Anortuem escrita por


Capítulo 1
A lenda do cavaleiro sem cabeça


Notas iniciais do capítulo

Espero que aproveitem. Algumas explicações estão nas notas finais para não tornar o texto muito cansativo.



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Embora a Festa das Estações fosse a festa mais esperada em Nnanrena, era o Anortuem que reunia os jovens e os adultos em um espírito pândego e eufórico. Também chamado de “dia das almas”, o Anortuem era comemorado pelos Sensitivos assim como o Halloween era comemorado pelos humanos. Havia doces, fantasias, bebidas, e a famosa contação de histórias em volta da fogueira - o que animava todos as idades. Era comemorado sempre no trigésimo primeiro dia da tría dos lobos, o dia mais frio do ano.(1)

Nos estábulo Shywater as preparações estavam a todo vapor. Ashley e Charlie terminavam de pendurar morcegos de papel e teias de aranha falsas nas baias dos cavalos quando Timóteo chegou. Ele tirou o chapéu e sorriu.

— Caramba, meninas! A decoração do estábulo está impressionante! — Ele comentou, abaixando a cabeça para não batê-la em um fantasminha preso ao teto. Elas sorriram entre si.

— Você não viu nada. Vovô ainda tem umas duas caixas de decoração de Anortuem lá no sótão. — Ashley comentou, descendo das escadas e parando com o cotovelo apoiado em uma das portinholas dali. O cavalo dentro da baia balançou o rabo e continuou a comer, ignorando os adolescentes ali. — O que está fazendo aqui? — Perguntou.

— Vim ver se precisavam de alguma ajuda. Preciso honrar meu salário. — Respondeu, erguendo uma sobrancelha. Charlie prendeu os cabelos compridos com uma tirinha de couro antes de responder:

— Limpar esterco já não honra seu salário?

As garotas caíram na gargalhada enquanto Tim revirava os olhos.

— É, Charlie. Muito engraçado. — Se aproximou de uma das baias, onde um cavalo negro logo andou até ele a fim de pedir-lhe carinho. — O que acha, Tornado? Devo ajudar as duas ou devo ir pra casa? — O garoto perguntou ao animal, enquanto acariciava seu focinho. Tornado prontamente relinchou.

— Sabe que ele não vai te responder, não é? — Ash perguntou, tentando parar de rir. Charlie, por sua vez, nem se esforçava, e o som preenchia o ambiente. — Vai, para de drama e pega as caixas no sótão. São as que estão perto da janela. — Pediu. Tim pendurou o chapéu em um cabideiro de madeira no canto e correu em direção da grande casa.

— Pare de rir! — Ashley reclamou, batendo na namorada com o chapéu que trazia na cabeça. — Tim é uma pessoa boa! — Ela bronqueou. Charlie revirou os olhos castanhos e estalou a língua.

— Ash, posso pegar o Tornado emprestado por uma hora? Quero ir até o mercadão… — Comentou, já puxando uma sela do armarinho. Ashley franziu o rosto. — O que foi, amor? — Perguntou. Ash cruzou os braços.

— Vou precisar do Tornado limpo para amanhã, e ele está imundo. Não tem como você pegar a Nuri?

— Aquela sua égua me odeia, Ashley!

— Odeia nada! — A mais velha contrapôs, indo até a baia da égua malhada e acariciando-a. Ao lado de Ashley, a égua parecia extremamente mansa. — Por favor, Charlie! — Suplicou. A ruiva revirou os olhos e suspirou.

— O que eu não faço por você, Ash? — Perguntou. As duas sorriram. — Mas, ei, pra que você precisa do Tornado?

Ashley continuou acariciando Nuri e não respondeu.

*

A festa foi maravilhosa. Não havia outra palavra para descrever;  a decoração estava tão assustadora quanto deveria ser, a comida estava sendo servida por empregados vestidos de zumbi e a música tocava de algum lugar de dentro da grande casa. Crianças corriam de um lado ao outro e os cavalos haviam sido retirados da baia e colocados do lado de fora.

Como um bom anfitrião de Anortuem, James Shywater andava entre seus convidados sem nenhuma fantasia, mas com um sorriso genuíno no rosto enrugado e envolto em cabelos grisalhos. Sua neta mais nova o acompanhava sempre, rindo e até dançando.

Várias pessoas compareceram aos estábulos Shywater, e haviam várias fantasias diferentes. Timóteo, beirando o ridículo, estava vestido de vampiro. Charlie, por sua vez, se esforçou para ficar assustadora. A fantasia de Dyl-Oblecia (2) era tão real quanto as descrições nos livros da Biblioteca. Ashley estava quase simples demais: um sobretudo negro e botas de montaria marrom. Charlie pareceu decepcionada ao vê-la:

— Você prometeu que viria fantasiada… — Resmungou, sentando-se ao lado dela e tomando-lhe a mão. Ashley já tinha a desculpa pronta:

— Eu não estou muito bem. Achei que algo mais leve me faria sentir melhor. — Respondeu, em uma voz arrastada. Charlie abaixou o capuz da sua fantasia e sorriu para ela.

— Está desculpada. Vamos, sua avó vai começar as histórias.

Vovó Shywater estava vestida de fada, com asas de plástico e um vestido florido cobrindo o corpo redondo. Ela sorria calorosamente para os jovens, mas seus olhos tinham um quê de maliciosidade, como as crianças tinham ao pregar travessuras nos outros. Ela foi a única que notou Ashley saindo escondida de perto da fogueira e se esgueirando para dentro do celeiro, e também era a única que sabia do plano da garota.

— Vejamos… A lenda do cavaleiro sem cabeça. — A senhora começou a ler um livro apoiado em seu colo. Os adultos conversavam perto das mesas, mas abaixaram a voz; as crianças sentaram-se mais para frente em seus assentos, tentando escutar todas as palavras; os adolescentes, por sua vez, inclinaram-se para frente e trocaram olhares ansiosos.

— Cadê a Ash? — Tim sussurrou para Charlie. A ruiva deu de ombros.

— Ela não estava muito bem. Deve ter entrado. Agora cala a boca, pateta. — Os dois riram e se empurraram como irmãos. A senhora continuou a ler.

— O velho Balmen residia na parte Leste de Wistorf, nos estábulos que ficavam perto do mar. O local era muito visitado por pessoas que amavam cavalos e por viajantes que passavam a noite a se recuperar de suas viagens marítimas.

“Balmen possuía um cavalo negro que ele chamava de Major. Major era um cavalo fiel ao seu dono, e Balmen era fiel a ele. Eles tinham uma ligação digna de Ihé e Uwa.”

“Alguns anos atrás, Balmen adoeceu. Major não parava quieto na baia, tentando chamar seu dono para correrem pelos campos dourados. Incentivado pelo cavalo, Balmen se recuperou, e os dois podiam ser vistos cavalgando pelas montanhas até o Oeste.”

A senhora fez uma pausa dramática antes de continuar:

— Foi quando a desgraça aconteceu. Era um Anortuem como o de hoje. Crianças corriam pelo estábulo, os cavalos relinchavam e Balmen parecia muito feliz. Tão feliz que não percebeu que o celeiro estava prestes a cair.

“Quando escutou a madeira estalando, Balmen lembrou que não havia colocado Major para fora. Como a ligação deles era muito forte, ele correu para tentar salvá-lo. O celeiro desabou em cima dos dois, matando-os na hora e arrancando fora a cabeça de Balmen.”

Do outro lado, a porta do celeiro rangeu ao ser aberta pelo vento. As crianças pularam assustadas, mas não havia ninguém nem nada ali. Rindo de nervoso, elas voltaram a escutar.

— Hoje, o estábulo já não existe mais, mas suas ruínas permanecem no mesmo ponto. Uma grande cruz marca o local onde Balmen e Major morreram…

Antes que concluísse sua narração, os cavalos começaram a ficar agitados e nervosos. Batiam os cascos no chão, empinavam e relinchavam. Charlie e James correram para acalmá-los, procurando com os olhos o que havia assustado-os. A garota não tinha certeza, mas podia jurar que vira uma sombra parecida com a de um centauro passar galopando do outro lado. Seu coração disparou de medo.

— Calma, crianças, está tudo bem. — Arabela tentava chamar a atenção para si, sorrindo calorosa. — Os cavalos estão calmos? Todo mundo bem? Bom, bom. Continuando…

“Há relatos de muitos habitantes que ouviram um galope suave pelo estábulo durante a noite, e há quem jure por Draím que viu a silhueta de um cavalo-esqueleto e um cavaleiro sem cabeça galopando por Wistorf”.

Quando a senhora acabou de narrar, a porta do celeiro bateu fortemente. Na frente da porta fechada estava um esqueleto branco de cavalo e, montado em seu lombo, um cavaleiro sem cabeça. O cavalo empinou e relinchou.

Foi a gota d'água. Crianças correram para seus pais, adultos xingaram e alguns adolescentes gritaram de medo. James, por sua vez, olhava fixamente para as botas do suposto fantasma de Balmen, reconhecendo-as.

Cavalo e cavaleiro sem cabeça começaram a galopar em torno do estábulo.  Sobre os gritos das crianças era possível escutar uma gargalhada que vinha de dentro do sobretudo negro. Balmen apeou o cavalo e desmontou dele. Depois, ergueu a mão e, de baixo de mais uma rodada de gritos, abriu o casaco.

Ashley tirou a fantasia e se dobriu de tanto rir. Ao seu lado, Tornado começou a pastar sem cerimônias, ignorando totalmente a sua volta. Foi então que eles entenderam. Era Ashley o tempo todo.

— Você quase nos matou de susto! — Charlie gritou, levando as mãos ao coração. — Era pra isso que precisava do Tornado?

— Claro! Eu precisava pintá-lo como um esqueleto. — A garota respondeu, passando a mão sobre o pelo e arruinando a pintura de uma costela. As crianças começaram a correr em direção dela para tirar uma foto com o cavalo-esqueleto e com o fantasma de Balmen.

É claro que, entre tanta agitação, ninguém notou o verdadeiro cavaleiro sem cabeça andando pelo estábulo em seu cavalo de ossos.


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Notas finais do capítulo

(1) Literalmente, dia 31 de Outubro. A estação dos lobos é como eles chamam o inferno, e a tria é o terceiro mês dessa estação.

(2) Dyl-Oblecia é uma criatura do meu universo xonhecida por sugar a felicidade das pessoas por meio de um desejo. Elas matam milhares de pessoas por ano, por isso a Charlie achou que seria uma boa se fantasiar.

Espero que tenham gostado ♡



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