O que eu não te digo escrita por Lillac


Capítulo 1
Lição um


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/768902/chapter/1

— Ela disse que você pode subir — o porteiro a informou, devolvendo o telefone para o gancho.

Piper sorriu e agradeceu, resistindo à vontade fazer uma humilhante dancinha do sucesso. Praticamente saltitou da entrada até o elevador, e nem sequer precisou checar a mensagem que o assessor de imprensa havia mandado, porque já sabia o número de cabeça. A viagem de elevador pareceu demorar muito mais do que os breves dois minutos e meio. Ela saiu em um corredor bem iluminado com vasos de plantas do lado de cada porta. Mais uma vez, não precisou checar o número.

Antes de alcançar a porta, no entanto, ela foi escancarada. Piper quase deu um grito.

O garoto não pareceu vê-la de imediato. Ele era muito mais alto do que ela, vestia uma bermuda verde-escura e regata azul. O braço que ele tinha esticado, com uma mão na maçaneta, tinha uma tatuagem estranha. O cabelo preto estava amassado e bagunçado de um jeito que Piper achou indubitavelmente atrativo.

— Você é a Piper?

O modo como o olhar impossivelmente intenso dele grudou em seu rosto fez com que Piper quase considerasse mentir e sair correndo. Ele era bonito, mas também assustador. O tipo de garoto que daria um ótimo vilão em uma série adolescente, com sorrisinho provocativo de canto de boca e comentários sarcásticos, e que provavelmente teria mais fãs do que o protagonista bom moço.

— Sou...?

Ele franziu as sobrancelhas, ficando ainda mais intimidante, e sua expressão repuxou um pouco.

— Isso é uma pergunta?

— Não. Eu sou a Piper — ela se sentiu meio estúpida dizendo aquilo — quem é você?

Ele abriu a boca para responder, mas uma voz feminina o interrompeu:

— Perce, o que você... ah não, você está assustando a garota!

Uma figura apareceu ao lado dele na porta, vestindo calças de pijama azul-bebê e um avental creme por cima de uma camiseta cinza larga. O cabelo castanho estava preso em um coque desgrenhado no topo da cabeça, e os óculos haviam deslizado para o meio do nariz.

— Céus, você deve ser a Piper. Eu sinto muito, mesmo. Por favor, entre.

Mas a esse ponto, Piper já havia criado raízes no chão e estava tentando não gritar. Ela estava ali. A mulher que ela mais admirava em todo o cenário literário. A escritora por trás de – quase – todos os seus livros favoritos. A mulher que a havia feito acreditar que havia algum espacinho no mundo para ela e a sua imaginação fértil, suas histórias fantasiosas e tagarelice.

Sally Jackson.

A autora de alguns dos maiores best-sellers daquela geração, palestrante e autoproclamada mestra em bolinhos de chocolate.

A mente de Piper estava gritando. Mas seu corpo, felizmente, conseguiu mover um pé depois do outro e avançar. Entretanto, parecia que cada passo a deixava ainda mais sem ar. Sally a olhou meio preocupada.

— Você está bem, querida? Parece meio pálida — e, virando-se para Percy: — o que você disse para ela?

O garoto deu de ombros.

— Nada! Mas eu achei que ela poderia ser algum daqueles seus fãs estranhos.

Uma parte de Piper ficou ofendida. A outra concordou com ele.

Sally estendeu uma mão:

— É um prazer conhece-la.

— I... Igualmente — ela rezou a todos aos deuses pedindo que a palma de sua mão não estivesse completamente ensopada de suor.

Se estava, Sally foi cortês o suficiente para não mencionar.

Percy.

— Certo, desculpe — ele rolou os olhos, esticando uma mão também — eu me chamo Percy. Não quis te deixar nervosa. Soube que você ganhou um concurso e tal.

Ela apertou a mão dele. Quis comentar que não havia sido um concurso e tal, mas sim uma massiva competição em uma das maiores revistas eletrônicas do país com milhares de participantes e que ela havia passado quase três meses à base de cafeína e quebrando seus bloqueios criativos a marteladas para conseguir terminar o conto que a havia classificado no primeiro lugar.

Mas outro pensamento a ocorreu:

— Eu li um artigo sobre você — disse. — De uns anos atrás. Ganhou o campeonato de skate e tal.

Percy fechou a cara para ela. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, no entanto, Piper completou:

— Parabéns por ter conseguido tirar aquele aparelho.

Sally comprimiu os lábios, e Piper teve a impressão de que ela estava contendo o riso. As orelhas de Percy ficaram um tanto vermelhas.

— Vamos, você pode deixar os seus tênis do lado do tapete — Sally entrou no apartamento — você está com fome?

— Eu...

— Acho melhor dizer que está — Percy se encostou na porta agora fechada — mamãe fica muito aborrecida quando rejeitam a comida dela.

Perce.

— O que? É verdade — ele riu — e, além disso, os bolinhos são muito bons mesmo.

— Eu agradeço pelos elogios, rapazinho, mas eu estava oferecendo as panquecas. Os bolinhos são para depois do almoço. São nove da manhã Percy, você não vai comer doce agora.

Enquanto eles discutiam amigavelmente, Piper tentou respirar fundo. Não estivera pensando direito quando provocara o filho da sua escritora favorita, e podia apenas ficar feliz que ele não revidara muito – e que Sally levara como brincadeira (embora Percy houvesse, sim, a irritado um pouco). Agora, ela precisava registrar o fato de que estava no apartamento de Sally Jackson, com a Sally Jackson, e prestes a receber lições de Sally Jackson.

O apartamento era simples, mas acolhedor. Nem de longe o que alguém esperaria de uma autora multimilionária, mas exatamente o que Piper esperara dela. Até onde podia interpretar, Sally sempre se apresentara como uma mulher simples, evidenciando isso em seus livros, e em suas entrevistas, quando vez ou outra deixava escapar alguma história que ela considerava engraçada da época na qual trabalhava como atendente em uma loja de doces na estação de metrô. Piper, a jovem Piper que era multibilionária e viajava em jatinhos particulares aos oito anos, já a achava incrível.

— Eu aceito.

— Ótimo! Percy, pega um prato para ela.

Alguns minutos depois, ela estava sentada à mesa com os dois, saboreando a melhor panqueca que já havia experimentado. Sally falava com tanta naturalidade que por alguns minutos Piper esqueceu que estava ali como aluna, e não como simples amiga. Percy despejou uma quantidade exorbitante de calda azul nas panquecas dele.

— Você ganhou o campeonato de surfe e tal — ele comentou de repente. Piper o olhou assustada — eu leio as notícias, e para os jornalistas o seu nome é tipo uma jarra de açúcar aberta do lado de um ninho de formigas.

— Foi ano passado — ela concordou — foi meio que de última hora...

Os alarmes de mãe na cabeça de Sally provavelmente dispararam.

— Última hora?

— Meu pai precisou ir para Malibu no dia do meu aniversário e eu fiquei, bem, sozinha. Aí peguei o carro e fui até Santa Mônica.

— E o sr. McLean...?

— Ficou em Malibu — Piper deu uma mordida generosa em sua panqueca — e me ligou de noite.

— Para te dar parabéns?

Piper lembrou-se do sermão exasperado de Tristan do outro lado do telefone.

— É. Mais ou menos.

Percy riu, mas Sally a encarou por um momento.

— Aconteceu o contrário na sua história — disse — a personagem estava com medo demais de participar por causa do trauma, mas o pai dela a incentivou.

O comentário foi simplesmente jogado no ar, mas o coração de Piper deu uma derrapada. Sally. Tinha. Lido. A. História. Dela. Sally tinha lido a história dela!

Mas ela nem teve tempo de pensar muito nisso. Um barulho abafado do outro lado da porta chamou a atenção de todos, e de repente ela foi aberta.

Se perguntada, Piper diria que absolutamente amava cachorros. Eram ótimos animais. E era adoraria que Tristan deixasse-a adotar alguns.

Se perguntada, Piper diria que nunca havia chegado mais perto de um ataque cardíaco do que quando viu de perto os dois enormes cães de caça partirem para cima dela com as línguas para fora e patas perigosamente erguidas.

— OPA! — Percy exclamou, saltando para segurar o primeiro, enquanto um Sally chamou a atenção do segundo.

— Meu Deus, eu não fazia ideia de que a senhora tinha visitas! — Uma voz masculina soou, ao mesmo tempo cansada e exasperada — Mil desculpas, de verdade.

Quando o medo da morte iminente passou e Piper conseguiu pensar claramente de novo, ela focalizou o olhar para o garoto que havia acabado de entrar e estava parado na frente da porta entreaberta. A primeira coisa que ela notou foi o quão pálido ele era, mas então pensou que talvez parte do susto fosse o contraste com as roupas – completamente pretas. A camiseta e a calça leve com uma única listra roxa. O cabelo preto estava mantido para trás com uma fina tiara prateada e ele tinha pequenos alargadores nas orelhas.

— Bom dia, Nico — Sally cumprimentou, fazendo carinho na cabeça de um dos cachorros — cadê a Reyna?

— Ajudando a sra. Raymonds a carregar as compras do elevador até o apartamento dela — disse, pendurando as guias das coleiras em um gancho na parede.

Percy soltou um grunhindo contido.

— Honestamente, eu tenho vontade de acabar com os netos dela — comentou — como eles podem deixa-la fazer tudo sozinha? É ridículo.

Nico — aparentemente — concordou com a cabeça. Ele estava meio suado e respirava pesadamente, então Piper concluiu que ele estivera correndo com os cachorros. E, falando em cachorros, ela finalmente olhou para os dois. Eles eram parecidos, provavelmente irmãos, e com certeza não eram “de raça”. O que Percy estava segurando tinha o pelo dourado e enormes olhos castanhos, enquanto o que estava sendo mimado por Sally era cinza e tinhas olhos da mesma cor. Agora, que estavam parados e haviam reduzido o latido ameaçador para um grunhindo ameaçador, Piper os achou adoráveis.

— Não se preocupa com eles. Só são meio desconfiados com estranhos.

— Eles são desconfiados com todo mundo — Percy corrigiu — são bem da Reyna mesmo.

Nico deu um sorriso pequeno. Ele se levantou, indo na direção da cozinha, e parou no caminho:

— Eu oferecia um aperto de mão, mas estou suado e cheirando à cachorro — disse — mas me chamo Nico. Sou sobrinho da tia Sally.

— Piper. Sou a aluna nova dela.

— Ah! — O rosto dele se iluminou — eu li a sua história. A parte que a irmã da garota morre afogada? Sinistra. Mas o final foi fofo.

Piper não soube bem o que dizer para aquilo.

Nico acenou e resumiu o caminho dele para a cozinha, onde se serviu um copo de água. Naquele mesmo momento os cachorros recomeçaram a latir e correram para a porta com tanta força que nem Sally nem Percy conseguiram segurá-los.

— Calma, calma, sou só eu — o comentário veio em um tom risonho.

Sally Jackson era uma mulher que prezava pela privacidade. Piper sabia muito pouco sobre a vida pessoal dela. Três filhos. Um casamento horrível (o motivo pelo qual a mulher também se empenhava em palestras gratuitas para alertar jovens sobre abuso doméstico e violência familiar), e um amor por doces e surfe. Ela havia visto Percy algumas vezes na internet (e ele era especialmente famoso nas redes sociais, mas Piper não o seguia em nenhuma), mas as duas garotas sempre haviam sido um mistério.

Por isso, ela ficou meio surpresa quando finalmente viu uma delas pessoalmente.

— Oi mãe. Percy — cumprimentou — Jason pediu para lembrar que a festa da Thalia vai ser no...

— Reyna — Sally chamou a atenção da filha, que estivera distraída tirando os tênis, ainda na porta. — Diga oi para a visita.

Piper meio que queria que Sally não houvesse feito aquilo. Porque ela estava meio que ocupada encarando a outra garota. E Reyna meio que totalmente notou.

Ela levantou a cabeça, fios negros que escapavam da trança bagunçada caindo tão perfeitamente sobre o rosto dela que Piper teria achado cômico e digno de risada se não combinasse com o restante da imagem. Os olhos escuros a encararam por baixo dos cílios impossivelmente enormes, e as sobrancelhas grossas se ergueram em surpresa. Ela ajeitou a postura, evidenciando a camiseta suada e os shorts.

— Oi. Você deve ser a Piper. Eu li sua história, muito bacana.

Piper respondeu alguma coisa inteligente. Ou quase. Percy tentou e falhou conter uma risadinha. Sally não pareceu notar.

— O que você estava dizendo do Jason?

— Ah sim — Reyna passou o cabelo para atrás da orelha — a festa da Thalia mudou de lugar. Vai ser no apartamento da Annabeth.

— O que? — Percy reclamou, desbloqueando o celular encima da mesa — Por que ela não me disse?

— Porque — Nico inclinou-se no balcão — ela está completamente apagada encima de um livro de matemática no sofá da casa dela. Tinha umas três latinhas de energético no chão. Jason ameaçou nos matar se acordássemos ela.

— Percy? — Sally incentivou.

— Ela está obcecada porque acha que a nota na prova da semana passada despencou o coeficiente dela — ele suspirou, estendendo os braços por cima da mesa e juntando as mãos — eu não sei mais o que fazer. A senhora sabe como ela fica.

— Bem — Sally se levantou —, eu vou dar aula para a Piper. Depois, sorvete? Aquele que ela adora?

Percy sorriu, e imediatamente começou a digitar algo no celular. Sally afagou o cabelo do filho quando passou por ele no caminho para o escritório.

Piper começou a segui-la. Reyna, que estava fazendo o caminho de volta da cozinha para a sala de estar, esbarrou nela sem querer.

— Foi mal. Boa aula.

Ela passou por Piper, sentando ao lado de Percy à mesa, e Piper apressadamente desapareceu junto com Sally no escritório.

 

 

— A base da história é ótima — Sally repousou o queixo em uma mão, pensativa. — Tem drama e mistério, e se as minhas teorias quanto as relações entre o trio principal estiverem corretas, bastante tragédia também. É bom que você não tenha escolhido a rota do triângulo amoroso. Nada contra, mas na maioria das vezes ele atrasa mais do que contribuiu com a história. O problema é o protagonista. 

Piper piscou.

— Oi?

— Tem uma grande diferença entre o protagonista e o personagem principal — ela bateu com a grafite no caderno no qual estava escrevendo — olha aqui — Sally virou o caderno para Piper. Ela havia escrito os nomes de cada personagem e, embaixo, as características principais, só do que a garota havia contado. — Jake é um cara legal, mas ele não tem peso na narrativa. Ele está sendo movido pela história, quando na verdade deveria ser o contrário. Se ele está apenas “indo com a maré” então ele é tão telespectador quanto quem está lendo. O protagonista precisa pensar por si mesmo, tomar decisões, e que as ações delem influenciem o que está acontecendo, para o bem para o mal. Se não, ele é só um cara qualquer que por acaso estava lá para narrar — ela deslizou com a grafite para outro nome — Derek é o seu anti-herói. Ele é carismático e as ações dele são questionáveis. Em certos momentos, ele vai ser até tido como vilão, provavelmente. Isso é ótimo para um antagonista, mas se as decisões dele têm mais peso do que as do Jake, então ele deveria ser o protagonista.

— Eu... — Piper hesitou — desculpe. Eu não entendi. Digo, eu entendi o conflito entre as narrativas do Jake e do Derek. Mas antagonista e vilão? Não são a mesma coisa?

Sally sorriu. Piper achou que ela fosse rir da cara dela, mas, do contrário, simplesmente anotou algo no bloquinho de notas ao lado do caderno.

— Não. Mas já são onze horas e você precisa almoçar. Nós vamos em um restaurante que a Reyna adora e depois buscar a Annabeth, namorada do Percy, para tomar sorvete. O que acha?

O coração de Piper palpitou. Sally Jackson! A convidando! Para uma refeição! Céus, se não fosse pelo filho babaca dela e os cachorros assassinos, aquele estaria sendo o melhor dia da sua vida.

— Claro! Eu só...

— “Tenho que ligar para o meu pai antes” — Sally completou por ela, embora aquilo não fosse exatamente o que Piper ia dizer — nós não queremos outro capítulo da história de Malibu, certo?

— Claro — Piper concordou — eu só tenho que ligar para o meu pai antes.

 

 

Sally Jackson tinha uma SUV.

Uau.

E os filhos adolescentes extremamente bem-criados e populares nas redes sociais não pareciam nem um pouco incomodados ao subirem em uma SUV. Uau.

Percy até gritou:

— Banco da frente!

Nico grunhiu:

— Você foi da última vez!

E Reyna balançou a cabeça, segurando o primo pelo ombro.

— Deixa ele — disse. — Você sabe que não vale a pena.

Nico resmungou, cruzando os braços. Piper precisou conter a risada enquanto subia no banco da do meio do banco do meio (sim, exatamente isso). Era o melhor lugar (depois do de Percy, mas ela não ousaria discutir com ele pelo assento do carona), para ver Sally dirigindo.

Ela era um fã, ok?

— Tia, onde nós vamos? — Nico perguntou do banco de trás, de onde estava quase basicamente deitado por cima da prima, enquanto Reyna distraidamente mexia no celular.

Daquele ângulo, Reyna parecia ainda mais bonita. Provavelmente porque Piper estava quase torcendo o pescoço para conseguir enxerga-la e uma mulher sempre acha mais atrativo aquilo que ela não pode ter. Como uma visão favorável, por exemplo.

Reyna havia tomado um banho e trocado de roupas, e o cabelo castanho escuro estava preso em um coque parecido com o da mãe no topo da cabeça, menos bagunçando. Usava uma regata verde que não parecia ser dela (Percy, talvez?) e jeans pretos dobrados até o meio das canelas. O olhar distraído na tela do telefone.

Ah, que família incrível, realmente-

— Naquela churrascaria que a Reyna adora. Não estamos tão longe.

O estômago de Piper despencou.

Ah.

Claro.

Piper, em uma churrascaria. Convidada pela sua autora favorita. Acompanhada pelos filhos e sobrinho dela. Inclusive a garota cujo olhar a fazia querer ter arrumado o cabelo só mais um pouquinho antes de sair de casa.

Claro.

Piper. Piper, a vegetariana.

O que poderia dar errado?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Comentários são sempre apreciados