Hiraeth escrita por Jenn Writer


Capítulo 1
Prólogo




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Nasci durante o verão, em Seul, dois anos antes da metrópole coreana sediar os Jogos Olímpicos e quatro antes de minha mãe descobrir que estava grávida de mim. E este foi apenas o primeiro dos paradoxos absurdos que viriam a encher minha vida.

 

*

 

Escuto Pan, meu chaveiro de estimação, latir em direção à nossa única janela com uma vista decente, de frente para o Central Park, como é de seu costume. Morando em um prédio de esquina, tenho o privilégio de contemplar a área verde por pelo menos uma das três fenestras do apartamento, uma vez que as demais dão de cara com a parede envelhecida de um beco à qual os donos do restaurante ao lado a que ela pertence não dedicam muita atenção. A essa janela em especial, Pan direciona seus ganidos com relativa frequência, por isso me habituei a lhes dar pouca importância. Hoje, porém, ele parece estar um pouco mais empenhado em fazer isso, o que me leva a pensar que talvez ele tenha uma motivação além do simples fato de ser um cachorro e ter o prazer de importunar nossos vizinhos que, tenho certeza, mais tarde virão reclamar da barulheira. Por isso, penosamente me levanto da cama e vou checar o que de tão interessante pode estar atiçando seus instintos animais. Ainda estou ajeitando os pés nas pantufas e amarrando o cordão do robe quando entro na sala, e surpreendentemente Pan não parece notar minha presença, permanecendo concentrado em dar seus gritos ao que quer que estivesse do lado de fora. Caminho até ele, a fim de puxar o cortinado para o canto e cessar seus latidos, mas acho estranho quando ele se encolhe de medo ao menor sinal de que eu vá abrir a janela. Dou uma olhada lá fora abrindo uma pequena fresta entre as cortinas com o indicador e, vendo que não há nada de mais, faço uma careta para a bola de pelos que se acomoda em minha poltrona de leitura. Embora eu o enxote dali todas as vezes, ele continua a subir sempre que deseja observar o movimento da rua. Imagino que seja mais fácil mudá-la de lugar de uma vez e decido que farei isso mais tarde, pois agora vou aproveitar que já estou acordada, graças a um despertador de carne e osso, e tomarei um banho antes de fazer uma visita matinal à Biblioteca Pública. Deixo no fogo a água para meu chá e vou para o banheiro. Acabo me demorando um pouco além da conta na ducha e a infusão quase ferve demais. Com a toalha na cabeça, adiciono a erva à água borbulhando na chaleira, e deixo minha garrafa térmica a postos na bancada de mármore antes de ir me vestir. Pan parece continuar incomodado com algo que eu não sei dizer, então lhe jogo uma bolinha. Ele se anima um pouco, mas não se dá ao trabalho de buscá-la, apenas me acompanha até o quarto e faz brincadeiras com meu pé. Quando ele se cansa, calço meus tênis brancos em combinação com a camisa de listras e a calça social preta que decido usar para o trabalho hoje, afinal não é como se o Departamento nos desse uniformes. Na maior parte do tempo, gosto do que faço. Na verdade, eu realmente gosto do meu trabalho, minha única objeção é ter que trabalhar. Não conseguiria me ver sendo outra coisa senão uma linguista forense, mas me consome muito o tempo em que poderia, aliás, deveria estar fazendo outra coisa. Tempo que não sei se tenho muito. Depois de pentear o cabelo para trás, aplicar um creme sem enxágue e desajeitar levemente os fios, volto à cozinha para pegar o chá no balcão, meu casaco pendurado no cabideiro e minha bolsa deixada no leitoril ao lado da porta. Me certifico de que Pan ainda tem água e ração de ontem à noite antes de sussurrar-lhe um ‘até mais’ e sair para mais um dia aparentemente comum. Como poderia imaginar que comum seria a última palavra que usaria para adjetivar aquele dia quando chegasse ao fim? 

Durante a leitura, eu definitivamente não gosto de ser interrompida ou atrapalhada. É verdade que não consigo imaginar alguém que goste, mas o ponto é que isso me aborrece de uma maneira um pouco acentuada. Portanto, quando pessoas começam a se juntar a ao redor de algum engraçadinho e seu notebook e suas vozes começam a subir de tom, eu logo faço uma busca visual por algum funcionário eficiente que resolva aquilo. Para minha surpresa, não só encontro a secretária do piso fora de sua posição de trabalho, como a vejo bem no meio do grupo. Indignada, me levanto decidida a despejar minha repreensão sobre a ética em espaços públicos naquele bando de papagaios e caminho a passos firmes na direção deles. Mas ao me aproximar, sou capturada pelas imagens no mínimo desesperadoras sendo transmitidas ao vivo na tela do laptop. Meus olhos custam a acreditar no que veem: pessoas correm apavoradas sob um enxame de humanoides que aparecem do nada, carros são tombados e lojas invadidas, prédios desabam total ou parcialmente quando uma criatura desmedida se move pelas ruas de Nova Iorque, oficiais de polícia com os rostos abalados tentam, em vão, conter o avanço das bestas, o som de armas sendo disparadas é misturado ao de gritos aflitos. O caos. De repente, a câmera mostra os Vingadores reunidos no meio do conflito, na tentativa de neutralizar o que quer que sejam aquelas coisas atacando a metrópole. Heróis, cada um com sua habilidade, se empenhando para proteger os cidadãos. Olho em volta e vejo as reações daqueles que contemplam o mesmo que eu: choque. Alguns levam à mão ao rosto, contendo emoções. Outros tentam ligar para parentes e esbravejam quando não conseguem obter sinal. Tento processar as coisas que acabei de ver, mas minha mente não articula por completo. Meu único pensamento é correr para casa, onde estão as duas coisas com que eu mais me importo nesse mundo e em todos os outros.

Eu disparo em direção ao Central Park, desviando de tudo e todos, agradecida por ter escolhido um tênis para calçar hoje. Menos de dois quilômetros me separam de Pan e dos arquivos, e a cada segundo me esforço para diminuir essa distância. Não fossem meus anos de ouro como atleta olímpica e meus pulmões talvez não aguentassem a marcha. Mesmo quando minhas pernas começam a arder, não diminuo o ritmo. Estou atravessando a terceira rua tão focada que não vejo quando um táxi acelerado avança o sinal vermelho. Ouço o impacto do meu próprio corpo contra a lataria e a arrancada do pneu poucos segundos depois que escorrego do capô para o asfalto. Por pouco meu pé direito não vai parar embaixo da roda, e eu não saberia dizer de que forma consegui tirá-lo a tempo, pois assim que tento me levantar, sinto uma dor lancinante na perna e costelas direitas, além de líquido quente que sai do meu antebraço a manchar a camisa.


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