O Conto de Farsas escrita por Gabriel Campos


Capítulo 7
As tartarugas marinhas


Notas iniciais do capítulo

Bom... finalizando o ciclo de postagens do carnaval, gostaria de apresentar a vocês o terceiro personagem principal dessa história, que aparecerá no decorrer do capítulo.
Fico feliz em saber que a história está tendo visualizações... se puderem comentar, farão um autor recém-saído do bloqueio criativo muito feliz.



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Estava exausto. Sua cabeça nunca esteve tão cheia; mais cheia do que era quando estava no cursinho.

Marcelo dos Santos não punha os pés para fora de casa desde o carnaval. Saía do seu quarto apenas para realizar as necessidades básicas do dia-a-dia. E mal. Fixara uma placa de isopor na parede do quarto e, nela, alfinetava pedaços de papel ou post-it’s com todas as suas metas de estudo a serem seguidas. Estava dando mais do que o melhor de si.

 O vestibulando perdia a noção do tempo. Muitas vezes era preciso que sua mãe o lembrasse de ir realizar as refeições. Muitas vezes ela mesma precisava levar o prato de comida até o quarto do filho.

A mãe de Marcelo estava preocupada. E com razão. Rosana, era uma mulher nova, tinha apenas quarenta e dois anos. Desde os quatorze trabalhava como empregada doméstica. Marcelo era o seu único filho e o seu maior orgulho. A vantagem de Rosana dos Santos, como diarista, era ter seis patroas, fixas, uma para cada dia da semana.

E, para todas elas, Rosana sempre falava do quanto amava o seu filho e de quanto se sentia orgulhosa por Marcelo ser um garoto tão disciplinado.

— Tudo demais é veneno, Marcelo. – Advertiu Rosana - Você pode ter todo o conhecimento do mundo na sua cachola, mas escute o que eu falo: você precisa se divertir, nem que seja dando uma volta pra tomar uma casquinha.

— Mãe, agradeço a sua preocupação. – Respondeu, amistoso, enquanto mastigava rapidamente um pedaço de pão – Mas enquanto estou me divertindo, meus concorrentes estarão devorando suas apostilas.

 O rapaz abriu uma das apostilas do cursinho do ano anterior; sabia que muitas daquelas informações já se encontravam ultrapassadas, mas compensaria estudando pela internet em sites confiáveis. A mãe de Marcelo, por sua vez, puxou a apostila pesada das mãos do filho e a fechou.

— Mãe!

— Marcelo, você não é um garoto normal. – Ela riu. – Nunca vi uma mãe brigar com um filho por estudar demais. – A mulher se aproximou do filho que, sentado em frente aquela mesa de computador quase devorada por cupins, sabia que não venceria aquela batalha.

— Tá, o que a senhora quer que eu faça?

— Vá ver TV, ouvir um pouco de música. Tomar um banho de mar... Hoje eu quero que tire o dia pra você, ouviu? Prometo que se fizer o que eu pedir, no final do dia vai ganhar um pedaço bem grande e geladinho de pudim. Que tal?

— Mãe, hoje é a sua folga. Não deveria perder o seu tempo cozinhando pra mim.

— Rapaz, você é cabeça dura, hein? Nesse seu coração só tem orgulho, é? Menino, pare de se preocupar com os outros e comece a cuidar de si mesmo! –Rosana apertou das bochechas do filho - Você sabe que eu adoro cuidar do meu bebezinho de dezenove anos.

Rosana abriu a janela do quarto do filho e os raios de sol, depois de muito tempo, finalmente adentraram no quarto do rapaz.

Marcelo se levantou da cadeira e esticou os braços para cima. Em seguida, estalou os ossos do pescoço. Bem que poderia ser uma boa ideia ir dar uma volta na praia, refletiu.

— E não leve nenhum livro na mochila! – Advertiu Rosana, rindo, quando Marcelo se despediu dando-lhe um beijo no rosto naquela manhã de abril.

O biólogo marinho Alex Santiago, de 24 anos de idade, desde criança sempre manteve uma relação amigável com os animais. Quando ainda era estudante de ciências biológicas voluntariou-se em uma ONG da cidade de Fortaleza chamada “Projeto Vida Azul”, que lutava pela preservação das espécies marinhas da região. Sua maior paixão era, sem dúvida, as tartarugas marinhas, e não hesitou em tatuar uma delas em sua panturrilha direita.

 O trabalho, mesmo voluntário, nunca o deixou mentalmente cansado; muito pelo contrário: Alex sabia da sua contribuição para o mundo e sabia mais ainda daquela frase que repetia em sua cabeça como um mantra: “Trabalhe com o que gosta e jamais terás que trabalhar um dia sequer na sua vida”.

Estava realizado. Seus colegas de trabalho eram oceanógrafos, veterinários, zootecnistas, biólogos. Todos juntos em prol de uma causa nobre; todos se respeitavam, todos ajudavam uns aos outros em suas limitações. Do Projeto Vida Azul, Alex era um dos que mais doavam de si pela vida marinha. Passava grande parte do seu tempo em um barco a vela ancorado próximo ao Farol da Barra do Ceará, em Fortaleza, próximo à sede do projeto, uma salinha apertada que mal cabia os dezesseis membros do projeto.

Quem via aquele rapaz corpulento de barba longa e ruiva, sempre com um gorro preto na cabeça e um colete salva-vidas laranja preso em seu tórax, uma camisa branca de mangas azuis com o símbolo do Projeto Vida Azul nela estampada, mal poderia imaginar sua história de vida.

Era a mais cruel que qualquer adolescente poderia ter vivido.

E ele fazia de tudo para esquecer.

E, quase sempre, sentir aquele cheiro de mar penetrando em suas narinas embalsamava o seu coração cheio de cicatrizes.

Alex Santiago costumava ficar com um binóculo observando o oceano de cima daquele barco, carinhosamente batizado pelos primeiros membros do projeto de “Crypto”, em alusão à subordem taxonômica (Cryptodira) a qual pertence a maioria das tartarugas de água doce e salgada. Se o Crypto estava ancorado no mar, Alex estava ancorado no Crypto.

Quando não estava realizando atividades, Alex se virava nos finais de semana fazendo bico como bartender em uma boate comumente frequentada pelo público LGBT, localizada no litoral da cidade, próxima à sede do Projeto Vida Azul. A Oxygen Disco-bar sempre estava aberta de sexta a domingo, chovesse ou não. E era com aqueles míseros quinhentos reais mensais que Alex Santiago se mantinha em um quartinho mobiliado de uma pensão ali também próximo ao litoral da cidade.

Estava de folga do bar naquele sábado quente de abril. O sol estava se pondo quando Danielle e Giovanna - o mais novo casal formado no Projeto Vida Azul – aproximaram-se, atrapalhando a observação do rapaz.

— Alex, tem certeza de que vai ficar bem, sozinho aí a noite toda? – indagou Danielle, abraçando a namorada por trás.

— Vem com a gente, Alex! doidinha pra conhecer melhor a cidade. – animou Giovanna.

Giovanna Telles era Zootecnista, graduada com louvor pela Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. Entrou na faculdade aos dezesseis anos e, depois de formada, com vinte e um, resolveu juntar suas coisas em uma mochila e partir para Fortaleza, onde foi recebida de braços abertos por todos os membros do Projeto Vida Azul, principalmente por Danielle Lins, a única oceanógrafa da turma. Estavam, naquele dia, completando quatro meses de namoro e já moravam juntas. Foi amor à primeira vista.

Alex saltou do barco e, após pousar os pés na areia morna da praia, cumprimentou as colegas.

— Podem ir sem mim – Respondeu Alex, de forma amistosa – Vocês sabem que sempre é bom ter alguém aqui na sede do projeto. E vocês sabem que não quero servir de vela pras duas. Vão namorar, se divertir... eu vou ficar bem.

— A gente vai dar uma passada na Oxygen. Não sabemos se os drinks vão estar tão bons quanto aqueles que você prepara. Não sei como aquele lugar não pegou fogo sem você por lá, amigo.

— Mas todo mundo precisa de uma folga, Dani.  – Alex riu, encaminhando-se novamente para o barco Crypto. Acenou com a cabeça, despedindo-se do casal. – Juízo, meninas!

Estava ficando tarde.  O sol já se despedia daquele dia.  E o litoral nunca estivera tão deserto em um sábado. Marcelo dos Santos, sentado na areia fofa da praia, próximo ao Farol da Barra, havia se perdido em seus pensamentos observando o céu, o sol e o mar.

No entanto, ele precisava daquilo. Afastar-se dos estudos por pelo menos um dia foi relaxante, uma vez que o rapaz estava com sua cabeça mergulhada em um turbilhão de matérias que poderiam se misturar e se perder em sua mente sem fazer o menor sentido. Mamãe tem razão. Preciso disso mais vezes, assim posso organizar as minhas ideias.

Levantou-se e começou a caminhar em direção ao mar; molharia os pés nas águas Oceano Atlântico e voltaria para casa.

Alex Santiago não gostava de dormir, pois ultimamente vinha tendo o que chamavam de “paralisia do sono”.

— É uma sensação ruim. Eu tento acordar, às vezes eu escuto tudo o que acontece à minha volta, mas não consigo abrir os meus olhos, nem me mexer. Às vezes parece que há um peso em cima de mim, recobrindo todo o meu corpo. – explicou ele, certa vez, enquanto tomava café da manhã na pensão onde residia.

— Reze para o seu anjo da guarda antes de dormir. Vai lhe fazer bem. – Recomendou Elizabeth, a dona da pensão, enquanto fazia o sinal da cruz.

Mal sabia ela que Alex não tinha uma relação muito boa com Deus.

Sentado em uma cadeira de plástico, ainda no Crypto, o biólogo marinho ligou uma lanterna e a apontou para o mar. Já sua mão direita mantinha o binóculo em frente aos seus olhos. Já nem sabia mais o que vigiar ou observar. Estava incrivelmente cansado.

Pousou o binóculo na perna e a lanterna ligada no chão do barco. Resolveu vencer a guerra contra o sono e, cruzando os braços, repousou a cabeça no mastro e fechou os olhos. Mal não vai me fazer.

Alex não sabia naquele momento se estava sonhando. Tentava nadar para a superfície, mas não conseguia. Viu o reflexo de seus pais em um espelho abandonado no fundo do mar. Gritou. Podia sentir perfeitamente o gosto do sal da água em sua língua, penetrando também em suas narinas; olhou para a superfície: havia um feixe de luz e ao lado de sua fonte o que parecia ser o fundo de um barco. Crypto.

Tentava nadar para a fonte daquele feixe de luz, mas em vão. Seu fôlego já não mais aguentava. Queria que tudo aquilo terminasse, da melhor ou da pior forma possível.

— Alex... Nade para lá. Você estará salvo.  – Ouviu uma voz feminina dizer.

— Meu filho... Estaremos te esperando ali.— Era uma voz masculina. Inconfundível: seu pai.

Eles ainda estavam sendo refletidos naquele espelho abandonado. Pareciam se mexer lentamente.  O homem, no espelho, junto à sua esposa, apontou para a esquerda. Alex virou seu rosto e percebeu: era uma igreja.

— NÃO! – Vociferou Alex, amedrontado. Seus últimos vestígios de fôlego se esvaíram. Água salgada passava a ocupar os seus pulmões. Nada mais era azul; tudo era escuridão.

— NÃO!

Marcelo já estava indo embora quando ouviu aquela voz masculina ecoando pela praia. Vinha da direção de um barco ancorado no Cais do Porto. Percebeu que, de repente, um homem havia se desequilibrado de uma cadeira de plástico, de cima do barco, e caiu no fundo do mar.


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Notas finais do capítulo

O Alex Santiago é um dos personagens que tenho mais orgulho de ter criado. É um cara com quem eu, certamente, chamaria pra dar um rolé. rsrsrs
Agradeço imensamente a minha amiga Tainah Medina, quase Zootecnista, que trabalhou com tartarugas marinhas no Projeto Tamar e me ajudou muito a dar vida a esse personagem. Assim como o Alex, a Tainah também tem uma tartaruga tatuada na panturrilha. Então foi meio que uma homenagem.



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