Cada dia da minha vida escrita por Dani Tsubasa


Capítulo 16
Capítulo 16 - Brincando com lobos




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Capítulo 16 – Brincando com lobos

Brice observava enquanto Afonso passava por entre as árvores. A noite já caía, e a bruxa estava acomodada em um dos galhos de uma das árvores maiores, onde não podia ser vista por viajantes desatentos.

— Está sendo um bom passatempo, Afonso – murmurou para si mesma com um meio sorriso.

O ferreiro buscava um local seguro para montar acampamento, tentando ouvir atentamente através da floresta, provavelmente buscando algum sinal da presença de lobos. Os animais não viriam, não com ela escondida nas sombras bem ali. E ainda que viessem, dificilmente atacariam o príncipe. Lobos eram animais tão mal julgados pelas pessoas quanto as bruxas como ela, e não atacavam de graças como tantos pensavam. Eles podiam sentir, eles sabiam, melhor do que ela ou qualquer humano, quem era ou não digno de confiança.

Se alguém a visse agora talvez passasse a errônea impressão de estar preocupada com a vida de Amália e Afonso, mas estava apenas se divertindo observando o desenrolar dos acontecimentos. E se ela estivesse certa, se seus futuros temores se concretizassem um dia, ter Amália viva poderia lhe ser útil. Ela era uma humana notavelmente diferente de todas as outras, e as pessoas sempre temem o que é diferente delas e que não podem entender ou alcançar. Em determinadas situações, Brice e outras bruxas e renegados poderiam facilmente desviar o alvo de si mesmos para alguém como Amália, e nem precisariam planejar para que isso acontecesse.

Passados vários minutos sem qualquer sinal ou som que indicasse a presença de lobos, Afonso decidiu montar acampamento ali, não precisando de muito para isso. Fez uma fogueira numa clareira entre as árvores, onde provavelmente estaria mais seguro que em locais mais abertos, procurou deixar seu cavalo o mais protegido possível, e improvisou um lugar para dormir no chão, ficando sentado e pensativo em frente à fogueira até anoitecer.

Brice sabia que Amália estava viva, embora não tivesse visto nada que provasse isso, preferira não tocar no assunto com Selena para evitar perguntas irritantes, e porque suas intenções naquele dia não tinham realmente passado de se aproveitar dos guardas desavisados para conseguir energia vital. Ela não verificou se havia alguém na carruagem, mas ouvira o último guarda que matou gritar, e o vira ferido em seguida. Se Amália lhe fizera aquilo, ela foi esperta, furtiva, e fugiu silenciosamente. Brice não se importara em verificar, estava concentrada demais em seu objetivo para isso, e aquela feirante não era da sua conta. Estava aqui agora apenas por curiosidade. Em algum momento em breve Afonso provavelmente a encontraria, se não seguisse para o lado errado.

Talvez Amália estivesse sozinha em algum lugar, talvez estivesse com a mulher que vivia sozinha na floresta, como última remanescente daquele povo antigo do reino, tinha certeza que ela acolheria e ajudaria quase qualquer criatura perdida que encontrasse. Brice não tinha interesse nela, e nem de lhe fazer mal, por mais capacidade que tivesse para isso se julgasse necessário. A velha mulher vivia pacificamente sem fazer mal a um inseto sequer, e Brice acreditava que ela não faria mal algum nem mesmo a pessoas como ela, pelo contrário. Poderia servir como mais um escudo. Portanto não havia motivos para entrar em conflito.

Com pouco mais de uma hora o príncipe alimentou seu cavalo e brincou um pouco com o animal, conversando com ele gentilmente, em seguida se recolhendo para dormir. Brice bocejou e decidiu se retirar, quanto menos soubesse menos Selena teria a questioná-la, ou talvez fosse melhor ter logo uma prova de que a tal Amália estava bem e não tinha nada a ver com essa história, deixaria sua curiosidade decidir. Se Amália fosse encontrada, logo não só ela, mas todos saberiam. Caminhou silenciosamente pelo caminho de onde viera, se deparando com alguns lobos por entre as árvores, que nada fizeram além de encará-la com curiosidade ou se assustar e correr para longe.

No acampamento improvisado, Afonso sentiu algo estranho de repente, erguendo-se para observar o entorno da clareira, sentindo-se observado. Olhou para seu cavalo, que continuava calmo, apurou os ouvidos, mas não escutou nada além do som do vento e de algumas corujas ao longe. Não pretendia dormir muito, apenas o suficiente. Se possível acordaria antes do sol para retomar sua busca por Amália.

O sonho voltou a seus pensamentos, e lembrar de sua amada chorando sozinha em algum lugar desconhecido da floresta quase levou o sono embora. Lembrar do bebê quase tirou seu fôlego, mas lembrando-se dos ensinamentos de sua avó, obrigou seu coração a se acalmar e sua cabeça a pensar racionalmente.

— Algumas horas... Somente algumas horas de descanso, e seguirei atrás dela – disse para si mesmo, voltando a se acomodar debaixo das cobertas e fechar os olhos.

******

— Eu sei que você está aí! – Virgílio gritou para o nada na entrada da floresta.

Ainda era muito cedo, tão cedo que ainda estava escuro, não havia qualquer pessoa no comércio da cidade, e tivera o cuidado de procurar um ponto distante da feira.

— Apareça! Eu sei que você sabe alguma coisa!

Virgílio começava a perder a cabeça novamente quando se virou e viu Brice o observando em silêncio, com uma expressão divertida no rosto.

— Para que a gritaria? Ainda é cedo e a cidade está em silêncio. Pude ouvir até seus passos o trazendo até aqui.

— Como sabia que eu viria?

— Senti.

— Eu sei que você sabe... Você sabe alguma coisa! Sabe o que aconteceu com ela! Você sabe...

Brice permaneceu em silêncio fitando o homem transtornado por mais alguns instantes.

— Nem os mais sábios sabem de tudo.

— Nós fizemos um acordo.

— Fizemos. E eu o cumpri. Apaguei a memória de Amália como me pediu. Está feito.

— Mas e agora...? Ela desapareceu! Todos a dão como um dos mortos da guerra.

— Muitos de fato morreram, Virgílio, e sobre isso nem mesmo eu posso fazer qualquer coisa.

— Mas foi capaz de tirar a vida do filho dela e de Afonso.

— Nem toda consequência pode ser prevista. E não vejo porque você teria a reclamar.

Virgílio ficou em silêncio novamente, parecendo mais nervoso e fora de si a cada segundo.

— Então me faz esquecer! Apaga a minha memória! – Ele implorou, jogando-se aos pés da bruxa e segurando o tecido de sua saia, enquanto a encarava com desespero.

Brice o encarou profundamente, enquanto tinha aquela sensação outra vez. Amália estava viva. Mas Virgílio não precisava saber disso, não havia necessidade de deixa-lo mais insano e impulsivo com essa informação agora. Se ele chamasse a atenção de alguém sobre sua existência, ela e Selena poderiam ser ameaçadas.

— Eu não posso.

— Por que não?! Eu posso lhe pagar mais!

— Isso não vem ao caso agora. Eu não posso fazer isso... Por que sua história com a Amália ainda não acabou.

Virgílio ficou mudo e a encarou com olhos arregalados enquanto absorvia a informação.

— Disse que não sabia.

— E não sei. Uma pessoa não precisa estar viva pra que a vida dela continue entrelaçada com a de alguém. Isso é tudo que eu sei agora, o resto é por conta do tempo.

Virgílio ficou sem palavras outra vez enquanto sentimentos divergentes se misturavam em seus olhos e agitavam sua alma. Ele perdeu a força que o sustentava e segurou mais firme nas vestes de Brice enquanto chorava com o rosto escondido ali. A bruxa sentiu pena e o consolou repousando uma das mãos em seu cabelo.

******

Afonso despertou com o som de algumas corujas se recolhendo na iminência do raiar do dia. Ainda estava escuro, mas podia ver que o azul do céu noturno começava a clarear. Sentou-se e esfregou os olhos, vendo que a fogueira diminuira de tamanho, mas uma chama ainda iluminava o local. Seu cavalo estava acordado, mordiscando o gramado e balançando a cauda calmamente.

Se preparou para o dia e recolheu o acampamento improvisado, esperando que o céu clareasse um pouco mais para que pudesse ver através da floresta e apagar a fogueira. Jogou água sobre as cinzas para esfriá-las e as escondeu nos arbustos misturando-as com terra e folhas. Se Virgílio estava de fato procurando Amália pela floresta, Afonso não queria correr o risco de deixar pistas para ser seguido. A sensação de ter sido observado na noite passada voltou, e ele preocupou-se.

— Melhor me apressar.

O ferreiro montou em seu cavalo e cuidadosamente seguiu seu caminho, enquanto o céu clareava mais a cada minuto.

******

Amália saiu sozinha para colher ervas após o nascer do sol, enquanto a mandingueira se ocupada de outras tarefas. Estava ali há tempo suficiente para assimilar o quão solitária realmente era a vida da velha mulher, e que ninguém apareceria ali, mesmo com uma guerra acontecendo entre reinos. Não era tão longe da trilha dos viajantes, mas não era perto o suficiente para que alguém se interessasse em realmente procurar.

Já estava concentrada em sua tarefa quando o som de alguma coisa pisando nas folhas secas do chão chegou a seus ouvidos. Amália congelou e lentamente olhou em volta, puxando melhor a capa sobre a cabeça a fim de esconder sua aparência. Olhou o mais longe que podia em todas as direções, não sabendo se podia ficar aliviada ou mais preocupada ao não ver nada. Tomou um susto ao olhar para o lado e ver um filhote fuçando as ervas em sua cesta, e sentou-se onde antes estava ajoelhada, respirando fundo e levando uma mão ao coração acelerado.

Podia parecer apenas um filhote de cachorro, mas ela sabia que não era. O pequeno tinha o pelo branco com uma leve tonalidade de vermelho do focinho às costas, seus olhos eram azuis, e provavelmente tinha menos de dois meses de vida. Olhou em volta em busca da mãe do lobinho, sendo interrompida quando o pequeno emitiu um ruído brincalhão e pulou para ela pedindo para brincar. Amália sorriu, apesar do risco imenso que estava correndo junto com seu bebê, e acariciou a cabeça do filhote, que mordiscou sua mão, não sendo capaz de machucá-la ainda com dentes tão pequenos. Imaginou como seria se ela contasse essa história a sua família. Ela estava brincando com um lobo! Um lobo! Ainda que filhote.

Seu alerta de perigo reacendeu quando o som de um rosnado mais grave invadiu o lugar, e o lobinho levantou a cabeça, erguendo as pequenas orelhas e saltitando com alegria na direção de uma grande loba cinzenta que encarava Amália a cerca de cinco metros de distância. Nem o maior cachorro que ela vira na vida alcançara aquele tamanho, e nem o mais feroz tinha aquele olhar penetrante que parecia atravessar sua alma, e nesse momento todas as sensações que se podia ter derivadas do medo a atingiram.


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Notas finais do capítulo

Para fins de curiosidade, o lobo da imagem é um macho. Infelizmente não encontrei imagens de fêmeas com a descrição que eu queria pra história. Mas de qualquer forma, é uma imagem meramente ilustrativa. E como informado nesse capítulo, vários estudos e testes já comprovaram que lobos de fato não atacam humanos gratuitamente. Isso apenas ocorre em casos que detectem ameaça, ou se por uma infeliz coincidência uma pessoa se deparar com um lobo infectado pelo vírus da raiva, o que se tornou bem menos comum depois do desenvolvimento da vacina. Os lobos não são hospedeiros e portadores oficiais da raiva, mas podem adquiri-la através do contato com outros animais, sejam selvagens ou domésticos.



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