Predestinado escrita por GabusDramaticus


Capítulo 19
Capítulo Dezenove




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As imagens que passavam pelos olhos de Eugene focavam e desfocavam.

Clareavam e escureciam.

Pareciam reais por um segundo, e depois totalmente ilusórias.

Alguém chamou seu nome, depois nada mais ele escutou.

Os sons ficavam límpidos, depois distantes e inaudíveis.

Ele viu seus amigos, mas depois lembrou que não tinha ninguém.

Era como se estivesse submergindo e emergindo de um rio.

 
Aquele sentimento sumiu e as vozes sombrias voltaram a sussurrar:

Perto.

Você está tão perto.

Atravesse a espada nela.

Vamos rir do sofrimento dela, tanto quanto ela riu do seu.

Toda aquela dor que ela te fez causar.

Olhe suas cicatrizes.

Ela estava brincando com você.

Se divirta com o grito de horror dela.

Mostre.

Ria da angústia dela.

Mostre que você não vai deixá-la impune.

 

Ele não sentia mais o chão debaixo de seus pés. Nem ouvia a sola dos sapatos esmagar os cascalhos do caminho. Eram mesmo cascalhos? Por quê ele não sentia mais nada? Ele começou a se incomodar, e virou a cabeça para mirar onde estava.

—Espere. — ele disse, e parou. Sua visão parecia começar a focar mais uma vez. —Onde está a floresta?

As vozes se inquietaram, mas soaram mais brandas que antes:

 

Logo à frente você verá, criança.

Os Campos Asfódelos.

 

Eugene balançou a cabeça. Aquela sensação de não saber o que estava acontecendo o deixou perturbado. Parecia estar em um sonho do qual não conseguia acordar.

—Campos… Asfódelos? — ele repetiu, e algo clareou em sua mente tão de repente o fez tropeçar para frente e cair. Ele voltou a ter fome e se sentir cansado. O quanto tinha andado? Onde estava? Qual era seu nome?

As perguntas pareciam marteladas em seu cérebro, mas ele estava tão cansado que tudo o que conseguiu fazer foi fechar os olhos.

 

 

Ele então se viu sentado no apartamento dos sonhos anteriores. Seu eu mais novo não estava mais por perto, mas a mulher gentil agora andava de um lado para o outro com roupas emaranhadas nos braços. Estava com o cenho franzido o tempo inteiro, o que o deixou um tanto apreensivo. Ela pareceu tê-lo notado e lhe lançou um leve sorriso.

—Não se preocupe, Mausi. Onde está sua boina?

Ele respondeu com naturalidade, mas aquela não era sua voz. Estava muito mais aguda. Infantil.

—Ali. — e apontou para a mala pequena do seu lado. A mulher pôs as roupas de lado e colocou a boina na cabeça de Eugene, lhe beijando o nariz em seguida. Ela o acariciou na bochecha e apontou para o espelho que havia sido retirado da parede e posto de lado.

Ele se viu ali, no corpo de seu eu mais novo, talvez com nove ou dez anos de idade. Vestia uma camisa simples branca e sua bermuda preferida, que batia acima dos joelhos. Sem contar nos suspensórios que sua tia Eileen lhe dera da última vez que os visitara. Ela morava na Suíça antes mesmo da grande guerra começar, e fez questão de lhes dar abrigo em sua casa, quando chegassem lá. Mamãe falava sobre se mudar para lá há tanto tempo que ele até perdera a conta. Gostava muito da ideia, na verdade. A Tia Eileen fazia o melhor apfelstrudel do mundo.
Ele sorriu, e percebeu no espelho que seu molar esquerdo permanente ainda estava nascendo, o que lhe deu uma aparência engraçada.

 

Sua mãe agora voltava a pegar aquele punhado de roupas.

—Vamos partir em dez minutos. Tem certeza de que não esqueceu de nada, não é?

Ele acenou com a cabeça positivamente. Sua mãe havia doado todos os brinquedos que tinha para o orfanato do bairro, alguns dias atrás. Tudo o que tinha agora eram suas roupas.

 

Os dez minutos se passaram e eles já estavam prontos para sair do apartamento. Eugene amarrou bem os cadarços e abriu a porta. Sua mãe deu uma última olhada no apartamento e suspirou tristemente. Eugene agarrou sua mão e eles desceram as escadas para sair do prédio com suas respectivas malas.

—Onde está seu pai numa hora dessas…? — Ele a escutou murmurar, olhando para o céu nublado. Algumas gotas de chuva começaram a cair. Ela olhou para a rua deserta e guiou o filho, pegando um pedaço de papel do bolso e olhando-o vez ou outra.

 

∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞Ω∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞∞

 

Seguiram juntos por ruas estreitas e becos por onde Eugene nunca havia passado antes. A chuva começava a ficar mais forte. Toda vez que avistavam uma viatura, sua mãe xingava baixinho e contornava o lugar. Ele não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas nada perguntou. Mamãe já parecia tensa o bastante.

O braço que segurava a mala estava cansado, e ele começava a sentir frio com toda aquela chuva, mas pela primeira vez, mamãe não colocou a mão em sua testa para checar se estava com febre. Ela mal olhava para ele, tão tensa como jamais esteve antes. Ele se sentiu magoado, mas mesmo assim a seguiu por onde quer que ela o levasse.

Eles andaram mais depressa, agora por uma rua mais larga. O papel na mão de mamãe estava encharcado, então ela o largou. Enfiou a mão num outro bolso, de onde tirou o anel de metal escuro que há tanto tempo ela não usara mais, e o apertou com força. Seus cabelos loiros e cheios agora estavam encharcados e grudados em seu rosto. Eugene viu uma luz de farol vindo da esquina quando um dos fusca da Gestapo entrou na rua em que estavam. Mamãe arquejou e entrou no beco mais próximo, Eugene tropeçando logo atrás dela.

—Eles não podem nos ajudar? — perguntou ele, tentando secar a água que caía nos olhos, sem sucesso.

—Infelizmente, não. — ela respondeu, esperando que o carro se distanciasse. O fusca passou pelo beco em que se esconderam, mas parou.

Halt! — o policial que sentava no banco passageiro saiu do fusca e andou até eles. As gotas de chuva contornavam seu chapéu. — Apresentem seus documentos.

Mamãe concordou com a cabeça e entregou a ele alguns papéis que Eugene nunca vira antes. O policial se virou para seu companheiro que ainda estava no carro.

Sie sind keine Juden! — gritou, logo depois analisando-os com as sobrancelhas franzidas. —Onde está indo nessa chuva, e com uma criança?

Mamãe parecia ter controle da situação.

—Estamos indo de encontro com minha irmã. Passaremos algum tempo na casa dela. A chuva nos pegou de surpresa.

—Não sabem que tem judeus e traidores tentando entrar nos trens para fora do país? Não vai querer que o menino veja os fuzilamentos, não é? Mesmo para uma criança, acho um tanto exagerado. — ele olhou para Eugene com um sorriso amarelo. —Venha, vamos levá-los para casa. Pode visitar sua irmã um outro dia.

E voltou para o carro. Eugene olhou para a mãe, confuso. Ela olhou em volta e avistou uma rua estreita ao longe, se abaixou para falar com o filho.

—Esses policiais não são boa gente. Precisamos sair daqui, o mais rápido possível. O trem não pode partir sem nós.

 

Eugene concordou, mas sentiu um frio repentino lhe invadindo o estômago.


E correram para a rua estreita mais próxima. O policial gritou algo atrás deles, mas mamãe apenas continuou a correr.

Eles viraram várias e várias ruas, e Eugene começava a ficar tonto e cansado de levar sua mala. Mamãe percebeu e a pegou com a mão livre. Ela olhou para cima e sorriu ao ver a fumaça branca do trem algumas ruas dali.

Verräter! — o policial berrou atrás deles, e eles viraram a primeira esquina que viram. Barulhos de tiro assustaram Eugene. Sua mãe olhou para trás, seu rosto cheio de medo.

—Fique na minha frente, Eugene! Corra o mais rápido que puder!

Ele choramingou, apavorado, mas não parou de correr. A chuva ficou ainda mais intensa.

—Siga na direção da fumaça! Não se preocupe!

Escutou o policial mandá-los parar, e virou à esquerda, seguindo para onde o trem estava.

—Não pare, Mausi! — ela disse, ainda parecia tão doce mesmo naquele momento. Mas por que parecia mais distante?

Ele escutou barulhos de tiro mais uma vez, seguidos de um grito de dor terrível. Ele parou e se virou. Viu sua mãe caída, tentando levantar, as malas abertas no chão. Havia sangue se juntando com a água da chuva no pavimento.

Mutti! — ele clamou em um soluço, horrorizado.

Escutou barulhos de tiro mais uma vez, e uma dor excruciante lhe invadiu o peito e o empurrou de costas no chão.

Não conseguia mais chorar, tamanha era aquela agonia. Não sentia mais as gotas de chuva caindo em seus olhos. Não sentia mais frio. A única coisa que ouviu foi sua mãe chamando por seu nome aos berros. Escutou mais barulhos de tiro, mas até aí seus olhos já estavam fechando.

 

E então não sentiu mais nada.


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