Truque do Destino escrita por Akiel


Capítulo 3
III - Fantasmas


Notas iniciais do capítulo

Música de inspiração: Underskin (Ivan Torrent)



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III – Fantasmas

 

Há um segredo no sangue do Truque do Destino e eu sei que Auberon o conhece, que é esse segredo que faz com que ele a mantenha como sua protegida. E que a coloque como companhia para Zireael. Com o sangue de Ileanna e de Cirilla, nenhum portal para o caminho dos mundos se manterá fechado.

(Fragmento do diário do Sábio Avallac’h)

 

Skellige

O vento frio e úmido dança na ponte para Kaer Trolde, balançando o negro cabelo da jovem feiticeira que se encontra apoiada na murada, o olhar dourado observando o mar no horizonte. A mente registra a presença e os olhares dos guardas de Crach na Craite, mas não dispensa atenção à eles. É a memória que controla a mente da feiticeira, deixando o coração pesado com as lembranças que não conseguem permanecer esquecidas. Recordações de invernos passados no Palácio da Lua, correndo e treinando no jardim, aprendendo a não temer a presença do frio e a transformar o gelo do mais impiedoso inverno em uma arma para servir um rei.

Um suspiro escapa por entre os lábios vermelhos e Ileanna se afasta da murada, caminhando em direção à saída da fortaleza. Os passos da feiticeira são calmos e distraídos, ganhando ocasionalmente os olhares dos guardas e dos moradores de Ard Skellig. Sussurros são trocados junto com a atenção que acompanha a jovem de olhos de witcher. Temores e desconfiança acerca de magia e de feiticeiras misturados com rumores nascidos daqueles que testemunharam o auxílio oferecido aos guerreiros contra afogadores e nevolosos. Murmúrios sobre como a feiticeira luta, como um espectro entre os inimigos.

Entretanto, nenhuma palavra chega aos ouvidos de Ileanna, que ainda se encontra navegando entre as águas das próprias lembranças. O caminho de pedras e grama reflete a memória de um belo jardim, com uma antiga árvore em seu centro, como um coração, tão alta e forte que era capaz de sustentar um balanço de ferro. A feiticeira se recorda das tardes passadas no balanço, de bolhas de sabão sopradas para o céu, acompanhadas por palavras suaves, histórias de um universo mais vasto, de mundos até então desconhecidos. E uma presença jamais ausente, imponente em sua posição e poder, mas também calma como as ondas, ecoando o cansaço de uma vida vivida através de muitos séculos. A lembrança da presença do rei pesa na memória da feiticeira. Assim como a recordação da morte do soberano.

O som das ondas se quebrando desperta Ileanna para a realidade que a cerca. Sem perceber, a jovem feiticeira chegou a um ponto deserto do litoral, cujo silêncio é quebrado apenas pelo movimento do mar. A feiticeira se aproxima da linha onde a água encontra a areia, os olhos de witcher acompanhando o avançar e recuar das ondas. A espada é retirada da bainha, as runas gravadas na prata brilhando fracamente sob a luz do sol. A ponta da lâmina toca a areia e, sob o comando da bela jovem, as runas brilham com mais força, alimentadas pelo próprio poder da feiticeira. A espada é erguida e abaixada rapidamente, como se atacasse um inimigo invisível. Sob o silêncio da praia, Ileanna treina alguns golpes, o corpo se movendo com determinação e agilidade, cada golpe letal na precisão com que é executado, como se o treino fosse uma tentativa de matar as próprias lembranças.

O silêncio da praia é abruptamente quebrado por um alto e agudo grito. A feiticeira levanta o olhar, vendo uma sereia mergulhar no ar, as mãos abertas e prontas para afundarem na jovem. Girando o corpo rapidamente para o lado, Ileanna desvia do ataque da criatura, assumindo uma postura defensiva. A sereia tenta atacar novamente, o grito ecoando através das ondas. Com um movimento da feiticeira, a lâmina desenha um arco no ar, atingindo a sereia com um golpe de brilhante energia. Assim que a sereia cai na praia, outra se aproxima com agilidade, as garras alcançando e cortando o ombro direito da jovem de olhos dourados. Respirando fundo e se concentrando, Ileanna pula para outro ponto da praia, o teleporte rápido demais para a criatura acompanhar. Outro movimento da lâmina e a sereia é congelada no ar, caindo como um peso morto sobre a areia. Uma terceira tenta atacar por trás, mas a feiticeira é mais rápida, se virando e acertando um corte certeiro no tronco da sereia.

Sob o som das ondas, a jovem feiticeira observa os cadáveres das sereias, os achando tão singulares quanto as criaturas encontradas na floresta e atacando os guerreiros de an Craite. Esse mundo possui criaturas estranhas. O pensamento cede lugar para a dor que faz os cortes no ombro pulsarem. Ileanna toca o ferimento, sentindo o sangue escapar e molhar os rasgos feitos na roupa escura. A feiticeira move o braço, sentindo, no enfraquecimento da adrenalina, o peso da espada aumentar. A mudança desperta outra lembrança na mente da jovem de olhos dourados, de um ferimento ganho anos atrás e cuja cicatriz permanece, mesmo que escondida pela longa manga da camisa e a luva negra. Na própria mente, a jovem feiticeira vê a linha que cortou da palma da mão direita até quase atingir o cotovelo. E o quanto ela sangrou quando foi feita.

“Você nunca será uma soldada” A voz de Eredin ecoa na mente da feiticeira, junto com a lembrança da dor e do sangue. O coração bate mais forte e mais rápido no peito, recordando o quanto custou para superar as consequências do ferimento, para ser capaz de segurar uma espada novamente. Com um movimento impetuoso, Ileanna afunda a ponta da lâmina na areia, a magia liberada pelo contato fazendo a praia tremer e a areia se levantar, se transformando em flocos congelados. O frio atravessa a pele, tocando os músculos e invadindo o sangue, aprisionando o tempo em um momento que concentra em si todas as lembranças de uma vida abandonada.

Novigrad

O calmo trotar de Plotka ainda se encontra longe dos muros, mas o som da cidade já invade e domina o ar. A vida pulsa intensamente na Cidade Livre de Novigrad, mas ainda é incapaz de esconder as sombras que dançam entre as ruas, pintando medo e dor nos rostos dos habitantes. Passando pelos arredores da cidade, Geralt percebe a atmosfera tensa e dividida, como se a própria Novigrad estivesse em um constante estado de alerta. O witcher deixa Plotka próxima ao portão e caminha pelas ruas até a praça central, seguindo o caminho para a casa que Triss mantém na cidade. Entretanto, a visão que recepciona Geralt na Praça do Hierarca está longe de ser a mais agradável.

Uma multidão se encontra aglomerada ao redor de duas fogueiras, cada uma contendo uma pessoa amarrada em sua estaca central. Em uma delas, o witcher reconhece a aprendiz de Aretuza que conheceu em Vergen enquanto ajudava Saskia e Iorveth. Antes que o Lobo Branca possa ter alguma reação, as chamas começam a queimar e não demoram a engolir o corpo da jovem feiticeira. Os gritos de dor ecoam pela praça, mas não parecem evocar nenhuma reação dos espectadores além de olhares repletos de medo ou ódio. Logo, é a vez da segunda fogueira, onde um homem implora por ajuda e misericórdia. Quando as chamas são acesas e começam a crescer, revelam a verdadeira natureza do homem. Um dúplice.

Respirando fundo, o witcher desvia a atenção das fogueiras, encontrando o olhar satisfeito de um homem vestido com o uniforme dos Caçadores de Bruxas. Embora o contato não dure mais do que alguns segundos, é o suficiente para Geralt perceber o desafio e a ameaça presentes no olhar do caçador. Decidindo seguir o próprio caminho com mais cautela, o witcher deixa a praça em direção a casa de Triss, a encontrando revirada e saqueada. E, mais uma vez, a presença do caçador de bruxas. Menge. Um homem que faz questão de deixar claro o quanto Geralt não é bem-vindo em Novigrad, assim como as feiticeiras e qualquer não-humano. A ameaça não faz o witcher temer pela própria segurança, mas pela de Triss.

Encontrar a feiticeira se prova uma tarefa de rastreamento, uma que faz com que o Lobo Branco possa perceber a real face da Cidade Livre. Uma cidade tomada pelo medo e pela intolerância, onde aqueles que não se encaixam nos padrões aceitos são perseguidos, queimados em fogueiras ou alvos de punhos e chutes se tornando invisíveis ou irrelevantes para aqueles que dizem pregar a justiça. Novigrad se tornou uma cidade como qualquer outra, marcada pelo fanatismo e pela intransigência. O único ponto positivo que Geralt consegue encontrar é rever Triss, sã e salva, se não nas melhores condições. Após se encontrarem nos Miúdos, o witcher aceita acompanhar a amiga em um trabalho que não se mostra dos mais difíceis.

— Ainda não consigo acreditar que Ciri voltou. – a feiticeira comenta enquanto ambos esperam os ratos fugirem – Ela esteve aqui, em Novigrad, e eu não a vi.

— Ela não é a única que estou procurando. – Geralt diz, precisando falar com alguém sobre o que descobriu. E Triss ainda tem a confiança do witcher, além de saber sobre o que aconteceu anos atrás.

— Quem mais? – a feiticeira questiona com curiosidade.

— Ileanna.

A mudança na face de Triss diante do nome dito é imediata. A calma e o relaxamento dão lugar à confusão e a preocupação. Os olhos castanhos da feiticeira procuram no rosto do witcher por alguma indicação de que ele poderia estar brincando, mas Triss sabe que Geralt não brincaria com algo tão sério.

— A Yen sabe? – a feiticeira questiona.

— Não. – o witcher responde rapidamente – Eu quero ter algo mais concreto antes de falar qualquer coisa para ela.

— Então, Ileanna voltou também? – Triss pergunta, a voz se tornando mais alta e ansiosa – Como Ciri?

— Eu não sei, Triss. – antes que a feiticeira possa fazer outra pergunta, o witcher continua – Mas eu sei que ela esteve nesse mundo um tempo atrás. E eu sonhei com ela e com Ciri, com elas fugindo da Caçada Selvagem.

— Geralt, você acha que a Caçada está atrás das duas?

Antes que o Lobo Branco possa responder, o armazém é invadido por Caçadores de Bruxas e uma luta começa. O embate não é duradouro, Geralt e Triss conseguindo trabalhar unidos para acabar com os inimigos com eficiência e rapidez. O homem que contratou a feiticeira, por sua vez, é convencido a pagar o dobro devido a complicação que trouxe para o trabalho.

— Geralt. – Triss chama depois que o contratante vai embora – Eu não se isso pode ajudar, mas acho que você deveria procurar por Corinne Tilly, uma oneiromancer. Ela pode ajudar a encontrar Ciri. E Ileanna.

Apesar de um ceticismo inicial, Geralt decide seguir a sugestão de Triss. O witcher não tem nada a perder e tudo a ganhar encontrando Ciri e Ileanna.

Skellige

As chamas dançam na lareira, afastando o frio e iluminando o olhar violeta. Yennefer percebe o modo como Crach a observa, como se estivesse procurando por algo. Não a chama deixada no passado, mas algo diferente, algo que a feiticeira não consegue identificar. No silêncio que domina o jantar, o jarl de Ard Skellig pensa sobre o que já havia notado antes, mas que agora, quando se encontra frente a frente com Yennefer, se torna ainda mais evidente. A semelhança física entre Yenna e Ileanna. Para o líder dos an Craite, são apenas a cicatriz e os olhos dourados que distanciam as belezas das duas feiticeiras.

— O que há, Crach? – a feiticeira questiona, os lábios se esticando em um sorriso pintado com provocação – Está tão pensativo.

— Outra feiticeira chegou m Skellige antes de você. – o jarl responde após um momento, a voz grave coberta com seriedade – Também procurando por Ciri.

— Quem? – Yennefer questiona de modo imediato, o tom de voz se tornando mais sério e o sorriso se desmanchando nos lábios finos.

— Eu não acredito que você a conheça. – Crach diz – Ainda mais porque ela alega ter conhecido Cirilla em outro mundo.

— Essa feiticeira misteriosa possui um nome?

— Ileanna. – o guerreiro responde, o olhar azul e atento percebendo a intensa surpresa que nasce nos olhos da feiticeira.

Por um momento, Yennefer sente o tempo parar. O silêncio retorna para o aposento, sendo quebrado apenas pelo lento e estável crepitar das chamas na lareira. Imóvel, a poderosa feiticeira tenta controlar a própria reação diante do nome dito. Contudo, o coração é incontrolável e Yennefer o sente batendo intensamente no peito, dividido entre acreditar ou não no significado daquele nome. Memórias de um meninas nos braços de um witcher invadem a mente da bela mulher, acompanhadas de perto pela lembrança da batalha na qual a mesma menina foi perdida. Ileanna. Minha pequena. Os pensamentos são altos e fortes, quase abafando a voz de Crach.

— Ela se parece muito com você. – o jarl diz ante o silêncio da companheira – Fisicamente, quero dizer.

“Espere só. Ela vai ser uma cópia de Yennefer quando crescer” A feiticeira ouve a zombeteira voz de Lambert na memória.

— Onde Ileanna está agora? – Yennefer questiona, a voz saindo dura e controlada, tentando se manter distante da ansiedade – e da esperança— de poder vê-la novamente.

— Ela é minha hóspede, como você. – o guerreiro responde – Se quiser conversar com ela, arranjarei um encontro – Crach faz uma pausa, a postura se tornando mais cautelosa – Decidi que seria mais prudente mantê-la por perto.

— Por quê? – as palavras do jarl tiram a feiticeira da própria surpresa e das lembranças despertadas.

— Ela tem algo de inquietante, Yenna. De perigosa. – o líder dos an Craite responde – Eu não estou dizendo que ela é uma ameaça. Na verdade, eu soube sobre ela somente porque ela ajudou meus guerreiros com alguns monstros, mas.... – um pesado e profundo suspiro escapa por entre os lábios do jarl – Tem algo nela, algo que me diz que ela é poderosa e que poderia, se quisesse, trazer destruição para as ilhas. Mas ela diz que o interesse que possui é achar Cirilla.

— O que ela quer com Ciri?

— Elas não amigas. Ou é o que ela diz. Que elas se conheceram quando Ciri foi uma convidada no palácio do rei ao qual Ileanna servia. Em outro mundo. – a última parte captura a atenção da feiticeira – Tem mais uma coisa, Yennefer.

— O que é, Crach?

— Quem a viu lutar junto com meus guerreiros, e até mesmo eles, a descrevem como um espectro, um fantasma em meio aos inimigos. Não preciso te dizer que tipo de boato isso originou.

— A Caçada Selvagem. – Yennefer diz sem precisar pensar, o sangue esquentando ao lembrar da presença deles na batalha que levou Ileanna embora.

— Exatamente. – Crach concorda – Alguns começaram a temer que ela possa ser um deles. Ela não fala com ninguém, está sempre andando pela ilha sozinha. Ela realmente parece um fantasma.

O silêncio retorna, mais pesado e tenso do que antes, o jantar sendo esquecido sobre a mesa. A feiticeira tenta assimilar tudo que foi dito e descoberto. O retorno de Ileanna se destaca acima de tudo, até mesmo do interesse da jovem feiticeira por Ciri. As mãos pálidas se fecham com força, como se para controlar o turbilhão de pensamentos e emoções que dominam a mente da poderosa feiticeira. Os olhos violetas se voltam para a lareira, mas são incapazes de ver as chamas que ainda dançam e crepitam. A mente viaja para longe, para anos no passado, e Yennefer sente o coração tremer ao lembrar o modo como Ileanna correu para os braços de Vesemir e do presente que o witcher deu para a pequena menina. Um medalhão na forma da cabeça de um lobo.

O que eles fizeram com você, pequena?

Novigrad

Por um momento, Geralt teve a sensação de vivenciar um dejà vú com púeros. Sarah o lembrou demais de Johnny, mas por sorte do destino, ela também estava aberta a conversar e foi preciso apenas um pouco de convencimento para fazer com que Sarah libertasse a mente de Corinne. E isso levou a uma conversa ao mesmo tempo incômoda e reconfortante com a sonhadora. Falar sobre Ciri, por mais difícil que tenha sido no começo, foi também um alívio para o coração tenso do witcher. Reviver as lembranças e o forte laço que o une a neta de Calanthe, mais filha de Geralt do que de Emhyr. Mas mesmo tendo escolhido Dandelion como alguém que Ciri poderia ir para buscar ajuda, o witcher não acreditou realmente que ela pudesse pedir ao bardo por auxílio. Pelo menos, Dandelion é uma pista fácil de encontrar. Ainda assim, faltava uma pessoa para tentar encontrar.

— Corinne? – o witcher começa, um pouco hesitante, antes de levantar da cama – Há outra pessoa que eu quero encontrar, mas não sei se mesmo você consegue me ajudar.

— Por quê? – a sonhadora questiona de modo suave, descansando as mãos sobre as coxas.

— Eu não a vejo em anos e não tenho certeza se conheço alguém a quem ela pediria ajuda. – Geralt responde, cada palavra deixando os lábios com dificuldade, pesadas com a dúvida, a realização do tempo passado e do desconhecimento sobre o destino tomado por Ileanna.

— Podemos tentar, se quiser. – Corinne oferece, sorrindo de modo sereno – Mas, novamente, você terá que me contar sobre essa pessoa, me deixar experimentar a ligação que a une a você.

O bruxo assente, o olhar se voltando para o chão. Minutos são passados em silêncio, a sonhadora permite que Geralt reúna os próprios pensamentos e lembranças, tarefa que se mostra custosa para o Lobo Branco. Não é difícil pensar em Ileanna, todas as lembranças permanecem cuidadosamente guardadas, recordações de uma época que Geralt pensou que nunca voltaria, que nunca voltaria a ter nem mesmo um fragmento. E esse é exatamente o problema. Voltar e revisitar o tempo em que ele teve algo que, até então, achara que estava fora de seu alcance ter. Um pesado suspiro escapa por entre os lábios finos e o witcher procura por um início, o encontrando na mesma pessoa que ele deseja encontrar.

— O nome dela é Ileanna. – Geralt começa, o olhar dourado ainda fixo no chão do quarto – Ela é... Minha filha. – a última palavra soa como uma corrente sendo quebrada para os ouvidos do witcher, como um segredo antigo finalmente sendo revelado.

— Como Ciri? – Corinne questiona, atraindo a atenção das írises douradas.

— Não. – o witcher responde – Ileanna é minha filha biológica. – percebendo a confusão que nasce no olhar da sonhadora, Geralt suspira e pergunta: – Você já ouviu falar da Noite das Mil Luas?

— Sim. Aconteceu há pouco mais de vinte anos, se não me engano. – quando o witcher assente, confirmando, a sonhadora continua – Dezenas de luas apareceram no céu noturno e muitos temeram que uma nova Conjunção das Esferas estivesse começando, mas nada aconteceu, nada mudou naquela noite. – Corinne faz uma pausa, um brilho de compreensão nascendo no olhar claro – Contudo, dizem que aquela noite mudou para os feiticeiros, que eles ficaram mais fortes durante a presença das luas, sem limites ou barreiras.

— Isso é verdade. – o Lobo Branco diz – Especialmente para os desejos dos feiticeiros. E Yennefer tinha um desejo muito forte, um que ela perseguia com todas as forças, a cada chance que aparecia. O desejo de ser mãe.

— E ela realizou esse desejo na Noite das Mil Luas? – a sonhadora questiona em um tom de voz suave, percebendo no olhar e na postura do witcher a delicadeza do assunto sendo conversado.

— Sim. – Geralt responde, finalmente se levantando e caminhando em direção à janela do aposento – Ela nem ao menos percebeu, pelo menos, não naquela noite. Ficamos juntos como sempre. Intensos como sempre. – um pequeno sorriso nasce nos lábios do witcher – Nós só descobrimos quando estávamos no Templo de Melitele em Ellander. Yennefer tentou realizar um feitiço, algo básico, mas não conseguiu, ela sentiu dor. Nenneke tentou ajudar e foi ela que descobriu que Yen estava grávida. Nós não conseguimos acreditar.

O witcher cai em silêncio por alguns segundos, a mente nadando nas memórias daquele dia. Da surpresa no rosto de Nenneke e Yennefer, que se transformou em um sorriso constante nos lábios da feiticeira nos meses que se seguiram. Geralt se recorda de dias mais além, quando Ileanna já havia vindo ao mundo, do modo como a feiticeira sempre mantinha a filha nos braços, próxima, ao alcance de seu olhar. Mas o Lobo Branco também se lembra de como ele se sentiu com a notícia, o medo de que as próprias mutações poderiam ter consequências para a criança e a felicidade quando olhou para Ileanna pela primeira vez, tão pequena nos braços de Yennefer.

— Eu temi... – Geralt recomeça, o olhar distante, cego para a cidade que pode ser vista através da janela – Que minha natureza como um witcher pudesse causar algo ao bebê, mas Ileanna nasceu saudável. Com meus olhos. – o witcher faz um gesto vago indicando os olhos dourados com pupilas verticais – Assim que descobrimos que Yen estava grávida, Nenneke perguntou como isso foi possível. Só então nós lembramos da Noite das Mil Luas. Yennefer havia falado com outras feiticeiras sobre o que estava acontecendo, tendo percebido em si mesma o aumento de poder. – uma fraca risada escapa por entre os lábios de Geralt – Ela fez um desejo e as luas o atenderam.

— E depois que Ileanna nasceu? – Corinne questiona, o olhar atento acompanhando a caminhada que o witcher começa pelo quarto.

— Quando soube sobre a noite, Nenneke nos avisou sobre o que tudo isso poderia significar para Ileanna. – Geralt se volta para a sonhadora, apoiando a base na coluna na mesa e cruzando os braços sobre o peito – Ela foi concebida em uma noite de intensa magia e de dois sangues que normalmente não poderiam se misturar: um witcher e uma feiticeira. Isso fez de Ileanna um Truque do Destino. Era essa natureza que fazia Yen sentir dor ao tentar realizar feitiços. Mesmo ainda no útero, Ileanna mostrou que seria incrivelmente sensível a magia.

— Truques do Destino são bem raros. – a sonhadora comenta, assentindo – Mais do oneiromancers.

— Então você conhece a definição deles. – o witcher diz – Seres que não deveriam existir, mistura de sangues que não deveriam ser combinados, mas também muito sensíveis a magia. Nenneke nos avisou sobre o perigo que Ileanna poderia correr se outros feiticeiros, menos escrupulosos, soubessem sobre ela. Então, para mantê-la segura até que pudesse aprender a se defender, nós levamos Ileanna para Kaer Morhen. Ela cresceu em meio a witchers e sempre mostrou um grande interesse em aprender a lutar com espadas. – um pequeno sorriso estica os lábios finos de Lobo Branco – Mas sempre prestamos atenção para ver se ela mostrava alguma inclinação para magia.

— O que aconteceu com Ileanna? – a pergunta de Corinne desfaz o sorriso do witcher.

— Nós tentamos protegê-la dos perigos desse mundo, mas não consideramos aqueles que vem de outros lugares. – Geralt responde e há um timbre de amargura na voz do witcher – A Caçada Selvagem veio por ela. – alguns segundos se passam em silêncio e a sonhadora espera pacientemente pela continuação da resposta – Eles vieram uma noite, Ileanna era pequena, mal tinha completado 8 anos. Nós tentamos defendê-la, abrir uma oportunidade para que ela pudesse escapar, mas... A Caçada nos encurralou nos portões de Kaer Morhen. Yennefer tentou usar magia para mandá-los embora, mas o mago deles era mais poderoso. Ela tentou segurar Ileanna, mas ainda assim a Caçada Selvagem conseguiu levá-la.

— Sinto muito. – a sonhadora diz em um sussurro.

— Nenhum de nós sentiu mais essa derrota do que Yennefer. – o olhar dourado volta para o chão – Ileanna significava o mundo para Yen.

Você deve ter sofrido também.

— Sim. – o witcher concorda, o coração pesado e dolorido com as lembranças – Por meses, procurei por rastros, por pistas que pudessem me indicar um caminho ou qualquer indicação de como recuperar minha filha, mas não encontrei nada. Eu pensei que a tivesse perdido para sempre. Só que, agora, eu descobri que ela retornou para esse mundo, pelo menos uma vez.

— E você quer descobrir se pode reencontrá-la, se há mais alguma pista que posso levá-lo até ela. – Corinne diz e Geralt assente, confirmando – Deite-se e relaxe, concentre-se em Ileanna. Talvez eu consiga ajudá-lo.

O witcher obedece ao pedido da sonhadora, retornando para cama e se deitando sobre o colchão. As pálpebras se fecham sobre os olhos dourados e um profundo suspiro escapa por entre os lábios finos. No silêncio do quarto, Geralt permite que a mente seja levada pelos pensamentos e pelas lembranças acerca de Ileanna. Por um momento, tudo que o Lobo Branco consegue ver é escuridão, mas aos poucos, as sombras vão se desfazendo, relevando o chão coberto pela neve. O witcher sente a madeira sob os pés e, ao olhar para frente, se depara com um porto familiar, as ondas batendo contra os navios atracados em um movimento suave. Tentando olhar ao redor, Geralt vê uma fortaleza no alto de uma montanha, a neve caindo lentamente sobre a ponte que que a ela oferece entrada. A neve continua caindo e caindo, até tomar toda a visão e o witcher despertar.

— Funcionou? – Corinne questiona ao perceber o despertar do witcher.

— Acho que sim. – Geralt responde se sentando sobre o colchão, a mente ainda enevoada pelo sonho – Eu vi o porto e a fortaleza de Kaer Trolde.

— Você já esteve nesse lugar?

— Sim. – o witcher responde, voltando o olhar para a sonhadora – Fica em Ard Skellig. O jarl é um amigo.

— Então, talvez, ele possa oferecer a direção que você procura. – Corinne conclui, oferecendo um sorriso.

— Obrigado, Corinne. – Geralt diz, a voz ecoando com a força da gratidão sentida. Agora, o witcher tem uma direção para procurar por Ciri e Ileanna. O fato de que a busca por Ciri também se desdobra para Skellige não passa despercebido pelo Lobo.

— Não há de quê, Geralt. Você me ajudou também. – a sonhadora diz – Espero que encontre Ciri e Ileanna.

Anos atrás

A beleza do interior do palácio, embora inegável em sua delicadeza e detalhes, é incapaz de atrair para si a atenção da jovem de olhos da cor de esmeraldas. A cada passo dado, o olhar de Ciri retorna para a face da acompanhante, a intrigada curiosidade procurando por algum ponto de reconhecimento na bela jovem que possui os olhos e o medalhão de um witcher. A intensa atenção dedicada a si é percebida por Ileanna, um reconhecimento que é afirmado no suave sorriso que estica os lábios vermelhos. Em silêncio, a jovem de írises douradas guia o caminho pelos corredores ricamente decorados e iluminados até uma porta de madeira entalhada, a abrindo e revelando um luxuoso quarto.

— Entre, Zireael. – Ileanna pede.

Ciri obedece ao educado pedido, não encontrando na voz de Ileanna a autoridade presente nas vozes de Avallac’h e Eredin. Até mesmo a postura da jovem parece mais relaxada, mais suave do que a dos elfos. Só então, Ciri percebe um detalhe que a semelhança da companheira com os witchers deixou nas sombras. O fato de que Ileanna é humana. Todo humano que a jovem de olhos verdes viu nesse mundo se encontrava em uma posição baixa, de servidão. Entretanto, Ileanna parece ocupar um lugar mais alto, podendo provocar alguém claramente poderoso como Avallac’h e receber ordens do próprio rei dos elfos.

— Quem é você? – Ciri questiona sem que possa se controlar.

— Sou Ileanna. – a jovem de olhos dourados responde, sorrindo com divertimento e se aproximando da cama, onde belas roupas foram deixadas – Pelas ordens do rei, a acompanharei enquanto decidir ficar nesse mundo.

— Eu tenho escolha? – a Andorinha rebate, raiva e petulância ecoando na voz e fazendo o sorriso nos lábios vermelhos apenas aumentar. Percebendo que não irá ganhar uma resposta para essa pergunta, Ciri resolve reformular a primeira – Você é humana como eu, não é?

— Sim e não. – a jovem de olhos dourados diz, fazendo Ciri arquear uma sobrancelha em confusão – Não sou humana, mas sou, de uma certa maneira, como você. – Ileanna se aproxima da mais nova e, com um movimento da mão, aponta para as roupas sobre o colchão. – Seria melhor se trocasse de roupa para conhecer o rei.

Por um longo momento, as írises verdes se movem das vestes sobre a cama para a face de Ileanna em um caminho de ida e volta constante, parando no olhar calmo e dourado. Há algo diferente na jovem, algo que Ciri não consegue nomear, mas que é reconhecido na ausência da altivez de Avallac’h e da arrogância de Eredin, algo mais pacífico e natural. E, ao mesmo tempo, familiar. Observando Ileanna com mais calma, Ciri ainda encontra semelhanças físicas entre a jovem e Yennefer, mas também uma presença e uma postura muito mais calmas e, ainda assim, intensas do que as da feiticeira. Sem pensar, a Andorinha ergue a mão e toca o medalhão que permanece ao redor do pescoço de Ileanna, sentindo a cabeça do lobo tremer levemente entre os dedos. No olhar dourado que a observa com paciência e divertimento, Ciri acredita encontrar uma semelhança, não com Yennefer, mas com Geralt e essa descoberta a faz sentir que, talvez, seja possível confiar em Ileanna.

— Há muitas perguntas na sua mente, não é mesmo, Zireael? – a jovem diz de modo suave, os dedos tocando levemente os fios acinzentados que emolduram a face marcada pela cicatriz – Haverá tempo para elas ao amanhecer. Essa noite, você tem um encontro para comparecer.

Ileanna, então, ajuda Ciri a trocar de roupa e se arrumar para encontrar Auberon, mas cada movimento da jovem de olhos dourados é acompanhado atentamente pela Andorinha. Mesmo quando a mais velha a ajuda a se maquiar, Ciri se pega procurando pelas írises douradas e aquela sombra de semelhança que a faz se lembrar de Geralt.

Presente

Skellige

A fortaleza parece uma ruína, mas ainda pulsa com vida. A morte não parece próxima, mesmo com as explosões e os gritos da batalha que ecoam no ar. Ela corre através de uma escada, parando em um amplo salão. O coração bate intensamente no peito, os pulmões quase incapazes de capturar ar suficiente para manter a respiração estável. O medo faz com que os olhos brilhem com as lágrimas contidas. Alguém grita, uma voz familiar diz para ela correr, para correr em direção à floresta. Então, ela começa a corrida, passando pelos longos portões de entrada da fortaleza, mas antes que o portão exterior possa ser alcançado, um braço coberto por armadura a pega com força, a puxando para a sela de um cavalo. Ela ouve uma mulher gritar e então há uma explosão de magia. Ela consegue ver a mulher, embora a face dela permaneça obscura em uma névoa, apenas o pingente na forma de uma estrela é visto com clareza. Ela estica a mão tentando alcançá-la, mas o cavaleiro que a segura se recupera e a puxa para trás, para a direção de um portal que parece quebrar quando eles passam.

Os olhos dourados se abrem e o corpo salta na cama, a respiração descompassada tropeçando na garganta. Ileanna olha ao redor, levando alguns segundos para reconhecer o quarto oferecido por Crach. Respirando fundo e tentando se acalmar, a jovem feiticeira volta a deitar na cama, o olhar sendo dirigido ao teto que começa a ser iluminado pelos primeiros raios de sol da manhã. Esses pesadelos são piores nesse mundo. O pensamento acompanha o fechar das pálpebras, trazendo consigo a vontade de estar em outra parte desse mundo, onde até as memórias conseguem ser acalmadas pelas presenças que se tornaram tão importantes. As faces daqueles que a salvaram invadem a mente da feiticeira e, não pela primeira vez, Ileanna deseja não ter a sombra da Caçada em sua mente, mas a decisão foi tomada. Se o novo lar foi abandonado, foi para proteger aqueles que ficaram e para ajudar a Andorinha. E para, quem sabe, finalmente silenciar as lembranças.


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Notas finais do capítulo

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