Exilados escrita por Giovanna Lu


Capítulo 1
Ela




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Ela tem um belo par de brincos de pérola, observou Samantha, depois de encarar as pontas das orelhas de Eliza durante tempo demais. A pele daquela região de sua colega era rosada e ela sabia que se observasse a orelha esquerda, do outro lado, veria o piercing prateado perfurando a cartilagem. Sabia que era estranho encarar Eliza, mas não podia evitar. Tudo nela parecia hipnotizante o bastante para distrai-la de todo o resto. 
  

Desceu o olhar, ainda na orelha, e se fixou no brinco cuja pedra ficava brilhante contra a luz artificial e amarelada da sala de aula. Embora a iluminação fosse pouca, ainda existia para que enxergassem a lousa, mas não o suficiente para que fosse um ambiente que pudesse ser definido como claro. Afinal, aquela era uma das escolas especiais. Nenhum de seus estudantes estava inclinado a gostar da luz ou tinha os olhos preparados para lidar com isso novamente. Embora todos estivessem em graus de avanços diferentes, ainda eram, de certa forma, colocados na mesma classificação. Todos ali estavam curados, mas ainda necessitavam de certos cuidados especiais. Esse grupo incluía Samantha. E Eliza também, por mais estranho que parecesse.

Diferente dos outros, Eliza era realmente bonita. Um traço que a maioria deles parecia ter perdido de forma irrecuperável, mas Eliza, de alguma forma, conservara. Sua pele era clara e sem muitas imperfeições. Ela tinha todos os dedos, o que era impressionante (a própria Samantha, que não estava em uma situação lá tão ruim, não tinha três dedos das mãos!), alguns dentes e os cabelos cheios, como se nunca tivessem sido afetados. A única coisa que deixava bastante claro a presença do vírus em seu corpo era a marca em seu ombro. Também era a parte favorita de Samantha, quando ela pensava nas longas análises que fazia sobre a aparência de Eliza. A cicatriz que levava um pedaço de sua carne e deixava um buraco tão fundo que quase alcançava seus ossos fazia os olhos de Samantha brilhar. Aquilo era lindo; a prova concreta de que ela era quase como ela. Quase.

A professora que lecionava na escola especial de reintegração era uma senhora bastante comum, de altura mediana, dentes da frente protuberantes e um punhado de fios brancos espalhados pela cabeleira marrom. Sua matéria era geografia e ela falava com paixão, sem se incomodar com os alunos que precisava ensinar. Alguns ali não entendiam metade do que ela dizia, outros já sabiam bem todo o conteúdo e uma menor quantidade sequer parecia estar processando que estavam ali presentes. Mas a Sra Dolores não se importava; ela demonstrava verdadeiro amor pelo que a escola de Samantha representava. O que era comovente e ao mesmo tempo raro, já que ela claramente botava a mão na massa, enquanto o resto da sociedade dizia que a iniciativa era bonita, mas não chegava perto dos locais frequentados por reintegrados. 

Antes de tudo acontecer, Sam era só uma garota do ensino médio, que dançava ballet, dava grandes festas de aniversário e tinha uma família muito bem estruturada. Ela meio que sentia falta do passado, embora ainda não conseguisse se lembrar dele tão claramente (parecia que havia sido há realmente muito tempo). Sua mãe também estava em reintegração, mas seu nível era bem baixo, assim como seu irmão caçula. Anna, sua irmã mais velha, não havia sido afetada, então ainda não podia morar com Sam e sua mãe, já que elas continuavam representando certo grau de perigo. Enquanto isso, seu pai se mantinha desaparecido. Sam não tinha esperança de encontrá-lo; todos sabiam o que acontecia naquele antigo mundo, não havia nenhum corpo e esta era a comprovação necessária (a ausência de provas, neste caso, dizia tudo).

Naquela tarde de verão, onde o corpo desregulado de Sam transpirava de forma absurda sob as roupas limpas e ao mesmo tempo incômodas, e seus olhos ainda brincavam sobre as orelhas de Eliza, a professora Dolores resolveu passar um trabalho para casa, coisa que nunca havia feito antes. Todos ali tinham uma casa, mas ela precisava levar em conta de que a maioria vivia sozinho ou com pais que não se lembravam dos próprios filhos, que era o caso de Samantha. Sendo sincera, ela mesma não se lembrava bem da família, mas seus rostos soavam familiares, e as histórias que contaram a respeito de seus parentes pareciam bastante plausíveis, então ela simplesmente aceitava e se contentava com alguns casuais flashes de memória.

— Vocês serão colocados em duplas e designados para um continente. O que precisam fazer é traçar uma linha do tempo deste mesmo, com o enfoque principal sobre o apocalipse.

Alguns alunos franziram o cenho, desconfortáveis. Ou Sam pensou que o fizeram; naquela luz fraca, era difícil dizer com certeza quais eram as expressões faciais de seus colegas. Mas parecia sensato, já que a maioria ali não era muito fã de falar sobre o apocalipse, afinal, era o que destruíra suas vidas e os colocara naquele lugar. Passar um trabalho sobre o apocalipse para adolescentes normais era essencial, no entanto, para reintegrados, era crueldade.

— Não pensem que quero prejudicá-los de alguma forma — acrescentou a professora. — Só acho importante que conheçam a própria história. Afinal, todos fazemos parte disso,  embora em graus diferentes. Acredito que precisam saber o que atingiu o mundo e suas vidas.

Ela não recebeu sinais de concordância ou objeção, como sempre. A sala era um bocado apática, com todos aqueles olhos cinzentos e gestos lentos demais.

— Vocês podem se juntar em pares.

Samantha ficou parada por alguns segundos, ainda processando, para então começar a se levantar, assim que notou seus colegas se virando para os lados ou para trás e convidando uns aos outros para fazer os trabalhos. Alguns falavam de forma pausada e sussurrada, enquanto outros combinavam em uma linguagem de sinais improvisada (não é como se fossem capazes de aprender libras). Ela caminhou pela sala até estar ao lado de Eliza, que parecia um tanto alheia ao seu entorno, rabiscando algumas palavras em seu caderno, colocando muita força nos dedos, como se sentisse muita dificuldade em sustentar seu lápis. Colocou a mão sobre o ombro da garota, que imediatamente lhe dirigiu seu olhar astuto e ao mesmo tempo distante — uma combinação que parecia representar uma luta interna constante.

— Eu? — Sam sussurrou, apontando ao redor. Queria dizer uma frase coerente, mas ela ainda se confundia com as palavras, quando precisava dizê-las em voz alta.

Eliza assentiu, aceitando o convite e sorrindo com sua meia dúzia de dentes mal cuidados. 

— Hoje, podemos? — ela perguntou.

— Minha casa — respondeu Sam, se engasgando para formular o que dizia.

— Depois da aula — concordou Eliza.

Ela assentiu, em um gesto rápido de concordância e felicidade. Fazer aquela pesquisa seria insuportável, obviamente, mas Eliza como dupla tornava as coisas mais fáceis. Era como se o mundo estivesse conspirando a seu favor, para variar. Além de que sua mãe ficaria bastante satisfeita em conhecer Eliza, ela sabia; era impossível não se encantar imediatamente com aquela garota doce e tão brilhantemente comum. 

O resto da aula foi como um borrão desconexo, onde Sam se revezava entre encarar os feixes de pele visíveis sob as roupas de Eliza e empurrar as cutículas das próprias unhas, de modo que o tempo passasse mais rápido (e se, por algum acaso, Eliza olhasse em sua direção, ela não pareceria uma total aberração devorando-a com os olhos). Afinal, ela não podia se assustar. Não, a última coisa que Sam queria era Eliza com medo dela; isso seria um desastre total.

Quando a professora anunciou que a aula havia finalmente chegado ao fim, Samantha nunca recolheu seus livros com tanta velocidade. Enquanto observava seus colegas lentamente processando que deviam sair, esperou de forma impaciente por Eliza, encostada ao batente da porta, batendo os dedos nos materiais pressionados contra o peito. Assim que sua parceira se levantou e arrastou-se em sua direção, com os tênis surrados fazendo ocasionais barulhos irritantes sobre o piso, Sam estendeu sua mão em direção a garota, quando ela estava próxima o bastante para alcançá-la.

Não era um gesto bizarro, devido a realidade que estavam inseridas. Bem sabia que aquela cena podia ser muito distorcida, colocada em outro contexto. Mas não naquele. Os reintegrados tinham problemas de coordenação; eram mais lentos do que as pessoas normais e não captavam muito bem o ambiente ao redor. Por conseguinte, era comum vê-los caminhando de mãos dadas ou se apoiando uns nos outros; era o método que haviam encontrado de se locomover mais rapidamente e com segurança. Mesmo aqueles que não se conheciam. Samantha gostava de pensar que aquela atitude era a forma de união mais natural que existia entre sua espécie.

Eliza aceitou sua mão e permitiu que Sam a guiasse até sua casa, que ficava há uns dez minutos da instituição de ensino; era uma casa grande, como todas as outras ao redor (quando o projeto de reintegração começou, todos acharam uma boa ideia mandar aquelas pessoas para boas residências, pois aparentemente, isso traria uma maior visão de humanidade, que era tudo de necessário no momento), a entrada separada da rua por um portão branco e resistente, com fortes cadeados que eram como enigmas diários para Sam, que precisava abrir e fechá-los. Assim que passou pelo segredo, as adolescentes entraram no jardim em frente a casa, que não tinha flores, já que ninguém ali sabia como cultivar.

No interior silencioso da casa espaçosa e bem mobiliada, Eliza olhou ao redor, se demorando sobre os quadros nas paredes, que mostravam Sam e seus irmãos em versões mais novas e saudáveis. Elas não precisaram trocar palavras para Eliza saber que devia colocar sua mochila em qualquer canto da sala, pois foi exatamente o que Sam fez e ela logo copiou o gesto.

— Minha mãe — sussurrou Samantha, apontando a grande porta de vidro na sala que levava em direção a área em que a piscina da casa estava localizada.
  

— Posso conhecê-la? — perguntou Eliza, sem muita dificuldade. Ela era tão adorável.

— Sim.

Sam caminhou até a porta e colocou a mão sobre a maçaneta, empurrando a mesma para que deslizasse e permitisse que a brisa da área externa (devido as poucas árvores do segundo jardim) envolvesse seus corpos, afastando o calor que fazia na rua e parecia ainda consumi-las.

— Degrau — avisou Samantha, apontando para o chão e evitando que Eliza tropeçasse.

Elas atravessaram a passagem juntas e Sam deslizou a porta novamente. A chave estava no buraco da maçaneta e a garota girou devagar, quando percebeu que Eliza estava de costas, olhando o ambiente. Após estar devidamente trancada, Sam retirou o pequeno objeto e jogou o mais longe que pôde, sem emitir som algum devido a grama macia amortecendo a queda. Eliza buscava ao redor devagar, como se esperasse ver a mãe de Sam a qualquer momento.

— Onde? — perguntou a jovem.

— Vamos — disse Sam, estendendo sua mão pela segunda vez no dia. Desta vez, Eliza parecia um bocado hesitante em aceitar a ajuda, mas acabou por fazê-lo.

Elas caminharam juntas pela grama macia. Se estivessem sem sapatos a sensação seria ótima; a quentura confortável nos pés enquanto o vento leve e fresco fustigava seus cabelos. As mechas grossas de Eliza se espalhavam para todos os lados e a pequena quantidade de fios desgranhados e desbotados de Samantha cobriam parte de seu rosto. Quando se aproximaram da piscina, Eliza parecia bem mais confusa do que antes. Quanto menor a distância, mais notável se fazia o fato de que não havia uma única gota de água na piscina.
  

— Onde está... — Eliza iniciou a pergunta, mas Sam não permitiu que ela terminasse, porque se houvesse mais um único passo, ela saberia de tudo antes da hora. E Samantha ruminava aquilo durante tempo demais para permitir qualquer imprevisto.

Ela deu um grande impulso e suas mãos se chocaram contra os ombros de Eliza. Esta tropeçou e acabou perigosamente perto da borda da piscina vazia. Demorou alguns segundos para que ela caísse, como se a cena estivesse funcionando em câmera lenta, mas Sam teve a perfeita visão de seu rosto confuso e assustado, antes que suas costas se chocassem contra o material azul esverdeado que cobria a cavidade. Suas emoções eram deliciosamente humanas e Samantha sentiu a animação crescendo na boca de seu estômago.
  

Sua mãe não gostava de ficar na piscina, mas aquele era o lugar favorito de seu irmão caçula. Provavelmente por tamanha liberdade que lhe era proporcionada ali, já que não existia qualquer possibilidade dos vizinhos enxergarem o que estava acontecendo ou sequer imaginarem. Então, apesar de não estar muito satisfeita em se esconder, sua mãe aguardava na companhia de seu irmão com bastante expectativa.

Sam se aproximou e notou que seus familiares já estavam ao redor de Eliza, que acabara inconsciente ao cair na piscina, o que era ainda melhor do que Sam imaginara em seus sonhos mais esperançosos. Seu irmãozinho descobriu o ombro de Eliza e terminou o trabalho outrora iniciado, arrancando toda a pouca carne que ainda restara na região, se aproveitando do estado inanimado da jovem sem precisar se preocupar com seus gritos. Ela subitamente abriu os olhos injetados e os fixou diretamente sobre Sam, mas não teve tempo para reagir, pois a mãe de Samantha já trabalhava simultaneamente em seu estômago, e ela não teve mais do que poucos segundos de consciência.

Sam desceu a escada que levava a piscina sem muita dificuldade, alcançando sua colega de classe e família rapidamente. A forma como os dedos de sua mãe estavam encharcados pelo sangue de Eliza era linda. O vermelho contrastando atrás de suas unhas e as pequenas gotas que escorriam no canto de seus lábios. Samantha colocou-se de joelhos ao lado de Eliza e se abaixou no nível da adolescente, de modo que seus rostos ficaram a centímetros de distância. Se inclinou e passou seus poucos dentes sobre a bochecha da garota. Sua carne ainda estava quente e muito lisa. Quando ela finalmente mordeu a superfície macia e o sabor maravilhoso que lembrava ferrugem inundou sua boca, Sam soube que toda sua espera valera a pena. Afinal, Eliza era tão saborosa quanto parecia. Ela era quase totalmente humana.

Era engraçada a forma como todos achavam que os reintegrados estavam mudados e dispostos a voltar para suas antigas vidas. Samantha não queria sua antiga vida. Ela nunca se esqueceria do sabor da carne humana e como aquilo a saciava. No final, não existia cura; todas as vacinas e métodos de recomeçar a humanidade eram totalmente inúteis, porque espécies como Samantha nunca se esqueceriam.

Ela voltou a se erguer, afastando-se do corpo de Eliza, que agora tinha a face destruída, com seu osso zigomático exposto pela profundidade que Sam havia devorado sua carne. Todo o resto estava tingido por um tom de vermelho escuro, inclusive o rosto da própria Samantha, fazendo um contraste doentio com seu cabelo alaranjado. Ela passou a língua pelos lábios, fechou os olhos e aproveitou o momento.

Sabia que logo precisaria se livrar dos restos mortais de Eliza para sua família, de modo que não houvesse qualquer odor e os vizinhos acabassem desconfiados, mas ela não se arrependia, nem por um único segundo. Tinha mais uma semana para observar e estudar sua nova vítima, até que houvesse uma oportunidade tão boa, mas duvidava que qualquer aluno da escola de reintegrados fosse tão perfeito quanto Eliza.

Era um trabalho difícil. Sujo. Mas ela lavou as mãos. Afinal, precisaria se levantar no dia seguinte e dar continuidade ao ciclo. Até que as coisas estivessem novamente sob seu controle. 


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