Helena. escrita por blue devil


Capítulo 1
único.




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Helena era a minha mãe, não meu pai.

Todos os dias nós duas lutávamos para fazer as pessoas entenderem isso. 

Helena vinha do lugar mais precário do Brasil: De uma das favelas do Rio de Janeiro. Ela foi criada como um homem negro, e acreditava que não poderia ser mais nada além disso, presa à um reflexo que não era seu. O espelho era a sua prisão de vidro, norteando a sua vida.

É muito difícil entender esse ambiente. As favelas são como redomas em morros, fechadas em seu próprio mundo de tanto quanto prosperidade quanto violência. Nas favelas torna-se bem claro como funciona a sociedade: O avanço e a destruição andam lado a lado para os humanos. Eles não conseguem um, sem o outro.

Por um lado, os traficantes também protegiam quanto abusavam. A maior parte das pessoas das favelas não conheciam esses traficantes, apenas ouviam sobre eles, como se estivessem distantes de si. Eles recrutavam cada vez mais crianças, que viam armas como brinquedos, e tiros eram como quebrar um braço em uma brincadeira de rua.

Mas você precisa entender por qual motivo a favela se organiza desse jeito. Ninguém quis que ela fosse assim. A favela foi um resultado de um processo estrutural do país, quando a família portuguesa veio para o Brasil, e quis refazer o Rio de Janeiro para se adequar aos parâmetros portugueses. As pessoas pobres perderam seus espaços, parando em cortiços, que se desenvolveram e se tornaram favelas. 

Quando você é tão oprimido dessa forma, chega o momento em que você quer lutar. Mas estando fora do sistema em todos os âmbitos, não há formas limpas de lutar.

Então você faz escambo. De coisas que controlam as pessoas. E quanto mais você vende, mais poderoso fica. E quanto mais poder, mais perigo. É por isso que existem traficantes. E como tudo no mundo, isso passa para as novas gerações.

Helena lutou para não se envolver em nada disso. Mas para isso ela passou muito tempo fingindo ser quem não era. Passou muito tempo não sendo Helena, na tentativa falha de matar Helena, mesmo que soubesse que Helena nunca iria morrer.

Não enquanto seu coração vivesse.

Helena entrou para a estatística pequena de pessoas negras que conseguem sair da favela: Passou em uma faculdade pública, em São Paulo, e fez das tripas coração para conseguir estudar e se sustentar. Quando ela se formou, tinha um emprego fixo e iria se casar. Mas nenhuma parte dessa vida realmente lhe satisfazia. Helena estava fazendo o papel de um homem que aceitava o próprio gênero, que escondia a negritude em todo os momentos, se dobrando de formas incríveis para se adaptar nas regras criadas contra pessoas como ela.

Helena ouviu várias vezes que tranças e dreads eram coisas de marginais, eram feias e sujas. Por isso ela se abdicou de usá-las, raspou o cabelo bem curto, pois homens não tinham cabelo longo, muito menos homens negros, já que eram crespos demais e volumosos. Com o cabelo resolvido, ela se esforçou de forma extra para se vestir sempre bem, cheirar sempre bem, para que passasse uma boa impressão em suas entrevistas de emprego e com as pessoas novas.

Ela procurou muito por emprego na sua área, começando desde a faculdade por saber que seria difícil, e passou em uma só entrevista em que havia ido de terno. Dentro da empresa, Helena sorria muito, reclamava pouco, e trabalhava demais. Então ela conheceu a futura esposa, uma mulher branca, e percebeu que as pessoas lhe tratavam melhor quando estavam juntas.

Ou então, ignoravam completamente a ideia das duas estarem em um relacionamento.

Apesar de ascender na vida, supostamente, por conseguir se sustentar sozinha e por ter arranjado uma companheira para casar, Helena não conseguia esquecer das suas origens. Ela tinha a curiosidade, mas se abdicava de ler sobre a sua descendência africana. Ela era brasileira, dizia para si mesma. Todos eram iguais, sem distinções. A cultura dela era a brasileira.

Mas Helena tinha dificuldades em realmente definir essa cultura. Seria a cultura que aprendeu nas favelas, já que era o seu primeiro contato com o mundo? Helena ouviu de todos ao seu redor que deveria esquecer, apagar, ignorar o fato que já morou em uma favela. Não fazia bem para o seu currículo. Não era algo que você dizia no almoço de domingo para a família branca da esposa.

Helena obedeceu o conselho dos amigos do trabalho, dos amigos de faculdade, dos amigos e da família da esposa. Ela evitou de visitar a favela, pois era muito perigoso, e não levou a esposa para conhecer a mãe. Mas nunca deixou de ajudar a família como podia, só que era melhor que fizesse isso de longe. Ela também evitou de pegar muito Sol, pois não queria a pele queimada, e também começou a usar menos cores femininas, como sua esposa havia dito, pois nem percebia essas coisas. Mas sua esposa tinha razão, afinal ela falava por amor quando dizia que rosa e amarelo não combinavam com Helena e realçavam demais a cor de pele dela.

Assim, Helena começou a acreditar que a cultura brasileira era de estar sempre bem vestida, com cores escuras, em qualquer lugar que fosse, para que ninguém nos estabelecimentos a confundisse com um assaltante. Era a cultura de não visitar as favelas, esquecer que elas existiam, e fingir que o país não se tornava cada vez mais violento a cada minuto que passava. A cultura de casar com uma pessoa branca, sem saber se realmente gostava dela, como se no automático, mas sentindo-se bem ao lado dela por que começava a ser notado e respeitado pelo os outros.

A cultura de ignorar as raízes históricas da sua pele, a cultura de ignorar o conceito de etnia e não compreendê-lo, e a cultura de produzir e consumir em massa, qualquer coisa, mas nunca perguntar o por quê. A cultura de ser homem, quando seu coração grita que você é uma mulher.

Eu não sei se você percebeu, mas essa cultura é nociva.

Helena quebrou o ciclo dessa cultura quando me conheceu. Eu era um bebê favelado rejeitado pela a mãe adolescente que nunca me planejou, nunca quis me ter, ou muito menos consentiu para o ato que me trouxe à vida. Mesmo assim, essa adolescente foi obrigada a me dar a luz, já que o aborto, mesmo em caso de estupro, é contra a lei.

E ela me abandonou, e eu a entendo por isso. Se eu fosse estuprada agora, durante a minha adolescência, e engravidasse, eu também abandonaria o fruto da minha dor. 

Helena, mesmo sem conseguir explicar, me quis. Ela quis cuidar de mim de uma forma que muitos pais biológicos não querem os filhos. Foi a primeira vez que ela manifestou uma vontade própria, sem o conselho de ninguém, quando decidiu que iria cuidar de mim.

A esposa de Helena também não me quis. Ela não queria uma criança adotada, já que ela e Helena tinham a total capacidade de produzir um filho, mas ao mesmo tempo, ela dava o melhor de si para não engravidar de Helena. Ela tinha medo de como seria a criança, do que a criança iria passar.

Mas eu já estava ali. Eu era uma garotinha e negra, e Helena quis me amar. Helena quis que eu não fizesse parte da grande estatística de crianças órfãs pobres do Brasil, e foi só apenas por ela que hoje eu posso estar aqui escrevendo isso.

Helena hesitou. Claro que hesitou. Mas no final, ela decidiu que iria me criar de qualquer jeito. Então ela passou vários anos para que conseguisse a minha guarda. Helena me conhecia desde o meu primeiro mês, e foi apenas com dez anos que ela pode me adotar pela a lei. Esses dez anos que Helena passou focada em algo que ela queria foi o suficiente para que terminasse divorciada. Ela não se importou com nenhum dos obstáculos, até que finalmente conseguiu a minha guarda.

E quando isso aconteceu, Helena teve um momento de: E agora?

A vida antiga de Helena já não existia mais. Ela se afastou de tudo por minha causa, não tendo descansado nem por um segundo para ter certeza que estaríamos seguras uma com a outra. Helena ainda tinha um emprego, mas ela percebeu que não gostava dele. E que também não gostava dos amigos que havia feito lá. Não sentia falta da esposa, não sentiu vontade de ser respeitada e notada, e não quis manter contato com a família da esposa que supostamente haviam lhe adotado.

Helena se sentiu vazia. Completa comigo, vazia com o mundo.

Nesse momento, ela voltou às favelas. Não para morar, mas para visitar todos os dias. Para falar com as pessoas. Não fugir delas ou da sua realidade como se fosse a infeccionar. Foi nesse momento que ela percebeu como os tempos haviam mudado. A nova geração, a minha geração, independente de onde estava, na favela ou não, possuía espírito de luta, de saber, e de resistência. Aos poucos, essas crianças do futuro mudavam a realidade e, com muito esforço, a mente dos adultos do passado.

Helena acabou conhecendo pessoas com as mesmas dúvidas que ela, mas que não aceitavam respostas prontas. Elas estudavam sobre, procuravam em si mesmas, criticavam e analisavam. Elas não se abdicavam de nada, apenas de coisas que poderiam machucar outra pessoa.

Helena aprendeu, então, que a sua liberdade termina na do outro. Você pode fazer o que quiser, enquanto não iniba e muito menos machuque outra pessoa. Antes de você, pense no coletivo. As suas atitudes definem apenas a sua vida, ou podem definir a vida de milhares outros? Como e quando?

Helena percebeu que a inibiram de usar cor feminina, apenas por questões pessoais. Helena percebeu que a inibiram de não se preocupar tanto com a sua aparência, de ser mais natural consigo mesma e de se aceitar e se amar. Helena percebeu que a inibiram de falar o que pensava quando lhe botaram medo do que poderia acontecer. Helena percebeu que a inibiram de ser quem ela realmente deveria ser.

E Helena nunca lutou contra as inibições. Ela só aceitou, aceitou e aceitou.

A única coisa que ela lutou por foi eu. E foi essa luta que mudou a vida dela.

Helena, então, achou Helena.

Ela pesquisou sobre a afrodescendência, sobre as religiões africanas dentro do Brasil, pesquisou sobre a sensação de querer ser mulher, pesquisou sobre o porquê ter dificuldade em interação social, dificuldade em se amar, dificuldade de se encaixar.

E foi pesquisando, unindo o passado com o futuro e o presente, amarrando tudo e sabendo que um não acontece sem o outro, que ela se achou: Helena era uma mulher negra transsexual e favelada que, quando se assumiu, perdeu o emprego e teve imensa dificuldade para arranjar outro.

Quando ela se assumiu, eu aceitei.

É claro que eu aceitei. O amor entre nós duas era verdadeiro, era o amor materno completo. Como eu não poderia aceitar algo que a fazia feliz? Pois em todos os anos que eu conhecia Helena, a primeira vez que a vi feliz e plena foi quando ela assumiu a identidade feminina. E eu não posso compreender como alguém poderia não aceitá-la. Como você rejeita uma pessoa que nunca fez nada de errado e só quer se sentir confortável com o próprio corpo? Como você que gosta do cabelo solto ou do cabelo preso, Helena gosta de ser uma mulher.

Mesmo sendo mulher, foi só com Helena que eu entendi todas as dificuldades de ser uma mulher. Mulher e negra. A alteração de documentos, que custava dinheiro, a rejeição social, a objetificação e o medo constante da violência. Helena teve sorte, e eu odeio dizer isso, por ter uma rede social confiável e conseguir um emprego por esse meio.

No mundo em que vivemos hoje, é praticamente impossível conseguir qualquer coisa sem apoio. Pare e pense quantas vezes você precisou de apoio apenas nesse dia. E depois, pense nos grandes apoios que teve pela a vida inteira.

Helena e eu éramos o apoio uma da outra. Às vezes sentíamos que éramos apenas nós, presas em uma ilha pequena com um mar de intolerância e ignorância nos afastando das condições que todo ser humano deveria ter. Não era o suficiente. Apenas nós duas não iríamos conseguir vencer o mar.

Era melhor que o mar se abrisse para nós. 

Por favor, pense em Helena. Pense na história que eu acabei de contar dela, pense nos dilemas da vida dela, pense se você não se identifica com nada e pense se você não poderia evitar narrativas como essa. Ao fazer isso, é sua decisão, então, desfazer o mar ou condensá-lo.

Eu vejo os noticiários, eu ouço meus colegas da escola, eu ouço até mesmo os adultos, eu leio na internet e fora dela, eu vejo na rua como esse mar se torna mais denso. E eu sinto medo. Sinto medo por Helena, sinto medo por mim.

E eu peço: Me ajude a salvar Helena. 


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