Visco de Sangue escrita por Kaline Bogard


Capítulo 2
... that I want to keep...


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♥



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Shino passou a semana seguinte comendo curry todas as tardes. Ele saia da Academia e ia para a beira do lago treinar. Passava algum tempo até o shifter se mostrar, provavelmente esperando para ter certeza que era seguro.

Então vinha todo cheio de dentes e sorrisos e aceitava o bento extra que Shino começou a levar.

Também teve confiança o bastante para sentar-se e passar a fazer as refeições ao lado de Shino.

— Minha mãe não pode nem desconfiar disso — revelou numa tarde, tentando comer ao mesmo tempo — Ela disse pra manter distância de humanos sempre. Mas alguém que cozinha tão bem não pode me causar problemas!

Shino ergueu as sobrancelhas, sorvendo o curry com menos ímpeto. Estava um tanto enjoado daquilo, mas se obrigava a comer para aproveitar da companhia do outro garoto.

— Obrigado — agradeceu um tanto incerto.

— Isso é uma delícia! Mas vocês não se cansam de comer a mesma coisa todo dia? — ele perguntou ao finalizar a porção.

— Não entendi — Shino foi sincero.

— É que você come isso todo dia. Não enjoa? — Kiba soou genuinamente curioso. Pescou uns grãozinhos de arroz presos na bochecha e os levou aos lábios. Akamaru cochilava preguiçoso deitado aos pés do dono.

— Não comemos apenas isso — Shino explicou — Eu trouxe porque pensei que quisesse comer. Mas posso cozinhar coisas diferentes.

Nesse ponto Kiba olhou meio admirado para Shino.

— Fez só pra mim? Por quê?

A questão desconcertou o outro.

— Você pareceu gostar — deu de ombros. O que poderia dizer? Que apesar de toda sua postura indiferente até então, conhecer um shifter de verdade foi emocionante. Ter a oportunidade de reencontrá-lo foi o gatilho para que Shino cozinhasse curry todos os dias! Surpreendendo inclusive ao pai, que não entendeu nada, apenas respeitou sem perguntar.

— Caralho! Obrigado. Mas pode fazer outras coisas, não se importe comigo — garantiu. Shino tentou sondar se aquela era a despedida para as tardes partilhadas, a frase seguinte esclareceu — Eu gosto de qualquer tipo de comida! Só não tinha provado curry antes.

Shino sacou fácil que o shifter se convidava para continuar comendo de graça!

— Claro. Posso trazer outros pratos.

— Ah, mas não sou tão folgado assim. Em troca eu te dou umas aulas, o que acha? Sua defesa tem várias brechas. Treinar sozinho te leva até certo ponto, posso te ajudar a melhorar.

A proposta foi interessante. Shino sabia que as criaturas sobrenaturais eram superiores em questão de força e agilidade. Receber lições de um shifter era uma chance que não abriria mão jamais. Trocar as aulas por comida era muita pechincha!

— Aceito.

— E eu estava tipo “coitados dos humanos, não tem muita opção de refeição”... fui meio besta! Mas como eu ia saber?

A frase reclamona veio, como sempre, acompanhada de expressões faciais exageradas e gestos de mãos expansivos. Divertiu Aburame Shino.

— É. Como você ia saber?

— Por que você faz seu próprio almoço? Sua mãe não sabe cozinhar?

Shino observou o garoto sentado ao seu lado, abraçando os joelhos numa pose displicente e relaxada, diferente do primeiro encontro de ambos em que Kiba parecia pronto para correr caso Shino sequer olhasse torto. Havia curiosidade e certa confiança na postura de guarda-baixa. De alguma forma aquilo encantou Shino, saber que um shifter considerava seguro ficar ao seu lado.

Respirou fundo antes de responder a questão.

— Minha mãe foi embora quando eu era criança, mal a conheci. Moro sozinho com meu pai e nós dividimos as tarefas.

— Caralho! — Kiba arregalou os olhos — Então você é meio parecido comigo. Meu pai foi embora também e… não. É mais tipo minha mãe botou meu pai pra correr, porque ele era um “inútil imprestável”. Então eu virei o homem da casa e cuido da minha mãe e de Hana-nee.

Shino ouviu a revelação e assentiu. Shifters tinham mais em comum com humanos do que imaginou.

— Quer começar a treinar agora? Ou você já vai embora?

O rapaz sentiu o coração pular no peito. Se ele queria comprovar a lendária força e agilidade shifters? Com certeza!

— Sim, eu gostaria — respondeu comedido.

Kiba se pôs em pé e bateu as mãos na bermuda cinzenta limpando as folhas que grudaram no tecido.

— Vou te mostrar onde sua defesa tem falhas! Também posso te ensinar alguma coisa de ataque. Sou muito forte, sabe?

— Hn — Shino respondeu simplista, empurrando os óculos de volta ao lugar correto no rosto.

E ele descobriu duas coisas naquela primeira tarde didática. Kiba tinha razão: ele era ágil e forte, como um ninja bem treinado de Konoha. Porém, ficou claro para Shino, que nem de longe possuía força ou agilidade sobrenaturais.

Talvez a lenda sobre shifters fosse apenas isso: uma lenda.

—--

Nas próximas semanas continuaram se encontrando em segredo à beira do lago. Cada dia Shino levava um almoço diferente e Kiba agradecia com dicas valiosas. Graças a ele Shino encontrou brechas em sua defesa que poderiam se tornar fatais em uma missão. Não iria negar: ter alguém para ajudar era melhor do que treinar sozinho!

O rapaz sentiu que evoluiu muito no decorrer dos dias.

Jamais poderia agradecer.

Mas tentava. Caprichava nos bento. Logo viu que Kiba adorava carne, então passou a reforçar com uma porção extra. Lamen também o deixava mais feliz do que o normal.

Quando paravam para comer, podiam conversar com mais calma.

Shino contou detalhes de sua vida com o pai, algo solitário, mas feliz. Não tinha reclamações. Por algum motivo era fácil conversar com o shifter, o que fez lhe contar sobre a visão que Konoha tinha do clã Aburame: esquisitões sinistros e misteriosos.

— Besteira — Kiba desdenhou com a boca cheia de omelete — Controlar insetos é meio foda pra caralho. Não é qualquer um que consegue isso.

Shino não era arrogante, contudo tal elogio poliu seu ego e ele ficou feliz.

Foi durante uma dessas conversas que descobriu algo importante. Desvendou o enigma sobre as lendas a respeito de poder e velocidade dos shifters. Meio que sem querer, convenhamos.

Dividiam um bento cheio de onigiri e salmão, quando Shino perguntou:

— É verdade que shifters podem se transformar em animais?

A questão fez Kiba emburrar. Um biquinho mal humorado surgiu quando o garoto juntou os lábios e desviou o olhar. Ainda devorou dois bolinhos de arroz antes de responder.

— É verdade. Mas nem todo shifter consegue a transformação completa.

— Ah, entendi — e não insistiu. Shino percebeu que tocou em um ponto delicado para o outro. Pouco conhecia sobre a comunidade daquelas criaturas. Talvez a transformação fosse algo ruim.

Kiba suspirou sofrido, fazendo drama de um jeito que ele costumava fazer com frequência, e fisgou outro onigiri.

— Só Alphas e Betas podem se transformar por completo — ele revelou ainda sem encarar Shino — Alphas e Betas são os guerreiros do Pack, sabe? Eles são fortes pra caralho e muito, muito mais rápidos do que você imagina. Nosso Clã é de lobos, então os guerreiros se transformam pra lutar e… daí tem os Ômegas. Ômegas não são guerreiros, então não fazem a transformação completa. Eu sou um Ômega.

Em algum ponto da narrativa Kiba terminou de comer e passou a arrancar tufinhos de grama e empilhá-los num montinho. Estava tão chateado que Shino se solidarizou com a tristeza. Era um adolescente de dezessete anos, todavia perceptivo e sagaz o bastante para compreender as nuances envolvidas no caso.

Kiba colocou muita ênfase no “guerreiros”, na “força” e no “lutar”. Ele se sentia injustiçado por nascer “Ômega”. Não conhecia detalhes da sociedade shifter, mas a questão envolvia a natureza e outras espécies de modo amplo. Era fácil deduzir e aplicar aos shifters.

E a informação explicava muita coisa. Por isso Kiba não era tão forte ou rápido quanto Shino imaginou, preso aos limites impostos por uma casta. Estava acima dos humanos comuns, embora longe do que se sussurrava a meia boca.

— Com os seres humanos não tem isso — Shino achou que devia falar algo para espantar a tristeza do menino — Às vezes usamos os termos Alpha, Beta e Ômega, mas em sentido figurado. Pelo jeito com vocês não é assim.

Kiba balançou a cabeça. Acertou um tapa irritado no montinho de grama e fez as folhas se espalharem.

— É uma bosta. Queria ser forte, sabe? Mas nasci Ômega, já cheguei ao meu limite… nunca vou passar disso.

Shino não disse nada. Qualquer palavra de consolo soaria frívola. Apenas um ponto da conversa martelou sua cabeça. Depois de longos e pesados segundos não conseguiu se segurar:

— Você disse “transformação completa”. Quer dizer que pode se transformar de modo incompleto? — a voz saiu séria e calma, ainda que o rapaz estivesse curioso.

O shifter olhou de volta, com os olhos arregalados. Deu a impressão de corar de leve.

— Caralho, cara. Tem, mas é vergonhoso.

A curiosidade de Shino aumentou.

— Pode me mostrar? Trago morangos com creme amanhã… — mal terminou a oferta e foi mirado por um par de olhos arregalados e brilhantes. Agora sabia que morangos eram uma raridade dispendiosa no fundo da floresta onde os shifters viviam.

Uma tarde Shino levou uma porção para dividirem. Era sua fruta favorita, mas comia pouco e várias se perdiam amadurecendo demais. Teve a intuição de juntar um pouco de creme batido (Kiba parecia o tipo que amava doces) e acertou em cheio: o garoto comeu até se fartar. E ficou tão feliz em seguida que derreteu o coração do rapaz humano um pouquinho mais.

Sem hesitar mais, diante da vigilância incrédula de Shino, um par de orelhas felpudas surgiu no meio dos cabelos castanhos bagunçados, assim como uma cauda castanha apareceu às costas do shifter, balançando preguiçosa de um lado para o outro.

— É tudo o que eu consigo — Kiba sussurrou. Fazia cada coisa por morangos!

— São lindas! — Shino afirmou sem poder evitar. Estava encantado com o que via! As orelhas davam a impressão de serem tão macias… desconfiou que se as acariciasse arrancaria uma reação bem canina do shifter. Segurou-se a custo, pois a tentação de tocar era arrebatadora.

— São? — o outro pareceu incerto. A cauda parou ereta no ar, enquanto o dono aguardava a resposta.

Shino acenou a cabeça de leve.

— Sim. Muito bonitas.

O sorriso de Kiba voltou, o peito se estufou cheio de orgulho enquanto a cauda ia de um lado para o outro muito rápido.

— Claro que são lindas! Eu nunca duvidei disso — cruzou as mãos atrás da cabeça e deixou-se cair para trás.

O verão ia pelo fim, os dias se tornavam mais curtos, a temperatura caia gradualmente a medida que o outono se rascunhava no horizonte.

Dias assim deixavam Kiba preguiçoso. Ele aproveitava as folgas para relaxar antes de voltar ao treino com Shino. Atividade que naquele dia foi realizada com o dobro da empolgação. Kiba continuou com as orelhinhas e o outro rapaz teve várias oportunidades de tocá-las “sem querer”. Eram realmente macias!

—--

Os encontros secretos continuaram por semanas, sem que fossem descobertos. Shibi desconfiava de alguma coisa, mas nunca questionou Shino sobre o bento extra que ele preparava ou sobre as tardes que passava fora de casa, às vezes regressando somente depois do sol se por.

Os treinos se tornaram menos constantes. Shino percebeu que já era páreo para Kiba. Na verdade, em alguns momentos o superava. Fingia para não melindrar o shifter, que gostava de se gabar da própria força.

Talvez Kiba também tivesse sentido a melhoria do garoto humano, já que não insistia mais em ensiná-lo como antes.

Shino amadureceu seu estilo de luta a ponto de receber elogio dos professores na Academia e impressionar os demais colegas. Até mesmo seu pai notou a diferença, na acuidade dos movimentos um tanto mais ágeis e precisos.

Controlar os insetos tornou-se menos complicado. Shino descobriu que ter uma âncora ajudava no foco. E sua âncora era um menino shifter de olhos selvagens, cabelos castanhos bagunçados e sorriso que nunca parecia abandonar lhe a face marcada com triângulos. Exceto, claro, quando Kiba estava de mau humor.

Então a dupla se reunia em humildes piqueniques, em que conversavam por horas. Momentos amenos, de bate-papo descontraído, que a cada vez davam uma certeza assustadora para Shino: ele estava se apaixonando pelo outro garoto.

Não.

Ele já estava completamente apaixonado pelo shifter.

Shino ansiava por revê-lo como nunca ansiou por nada antes. Pensava em Kiba com uma frequência irritante. Cada sorriso que recebia, acelerava o coração! Pareciam piegas, tantos sintomas dos enamorados.

Sentiu-se meio trapaceiro, por dirigir tais sentimentos ao outro que sequer desconfiava, agindo tão natural e impulsivo quanto sempre. Queria poder sufocar, conquanto fosse impossível. Esconder aquilo era o máximo que podia fazer.

Nunca contaria para Kiba, não queria assustá-lo.

Apenas aproveitaria da companhia agradável e divertida enquanto pudesse. Aquela benção trazida pelo curry algum tempo atrás, quando os dias ainda eram longos e quentes.

Tão quentes quanto ficava o peito de Shino cada vez que ele olhava para Kiba.

Vivia um particular conto de fadas que não podia durar para sempre. E o fim veio com um poente mais escuro do que os demais, após uma tarde em que o silêncio foi companhia mais constante do que o normal.

— Né, Shino? — Kiba falou distraído, jogando pedrinhas na água gelada do lago, criando ondas na superfície que em breve seria um espelho de gelo.

— Hn — desagradável intuição fez o rapaz se mover sobre a grama em que estava sentado ao lado de Kiba.

— Não vou poder sair de casa com tanta facilidade. Shifters ficam mais vulneráveis no inverno, o frio é nosso inimigo — falou baixinho.

— Eu não sabia disso.

Kiba sorriu pequeno e rápido. Estava amuado.

— O inverno é a pior estação. Vou ficar no nosso território por um tempo.

Shino respirou fundo. Então estava ali, o temido adeus? Sentiria tanta, tanta falta da companhia animada, divertida e arrogante daquele garoto...

— Vamos nos ver de novo algum dia? — questionou com os olhos presos nas ondinhas do lago. Os óculos escuros ajudavam a esconder a tristeza que imaginava refletir nas próprias íris.

— Você vai voltar aqui na primavera? — Kiba soou cheio de expectativa, atraindo a atenção do humano.

— Claro — Shino não quis se encher de esperança — Não pretendo ir a lugar algum.

O sorriso de Kiba aumentou, ao mesmo tempo em que ele inclinava a cabeça de leve para o lado e fechava os olhos. Era pura animação.

— Ótimo! Podemos nos reencontrar na primavera e continuar treinando! Vou aprender técnicas novas pra te ensinar, combinado?

Shino não sorriu de volta, embora a tensão o abandonasse por completo.

— Combinado. Nos vemos de novo na primavera.

Os planos envolviam voltar ali quando a grama renascesse verdinha e as plantas florescessem trazendo consigo nova vida. Mas os garotos aprenderiam que o destino brinca com as pessoas. Eles acabariam se reencontrando antes, em pleno rigor do inverno. Ao invés do calor acolhedor, seriam envolvidos pelas mãos impiedosas de uma nevasca. No lugar do colorido irradiante da natureza revelando-se em flores a desabrochar, teriam um cenário dominado por branco e vermelho.

Neve tingida com sangue.

E uma tonelada de dor.

I just wanna be with you
Right here with you, just like this

 

 


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Notas finais do capítulo

Hohohohohohohoho

Um mar de rosas desses, bixo... seria uma pena se a autora estragasse tudo, não? Hohoho

A tranquilidade no olhar de quem sabe o que vai acontecer =^.^=



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