Antes que o amor acabe escrita por scarecrow


Capítulo 1
Veio a Chuva Forte e a Derrubou


Notas iniciais do capítulo

eu tô é muito enferrujada, viu



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Antes que o amor acabe

A inicialmente brilhante ideia de viajar para a cidade vizinha a fim de ficarem um fim de semana inteiro apenas na companhia um do outro foi de Basquiat. Tinha tudo planejado: conversas longas, fogão à lenha, uma grande cama de casal e velas.

De início, enquanto dependia apenas de si, tudo saíra como o planejado. Acordou no horário, arrumou as malas de acordo com sua infalível lista “o que levar para viagens pequenas”, hidratou os cabelos castanhos e passou o seu melhor perfume. Afonso, milagrosamente, também chegou no horário combinado, e parecia mais bonito do que nunca.

Todavia, os desconfortos começaram logo cedo.

O caminho, apesar de curto (demoraram cerca de 50min no trajeto) foi extremamente doloroso para Basquiat. Os dois sobre nada conversaram durante todo o tempo. Tinha tentado diversas rádios, mas nenhuma parecia satisfazer ambos, até que o troca-troca acabou por irritar Afonso, que optou por desligar o aparelho de som. Então, ainda insistente, Basquiat tentou iniciar diversos assuntos pequenos, afinal, não gostaria de gastar seu repertório especificamente guardado para mais tarde. Também de nada adiantou.

Quando finalmente chegaram na casa de veraneio dos pais de Basquiat, as coisas também não melhoraram muito.

Deixaram as malas no maior quarto do primeiro andar e logo se acomodaram na sala, cada qual com seu respectivo livro, jogados no grande sofá cinza. As luzes do cômodo estavam todas acesas, uma vez que a casa era expressivamente escura por dentro, e entre as almofadas e o virar de páginas, o moreno achou que não estava de todo ruim. Tiveram um início dificultoso, é verdade, mas só o encostar leve da meio grossa de Afonso em seu calcanhar já era mais do que o suficiente para acalmar seu coração ansioso. 

A chuva chegou de repente, meia hora depois que começaram a leitura. As janelas de madeira bateram fortes nas paredes inúmeras vezes devido ao vento forte e as árvores menores davam a impressão de que iriam quebrar a qualquer instante. Afonso, como se nada estivesse acontecendo, continuou a leitura enquanto via Basquiat sair correndo pelos quartos, na tentativa de fechar as janelas.

“Amor, acho que não adianta muito tentar lutar contra as janelas.” comentou Afonso, enquanto trocava de parágrafo.

Não foi surpresa para ninguém quando a luz acabou no bairro inteiro. Não por ser só uma questão de lógica a chuva e a eletricidade não se darem muito bem, mas também pela quantidade de água que caía do céu. Afonso anotou mentalmente sobre como aquela tinha sido a chuva mais forte que já vira na vida.

A casa, já escura, mergulhou no breu.

Basquiat sentiu o estômago doer. Deveria ter pensado melhor sobre as possibilidades existentes nesse passeio e conferido a previsão do tempo em mais de um site confiável. Não tinha sinal algum nos celulares. Desconfiado, disse à Afonso que iria dar uma volta na cidade de carro para ter uma ideia do quão grande era o problema da eletricidade.

No caminho, a chuva já havia diminuído um pouco. Ainda com o estômago doendo, parou na farmácia mais próxima para comprar um remédio e descobrir o que acontecia nesses casos de falta de luz na cidade.

“Parece que mais de metade da cidade tá apagada” comentou o farmacêutico, “e quando é assim, moço, acho difícil a luz voltar antes de amanhã”.

Ao voltar para casa, encontrou Afonso no quintal da casa, observando a chuva sentado na mureta da cozinha imensa. Fumava um cigarro tranquilo, o vento soprando na sua cara, como se nada naquela vida pudesse lhe fazer mal. Não parecia sequer minimamente preocupado com o fato de que Basquiat tinha saído na chuva e demorado muito mais do que o avisado.

“Aqui não tem nada para ajudar com o escuro?’ Afonso perguntou, sem nem um cumprimento. “Uma vela, um fósforo, qualquer coisa?”

Aparentemente, o remédio para dor no estômago iria demorar ainda um bom tempo para fazer efeito. No caminho da farmácia para casa, havia parado em um supermercado e comprado diversas coisas para o almoço, tomando o cuidado de não passarem fome, no mínimo, nas próximas horas. E mesmo tendo toda essa atenção, não tinha pensado em velas, lanternas, nem mesmo em um isqueiro sequer.

Nas últimas semanas, Basquiat teve a incômoda sensação de que seu relacionamento com Afonso estava indo por água abaixo. Sentia-se sozinho, preso com seus próprios sentimentos e achismos, além de nunca parecer suficiente. Toda vez que fazia mil planos, todos tão românticos e bem programados, algo sempre dava errado. E então, impassível, Afonso sempre ficava calado, como se por ele tanto faz, tanto fez.

Com o passar dos dias, aquilo acabou incomodando-o mais do que deveria. Basquiat queria o tempo todo tirar a prova de amor do namoro, com encontros e pequenos mimos, mas sempre tinha que lidar com sua própria falha e com o silêncio do outro. Quanto mais vezes isso acontecia, mais necessidade ele tinha de ter uma resposta concreta, palpável. Aos poucos, o incômodo virou uma ansiedade, a ansiedade virou um sofrimento, e antes que pudesse entender o que estava acontecendo, a gastrite nervosa o pegou de jeito. A dor no estômago parecia crescer e crescer e ocupá-lo todo por dentro, até que uma hora, pensou, aquilo iria ser mais importante que o amor que tinha pelo namorado.

Foi por isso que, a inicialmente brilhante ideia de viajar para a cidade vizinha a fim de ficarem um fim de semana inteiro apenas na companhia um do outro veio de Basquiat. Não iria simplesmente desistir de Afonso, pensou. Ainda poderia tentar algumas vezes a mais antes que o amor realmente acabasse.

Ou, no mínimo, foi isso que tinha pensado.

Porque ali, naquele instante, sem nenhum jeito de dar luz àquela casa, com a chuva e o escuro macabro pesando o silêncio de Afonso, Basquiat perdeu o controle dos seus próprios sentimentos. Talvez, fosse pela situação inesperada, tanto fora dos planos feitos. Ou, então, poderia ser culpa da quantidade de coisas acumuladas dentro de seu peito que até agora não tinha colocado pra fora, vai saber o porquê.

Então, de cara emburrada e sentimentos confusos, Basquiat perdeu a razão. Pensou nas mais absurdas coisas enquanto sentava na mesa de madeira maciça de quatro metros de comprimento. Pensou que, pelo visto, o amor dos dois já havia acabado há muito tempo, e que ele estava ali fazendo um esforço absurdo para algo que não tinha mais volta. Odiou a si mesmo por dar mais valor ao relacionamento do que a si mesmo, que tanto sofria com aquilo.

Ao mesmo tempo em que tinha convicção de que deveria ter aceitado o fim já há semanas, Basquiat sentiu medo como nunca antes.

Não só o medo de ficar sem a pessoa que amava. Depois de tantas reviravoltas da vida, acabou aprendendo que nem sempre amar é o suficiente. Ah, não. O medo que ele sentia mesmo, era de descobrir que todas aquelas coisas que passavam em sua cabeça estavam mais do que certas. Medo de ter amado e se esforçado tanto por uma pessoa, sem sequer conseguir perceber a hora de parar. Medo de, de repente, ter que lidar com um vazio em sua vida que poderia ter se preparado dias a fio antes, mas acabou se prestando a outro papel miserável diante da pessoa que amava.

Sentia tanto medo, que não soube o que falar por um tempo.

O cigarro de Afonso já havia chegado ao fim, mas em momento algum ele deixou de olhar a chuva cair pesada nos miolos de grama verde.

“Afonso” chamou. Viu o namorado virar calmo as duas pernas para dentro, apoiando-as então no banco de madeira. Evitou um suspiro longo, antes de perguntar: “qual é o seu maior medo, agora?”

“Medo?” o outro perguntou, sem entender. Basquiat fez que sim com a cabeça, ansioso.

Será que o namorado também sentia todo esse turbilhão de coisas? Será que, agora, com essa pergunta, os dois poderiam colocar todas as cartas na mesa, e serem sinceros com o que estava acontecendo?

“De aranhas, eu acho” Afonso respondeu, pensativo. Jogou o isqueiro em cima da mesa corrida. “Morro de medo de aranhas, principalmente se eu não consigo enxergar onde elas estão”

Basquiat, incrédulo, caiu na gargalhada. Riu e riu e riu, até o namorado perguntar qual era a graça, que ele sentia, sim, muito medo de aranhas e que era muito injusto fazer graça de uma insegurança dele. Mas não tinha jeito: o alívio que Basquiat sentiu ao perceber que tudo o que estava em sua cabeça era, literalmente, coisa da sua cabeça, foi de deixá-lo sem palavras.

Afonso era tão bobo! Era tão lerdo e vivia tanto em outro mundo, que sequer percebia o que estava acontecendo. Por algum tempo, Basquiat havia se esquecido por quem foi que se apaixonou. É claro que, se nunca sentasse e falasse para Afonso exatamente o que estava acontecendo, nunca teria nenhuma resposta. Era quase injusto ter pensado que, por qualquer motivo, o namorado estava deixando de amá-lo.

Como se não bastasse, Afonso ainda fez aquela cara emburrada, com um bico expressivo e as sobrancelhas juntas, sem a menor incapacidade de se fazer parecer bravo, mas com todo poder do mundo de fazer Basquiat se apaixonar por ele mais uma vez, no meio disso tudo.

Por céus, precisava logo parar de guardar tudo só pra si. Provavelmente, Afonso sequer percebeu que havia uma programação e todo um planejamento dos seus encontros, quem dirá então notar que um problema ou outro havia estragado tudo.

Nada disso significava que o amor dos dois nunca chegaria a um fim. Acontece que, depois de entender que o relacionamento é feito por duas pessoas e não por suas paranoias, Basquiat decidiu que continuaria a se dedicar como sempre fez, até que o amor acabasse. Mesmo que isso durasse uma eternidade, ou que acabasse um pouco chateado por coisas da vida e tivesse que superar toda a sua ansiedade de novo para conseguir ser sincero com o namorado. Com isso, ainda achando graça da reação tão maravilhosa do outro, Basquiat mexeu nas sacolas que trouxera consigo.

“Venha, Afonso, vamos comer alguma coisa. Depois voltamos ao supermercado para comprar algumas velas, ok?”


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