sua proposta?

Ele balançou a cabeça para cima e para baixo e sorriu. Era quase bonito, o rosto bem escanhoado, o nariz levemente pontiagudo e um par de olhos juvenis. Havia sido a primeira mulher dele, sabia bem disso, por mais que na ocasião ele tentara esconder a donzelice, Iesabel notara. Poderia ter sido uma boa paixão, se não tivesse primeiro sido um cliente.

— Ela terá um quarto, certamente — ele disse.

Iesabel viu ali uma escapatória para seus dias de meretriz. Segunda mulher — amante, a palavra certa é amante — de um jovem fidalgo com sangue mais ou menos nobre. Não era um destino ruim. Leda não demoraria a se acostumar com a ideia. Quando fosse mais velha e melhor de saúde, talvez — apenas talvez — pudesse até encontrar um marido decente em meio aos filhos dos criados, um rapaz integro, sem muitas ambições, mas com o coração no lugar certo.

— Não seria de todo o mal — respondeu, imaginativa. — Se prometer vir ver as crianças de vez em quando, posso cogitar trocar o meu sol por sua cama, meu senhor.

O olhar duvidoso que ele desferiu foi o mais sincero que portava. Ele indagou com agudeza:

— Crianças, mas que crianças?

— Ora, as nossas. Nossos futuros filhos e filhas — Iesabel retorquiu.

Ele bufou, como bufam os mascates ao escutarem uma oferta absurda.

— E por que diabos eu viria a ter filhos com uma puta? — ele riu com excesso de satisfação. — 

Será minha amante, minha querida, e isso lhe basta, é mais do que poderia querer.

Iesabel sentiu o coração alvejado, empurrado para dentro de um profundo desfiladeiro escarpado. Sentiu o rosto ruborizando e virou-se para esconder a vergonha. Será sempre uma puta, pensou. Marcada para sempre como uma puta.

O fidalgo se ergueu da cama e a abraçou com falsa ternura.

— Será minha, somente minha? — ele sussurrou, soprando em seu rosto um hálito quente com cheiro de vinho. O membro entumecido dele tocava sua barriga sob o roupão.

“E por que diabos eu viria a ter filhos com uma puta?”

— Meu senhor, lamento, mas até onde meus olhos me mostram, amanheceu. Até a hora que o sol venha a se por, eu pertenço apenas a mim mesma — retorquiu. — Queira vestir-se e se retirar, por favor? Logo minha senhora entrará por essa porta para recolher os valores da noite. Receio que ela não se agradará de vê-lo… assim. É uma mulher… rígida, como bem deve ter ouvido falar.

O fidalgo não disse nada. Calou-se. Emudeceu-se. Silenciou-se. As mãos dele apertaram seus braços com a força de tenazes, e de súbito, atirou-a contra a parede com um único movimento enfurecido. Iesabel sentiu o baque, o medo bater em suas costas e repousar em seus olhos. Por um momento pensou ter despertado a ira de um gigante.

Todo fidalgo se acha um gigante.

Todo homem se acha maior do que realmente é.

Tentou gritar, mas a voz lhe falhou. E não sabia se alguém viria em seu socorro. Naquela casa de mentiras, era comum que cada mulher lutasse por si mesma. Cobra comendo cobra. Cobra comendo cobra.

Encolheu-se esperando o pior. Após um momento, fitando-a com um esgar irado, o fidalgo limitou-se a se vestir.

— Eu não deveria ter feito isso, me perdoe. Não é como um homem deve tratar uma… mulher.

— Tu-tudo bem, m-meu senhor.

— Aqui — ele disse, estendendo uma moeda de prata que parecia-lhe embebida em veneno. — Pegue.

Iesabel a recebeu, com hesitação.

— Faz-me sentir um homem, minha querida. — ele disse, em tom casual. — Voltarei a vê-la em breve.

Ele abriu a porta e desapareceu de vista. Iesabel ouviu os passos pesados dele descendo os degraus. Sabia que ele cumpriria a promessa. Voltaria em breve, como sempre fazia, como todos sempre faziam. Os homens em sua vida sempre voltavam a ela, não importava quais caminhos tomassem; exceto o pai, o pai fora para um lugar ao qual não havia volta.

A moeda permaneceu na sua mão apenas por alguns instantes depois do fidalgo ter a deixado. Era uma moeda brilhante como um olho de criança, com a figura de uma águia de um lado e uma coroa do outro. Um real de prata faria bem as suas economias.

Atirou a moeda através da janela com toda a força que conseguiu reunir. Ela girou no ar uma centena de vezes antes de cair na mata escura do outro lado da estrada.

Madame Idára entrou sem anunciar-se, como era de se esperar. Vestia seu elegante vestido cor de vômito com babados cor de teia de aranha. O cabelo era uma obra arquitetônica, penteado e atado de forma a parecer uma cebola nascida em hortas reais. Tinha ao menos um dúzia de anéis em cada mão, o que fazia seus dedos longos e magros parecerem cobras domesticadas. O colar de ouro no pescoço já perdia os tons dourados, revelando o ferro por baixo da pintura; ai de quem lhe contestasse o valor do precioso objeto. Madame Idára era uma senhora malhada em rugas, lábios murchos e olhos de poço contaminado, mas ai de quem contestasse seu ar de realeza.

Ela se dirigiu à mesa de centro, régia como uma víbora observadora.

— A noite parece ter sido, adequada — ela disse, atirando para dentro do grande bolso junto à barriga do vestido, a meia centena de moedas no prato de cobre sobre a mesa. — Como esperado da minha menina.

Iesabel admirava os pássaros além da janela. O sol já havia passado do zênite, e os tons da manhã foram de lilás azulado para laranja flamejante. Havia uma certa mácula no céu, nuvens escuras que anunciavam tempestade.

— Irei ao vilarejo — disse sobre os ombros. — Em três dias Leda fará doze anos.

— Hum. Como a maioria faz ao menos uma vez na vida — retorquiu a alcoviteira, indiferente. — Esteja aqui até uma hora antes do anoitecer para se banhar adequadamente. Os homens preferem mulheres lavadas com cheiro de noz e sabão do que mulheres sujas com cheiro de terra e suor.

— Estarei aqui.

Um peregrinho pousou no parapeito da janela. Pequeno e inofensivo como um dedo mindinho. Parecia interessado em agradecer ao afago dando-lhe carona.

— Arrume o quarto antes de sair — ordenou a senhora. — E não se esqueça de tomar o chá.

— Como deseja, Madame. Devo comprar algo para Leda em seu nome? — perguntou, dirigindo a ela o olhar.

Madame Idára franziu os lábios murchos e balançou a cabeça, gesto que fez a cabeleira balançar de forma a ameaçar despencar.

— Não vejo o porquê. Gaste a sua parte como desejar, mas não espere um vintém da minha — ela devolveu ao prato meia dúzia de moedas de cobre. — Faça como combinado!

Iesabel anuiu.

— Farei, Madame.

— Bom, bom mesmo.

A alcoviteira lhe virou as costas e saiu do quarto, batendo a porta.

Iesabel tinha para si todo o dia, e tudo em que conseguia pensar era em deixar aquele quarto e aquela casa maculada, nem que fosse por algumas horas.

Havia a menção de uma tempestade vindoura, mas nada e nem ninguém a manteria dentro daquelas paredes.

Vestiu-se como uma simplória, para não atrair grandes atenções, e marchou para o vilarejo enquanto o sol pincelava o horizonte e a provável tempestade não passava de uma ameaça.

Sentia-se exausta, mas assim como sucede aos sonhos e desejos, o sono teria que aguardar. Além de que, a confortável cama onde se labuta, é tão desejável para repousar-se quanto uma pira de fogo.


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