Testamento escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Eu já servi aos senhores errados: pátria, dinheiro e até mesmo minha antiga família. Hoje, sirvo apenas ao Pai, o único e verdadeiro. E, ainda que agora eu esteja encarcerado junto dos pecadores e loucos, o meu espírito brilha mais do que nunca, pois sei que fiz a coisa certa. E é com isso em mente, caro leitor, que relato o início da libertação humana: o momento em que largamos nossas malditas correntes terrenas e nos voltamos para nosso Senhor, nosso Deus. Meu nome é Thomas Christ e eu sou o salvador e redentor da humanidade.

Era véspera de Natal, uma data que para alguns ainda tem um significado religioso, mas que se perdeu para a maioria da população. Tudo que enxergam hoje em dia são as cores, os enfeites, as compras e a ostentação. Jesus Cristo foi trocado por um gordo velho vestido de vermelho que promete recompensas ainda em vida. Ridículo! As crianças se tornaram fontes de cobiça para vendedores e capitalistas inescrupulosos, distorcendo e corrompendo tudo que é puro e divino.

Eu estava cansado disso. Há meses eu tinha recebido o chamado do Senhor e, desde então, planejei tal dia com todo o cuidado que se possa imaginar. Os hereges dizem que o universo nasceu de uma explosão, então por que não fazer o mesmo para marcar o início de uma nova era? A era do Senhor neste mundo de puro hedonismo e niilismo. E assim o fiz.

Como disse, já servi a pátria. Tenho treinamento e preparação. Dessa forma, não foi difícil montar uma bomba potente o suficiente para passar uma mensagem. Longe de ser pego por qualquer sistema de segurança, coloquei o explosivo dentro do meu carro e o deixei no estacionamento subterrâneo, posicionado logo abaixo da enorme árvore de Natal que o shopping exibia todos os anos. Saí do local e me deixei ser visto pela câmera externa, afinal, tudo fazia parte de um plano maior.

Eu assisti do noticiário quando o caos começou. Com o apertar de um botão, minha bomba foi acionada e boa parte do centro de compras foi pelos ares. Imagino que aquele maldito ator vestido de Papai Noel tenha sido feito em pedaços, além dos pais que levavam suas crianças para ver aquele herege. Infelizmente, tenho consciência de que minha bomba também ceifou a vida de incontáveis infantes, mas o que eu podia fazer? Eram os desígnios de Deus.

A partir daí, a minha verdadeira missão começou. Os bombeiros, o esquadrão antibombas e a polícia logo apareceram no local. Eu sabia exatamente como agiriam, afinal, os protocolos são sempre os mesmos. Ah, os homens e suas regras terrenas: tão apegados a letra que acabam cometendo deslizes bobos. Ainda assim, confesso que foi divertido assistir a todo aquele trabalho pela TV.

Não tardou para que logo descobrissem que o epicentro da explosão fora no estacionamento subterrâneo do shopping. Com uma pista daquelas, rapidamente perceberam quem havia saído sem um carro e sido pego pelas câmeras. Fui agilmente identificado e logo pude ver meu rosto e meu nome expostos em rede nacional. “Thomas Orwell”, era o que estava escrito na TV. Eles ainda não sabiam quem eu realmente era.

Estava na hora e partir para a parte dois de meu plano. Tranquei a porta do banheiro e liguei meu smartphone (vejam só, não há problemas usar os recursos dessa sociedade corrompida em nome do Senhor). Comecei a acompanhar as câmeras que haviam em minha casa. Era uma verdadeira mansão no Bairro dos Sabores, uma combinação da herança deixada pelos meus pais de criação e meu trabalho como militar. Não demorou para que eu pudesse assistir à chegada da polícia e o reinício das investigações.

Eles pareciam atônitos e descrentes. Um “ataque” (como a mídia estava chamando naquele exato momento) daquela escala não era para qualquer um. No entanto, não posso culpá-los: todos eles estavam inseridos nessa sociedade decadente, de uma forma que não podiam perceber sua própria podridão. Bom saber que lhes mostrei o caminho.

Quando finalmente adentraram o meu lar, começaram a investigar de um lado ao outro em busca de pistas. Tudo que encontraram foram informações sobre quem eu era antes de Deus abrir meus olhos e me mostrar que sou seu filho legítimo. Encontraram minhas camisas de times, meus quadros ridículos de arte moderna, e até mesmo um retrato de minha ex-esposa e meus filhos. Tudo mundano e sem importância. No entanto, os policiais foram mais longe: adentraram meu quarto e acharam meu uniforme militar e até mesmo minha coleção de bíblias.

— Olá! — Eu disse sem cerimônia.

Os quatro hereges que investigavam meu lugar de descanso assustaram-se ao ver meu rosto na TV. Eu transmitia tudo ao vivo, ao mesmo tempo em que também podia vê-los e escutá-los através do sistema de vigilância que montei dentro da mansão.

— Thomas Orwell — disse o policial que parecia ser mais velho que os demais. — Por que você está fazendo isso?

— O meu nome é Thomas Christ, e eu sou o filho e mensageiro de Deus — respondi de maneira calma e transparente. — Eu só quero atenção.

Os quatro policiais encararam o meu rosto na TV com estranheza. Talvez buscassem identificar em que lugar eu estava, ou simplesmente estivessem chocados com a coisa toda. Não interessava. O mais experiente prosseguiu com a conversa com uma gentileza que eu mesmo não esperava.

— Thomas Christ, certo — ele aceitou antes de prosseguir. — Eu me chamo Peter e você tem minha atenção.

— Oh, Peter. Você é um bom homem, mas a atenção de sua equipe é um grão de areia para o que o Senhor espera — expliquei, ainda que admirasse a calma do homem. — A minha mensagem é para todos. Ou melhor: a mensagem de Deus é para o mundo.

Enquanto eu falava cada uma daquelas palavras, também observava as imagens das outras câmeras espalhadas pela casa. Outros policiais faziam buscas e encontravam algumas coisas interessantes para sua investigação. Enquanto Peter estava pensativo quanto as minhas ideias, uma mulher havia encontrado comprovantes de uma viagem minha para Jerusalém de meses atrás. Ela os fotografou e enviou para alguém que não pude visualizar.

— Eu posso ajudá-lo, Christ — Peter era inteligente e sabia escolher bem as palavras. — Eu também acredito em Deus e quero passar a mensagem dEle. Agora me diga: o que Ele te contou?

O Pai havia me alertado que eu poderia encontrar falsos profetas no caminho. Sim, o policial tinha palavras doces e até mesmo trazia um pequeno crucifixo no bolso, conforme ele mesmo mostrou para as câmeras. No entanto, eu podia sentir que sua alma despejava veneno. A certeza veio quando a outra policial adentrou o quarto e falou com ele.

— O homem tem Síndrome de Jerusalém, Peter — ela sussurrou, mas não teve discrição o suficiente para fugir do que eu podia ouvir.

Eu já estava esperando por isso. Todos os homens iluminados deste mundo são tratados como loucos quando se chocam contra o status quo. Por que seria diferente comigo? De certa forma, devo admitir que senti um orgulho ao ser tratado como insano.

— “Síndrome de Jerusalém” — repeti em voz alta e pude ver os olhares assustados dos policiais. — Uma terrível forma de desqualificar a mensagem de Deus. Sim, é verdade que Ele me tocou quando conheci a cidade sagrada. Mas também é verdade que a Sua voz estava em minha cabeça há muito mais tempo. A cidade santa apenas me fez ficar atento a isso. Abriu meus olhos e minha mente. Mas vejo que vocês não têm salvação, afinal. Às vezes, só o fogo é capaz de santificar as almas humanas. Foi bom te conhecer, Peter.

E então apertei mais um botão. Deixei de conseguir enxergar qualquer coisa pelas câmeras quando elas foram completamente destruídas pela explosão que tomou conta de minha mansão. A casa que já fora dos meus pais foi engolida pelas chamas junto dos policiais que ali tentavam distorcer a palavra de Deus. Eu quase conseguia sentir o cheiro da carne amaldiçoada sendo queimada pelo fogo divino.

Voltando a acompanhar as notícias, pude ver que o meu nome e rosto passaram a se tornar cada vez mais presentes. “A mensagem está encontrando o mundo”, refleti de maneira vitoriosa. Estava na hora do ato final do plano de Deus. Deixando para trás o pequeno compartimento em que eu estava, saí do banheiro e, com meu sobretudo, ocultei as bombas que carregava comigo.

Eu estava o tempo inteiro no prédio da maior emissora de meu país. Passei meses estudando o sistema de segurança para fazer tudo com perfeição, mas no fim, existia um caminho bem mais ágil. Estando prestes a passar pelo detector de metais, abri meu sobretudo, apresentei as bombas que haviam sobre meu corpo e segurei os detonadores com força.

— Detonadores de pressão — falei com mais calma do que havia ensaiado antes. — Basta eu largá-los para que todo esse lugar vá pelos ares.

E, com aquelas simples palavras, vi os seguranças abrirem espaço para o meu caminhar. Senti-me como Cristo andando sobre as águas, mas dessa vez eu andava sobre a heresia de um povo perdido. Enquanto dava divinos passos, pude visualizar pessoas correndo em desespero, enquanto outras paravam para tirar fotos e filmar aquele momento histórico. “Sim, o filho de Deus está entre vós. Certamente é algo que vale a pena ser registrado”, pensei com um atípico bom humor vindo de mim.

Segui até o andar mais elevado do luxuoso prédio. Lá, mais uma vez pude seguir livremente enquanto utilizava as bombas como minha maior proteção. E então encontrei o estúdio do principal jornal do país. Passei por um tecnológico sistema de som, por câmeras e mais pessoas amedrontadas do que eu podia contar.

— Não temam, irmãos e irmãs — disse com a serenidade que o momento pedia. — Não vim para matá-los, mas para cortar as correntes que vos prendem neste inferno. Eu vim para libertá-los! Eu sou o filho do Homem.

Os olhares assustados continuaram, mas todos prestavam muita atenção a cada movimento e palavra que eu dizia. Prossegui:

— O Pai quer que vocês liguem as câmeras — caminhei até a bancada onde os jornalistas costumavam apresentar as notícias diariamente. — Coloquem-me ao vivo.

Não verbalizei ameaças, mas o medo falou mais alto naqueles corações heréticos. Em poucos segundos vi a luz vermelha das câmeras acenderem e, finalmente, estava ao vivo para toda a nação. Quiçá, para o mundo.

— Povo de Deus — comecei enquanto sentia a inspiração do Pai tomar conta da minha língua. — Sei que vocês acompanharam com perplexidade os eventos das últimas horas. A explosão de um shopping e, pouco depois, da minha residência. Já devem também ter visto o meu rosto estampado em todos os noticiários e na internet. Também sabem meu nome: Thomas Orwell. Eu, porém, vos digo: chamo-me Thomas Christ e sou o legítimo filho e herdeiro de Deus. O Pai me deu os poderes e as mensagens necessárias para mudar este mundo, e é por isso que estou aqui.

Parei por um instante para garantir que as bombas de pressão não fossem acionadas. Minhas mãos suavam, mas eu sabia que o Pai não permitiria que eu cometesse um erro tão bobo como aquele. Prossegui:

— Deus me disse que Ele estava deveras triste com o rumo da humanidade. Fome, miséria, guerras e o total desapego humano pelo o que é perene. Vocês vivem como se o mundo e o universo fossem descartáveis, como se a vida fosse uma faísca sem significado. Malditos niilistas e hedonistas! Que as chamas do meu Pai consumam vossas almas. — Meus olhos ardiam de raiva, mas eu precisava me focar na mensagem. — Vocês trocaram Deus pelo dinheiro. Trocaram Deus pelo poder, pela influência e pela felicidade momentânea. Deveríamos comemorar no dia 25 o nascimento de Jesus Cristo, meu antecessor. Mas não, isso não daria lucro para vocês, não é? Por isso optam pelo vazio espiritual, pela luxúria, pela fuga a todo momento. Covardes!

Minha boca espumava de raiva e meu coração havia atingido uma velocidade que nem mesmo na guerra eu havia sentido. Pude perceber que a ira divina tomava conta do meu ser. Nem mesmo a voz de Deus se fazia presente em minha cabeça, pois na verdade Ele já estava presente em todo meu corpo. Enquanto encarava aqueles rostos assustados, fiz menção de disparar as bombas, mas logo a voz do Pai retornou.

— Filho meu — a voz dEle tomava conta de todo o estúdio. Ele nunca havia se mostrado presente de forma tão explícita, e aquilo me emocionou. — Sinto pura alegria por vê-lo seguindo a minha voz!

— Sim, Pai! — Eu gritava para os céus mais alto do que jamais fiz na vida. — Eu tinha dúvidas sobre o que fazer, admito. Temia este cálice, mas sabia que o Senhor não me abandonaria!

— Jamais. Quando a incerteza invade a mente, eu estendo minha mão para você, santo filho! — Meu coração se enchia da mais pura emoção com aquelas palavras a cada segundo. Eu podia sentir Deus como algo maior que a própria existência. — Agora deixe-me que guie seus próximos passos.

— Eu sou Seu, meu Pai!

E então a grave voz divina me deu as ordens. Todos escutavam encantados ou amedrontados, eu não conseguia discernir. A santidade daquela situação ofuscava tudo ao meu redor.

— Caminhe até a sua última porta a direita, filho meu — Deus disse. — Abra a porta lentamente, feche os olhos e ajoelhe-se. A humanidade precisa aprender com o seu exemplo de humildade. Porque você é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

— Sim! — Gritei com fé e confiança. — Que seja feita a Vossa vontade, Pai!

Seguindo as ordens do Senhor, caminhei até a porta indicada. Empurrei-a com meu pé e logo tratei de me ajoelhar naquela estranha sala. Fechei os olhos rapidamente e, aos poucos, ouvi uma movimentação ao meu redor. Não importava! Estava seguindo as ordens de Deus! Senti cortarem os fios de contato da bomba e, logo em seguida, meus pulsos foram presos por algemas. Segurei a tentação e mantive meus olhos bem fechados, mas era impossível não ouvir as vozes.

— Eu não acredito que isso funcionou — um dos homens ao meu lado disse.

“Não!”, refleti com a ira divina. “O Diabo não me colocará contra Deus. Chega de tentações!”. E, mantendo a humilde pedida pelo Pai, fui conduzido até o que parecia ser um carro de polícia.

Hoje, preso, sei que minha história ainda vaga por aí. Sei que a mensagem de Deus foi deixada e sei bem que segui os Seus desejos com sabedoria. Sim, estou encarcerado ao lado de pecadores e loucos, mas alguns deles conseguem me entender. Sei que conseguirei discípulos e este é apenas o primeiro capítulo da nova história da humanidade. Um novíssimo testamento se inicia.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ter lido até aqui. Essa foi mais uma experimentação minha, fico realmente feliz em compartilhá-la com o mundo. Até as próximas histórias :)



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