Yōso - Contrato de Aluguel escrita por Cristina Barbosa


Capítulo 6
Capítulo 6 - Passando a noite fora de casa




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O olhar arregalado dos meus amigos, num silencioso pedido para que isso fosse mentira foi um soco no meu estômago. Não foi difícil saber que estavam iguais a mim, ouvindo as palavras de Alice martelando, as imagens se formando e o desespero tomando conta. “Deve ser um animal, porque se for humano, é cruel demais.”.

    — O que a gente faz? — Heitor perguntou, porque nosso fôlego estava acabando.

    — Não sei vocês, mas fui.

    Ben avistou a entrada de outra rua e sem falar mais que isso, mudou o rumo da corrida. Nos entreolhamos porque cogitamos o seguir, mas aquela rua dava entrada a uma área que se conseguíssemos escapar com vida do que quer que estivesse nos seguindo, morreríamos apenas por estar ali, mas para Ben estava tudo bem, esses eram os seus amigos. Como ele dizia, parças.

    Atrás de mim, escutei Rafa o xingar de tudo o que era nome, enquanto seu vizinho ria. Estávamos quase o perdendo de vista, quando o resmungo de Rafa foi substituído por um gemido. Assustado virei meu rosto, apenas em tempo de ver além de um vulto ao longe, meu amigo ajoelhado no chão. Mal pude raciocinar que ele tinha uma flecha na perna, quando Ben apareceu correndo de volta.

    — Você quer morrer, Rafael? — ele gritou, o uso do nome dele me pegando de surpresa, nunca o ouvira chamar assim.

    Mas quando ele o pegou para levantar, não era mais apenas Rafael que gemia, Ben estava arfando, como se partilhasse do mesmo sofrimento.

    — O que houve? — respondi correndo para ajudá-lo.

    — Ele está gelado! Está tão frio que está parecendo fogo — gritou, ainda o arrastando pela rua.

    Me aproximei para tocar a pele de Rafael, apenas com a ponta dos dedos. A dor latente e profunda de estar colocando a mão em um balde de gelo me pegou de surpresa. Precisei tirar o dedo um segundo depois.

    — A flecha!

    Luana correu e a retirou, deixando exposto um buraco que minava sangue e uma gosma preta, a mesma que escorria da ponta da flecha. A combinação não era agradável e vi a expressão genuína de nojo cravada no rosto de Heitor. Sem olhar, ele retirou a camisa e amarrou no ferimento. Ao meu lado, Luana enrolou a flecha em papéis antes de guardar na mochila. Mais um gemido de Rafael e eu olhei para trás, porque não escutava mais nenhuma risada nem passos.

    Respirei duas vezes e agarrei o ombro dele, assim como Ben do outro lado e senti novamente meu ar sendo sugado. A nossa respiração descompassada e o suor, apesar da baixa temperatura, não era nada comparada a de Rafael. 

    — Rafael, continua... acordado — Ben gritava, a cada suspiro. — Não tô te carregando pra você ficar de corpo mole não!

    — Vamos lá, Rafa — murmurei, agradecendo por Ben gritar, por que se fosse depender de mim. 

    — Para aonde vamos?

    — Pra cá. — Ben apontou para onde ia e nós três balançamos a cabeça.

    — Não sairemos dali vivos.

    — Não está dando pra escolher, cacete!

    — Não é o melhor lugar, vamos procurar uma casa para pedir ajuda — eu disse, ainda estranhando tudo estar tão silencioso.

    — Se liga, ninguém vai abrir a porta para nós. — Por cima do ombro de Rafael eu conseguia ver Ben revirando os olhos.

    — Vamos… com… o Ben.

O murmúrio de Rafael, apesar de fraco era claro e como não tínhamos escolha, viramos a rua e fomos para a área que prometi a minha avó nunca pisar.

Heitor trocou de lugar com Ben, porque apesar de a temperatura de Rafael estar aumentando, ele ainda estava fraco. No momento que houve a troca, vi o rosto de Heitor empalidecer, mas não era por causa do gelo, seus olhos estavam fixos no ferimento de Rafael. Ele nunca se dera bem em situações com muito sangue.

— Ei, olha para mim, ok? — murmurei e vi os olhos trêmulos de Heitor tentarem me focar.

    Ben nos guiou, adentrando outra rua até achar um beco que daria para ficarmos. Ele fedia a esgoto e comida estragada, além do chão estar cheio de sujeira. Puxamos Rafael para atrás de uma das caçambas e Luana e Heitor correram para continuar estancando o sangue. Quando coloquei sua mochila ao lado, uma mulher gritou.

    Senti o mundo ao meu redor girando, o ar faltando e o terror estampado na face dos meus três amigos era o espelho da minha própria angústia, paralisado olhando para a rua mal iluminada. Por isso não fomos mais seguidos, o que quer que estivesse atrás de nós, acabou de achar uma nova pessoa para seguir. Uma presa mais fácil ou mais perto. Eu estava tremendo quando ouvi um suspiro aliviado de Ben, entre os gritos.

    — Ele não vai vir até aqui, mas se tu continuar com essa sua cara de bunda olhando para a rua, é bem provável que te veja — disse, estava se contendo para não gritar. — Eu não vou morrer por tua causa, tá ligado?

    Com isso ele levantou, agarrou meu ombro e me forçou a sentar ao lado de Luana, para logo depois ir para perto de Rafael, que estava escorado de olhos fechados. Mas Heitor, que apertava a camisa no ferimento de Rafael com as mãos trêmulas, explodiu.

    — Você está ficando louco? Tem uma garota morrendo!

    — Sou mais ela do que eu. — Ele avaliava o ferimento e eu não enxergava mais o rosto de Rafael, era o de uma garota. Que idade ela teria?

    — Como tem coragem de dizer isso? — Heitor segurou Ben pela camisa, mas ele devia era bater em mim, pela minha falta de coragem e por continuar sentado, vendo uma garota morrer, sem ao menos saber o que fazer.

    — Só não tô sendo hipócrita! Igual a vocês!

    — Hipócrita? Você só liga para você e tem coragem de nos chamar de hipócritas? — Apesar da voz firme, Heitor cambaleava.

    — Eu vou ligar para a polícia — Luana murmurou, procurando o celular e o meu suspiro foi audível. Claro, a polícia tinha armas, não precisava de pânico. Como eu não tinha pensado nisso?

    A ligação não demorou mais que alguns segundos, eles foram rápidos em perceber do que se tratava e Luana mais rápida ainda em explicar o que estava acontecendo. Ela sentou ao lado do Rafael e puxou Heitor para o seu canto, porque ele estava ficando mais pálido do que era possível. Logo depois tirou a camisa da ferida e trocou pela de Ben. Eu olhava para os dois e Ben ainda tinha os olhos pregados em mim.

    — Ele está voltando a temperatura normal — Luana disse e se virou para Heitor, o deixando de costas para Rafael. — Olha para mim, vamos contar até dez.

    Meus dois amigos estavam passando mal, alguém morria e eu não conseguia tirar os meus malditos pés do chão. Nem ao menos para ajudá-los, que tipo de amigo eu era? Na rua fria e deserta, a mulher deu outro grito e alguém gargalhou, esse foi o meu limite.

    — Preciso fazer algo — disse, puxando a tonelada que pesava meus pés para andar.

    — Mais que merda, seus amigos são um saco.

    A última coisa que vi, foi Ben com a mão no meu colarinho e a outra em punho, antes de apagar, com o nariz sangrando.

    Assim que despertei, ainda com os olhos fechados, me dei conta do quanto minha cabeça doía. Começava em um ponto atrás do meu pescoço, se misturando com a dor do meu nariz, de um jeito que eu não sabia que dor era qual. Minha cabeça estava gentilmente em cima de algo fofo o suficiente para que eu em primeiro instante acreditasse que fosse minha cama, mas o chão frio e sujo me confundiam. Minha mão esquerda estava quente, os dedos entrelaçados nela aliviavam minha respiração e me permitiam continuar de olhos fechados. Ao meu lado, alguém riu.

    — Foi um bom soco — Ben, claro que era ele, murmurou num tom presunçoso.

    — O que você ainda tá fazendo aqui? — De olhos fechados eu conseguia perceber o quanto Luana estava tentando manter a voz controlada. — Some daqui.

    — Qual é, garota. Tá de TPM?

    A mão de Luana saiu da minha, afastando o conforto com ela e tudo ficou silencioso. Depois de alguns segundos, a risada de Ben foi ainda maior.

    — Porque você não me coloca pra fora? Iria gostar de ver você tentando.

    Respirei duas vezes e o ar gelado da noite entrou em minhas narinas, me fazendo lembrar de tudo o que estava acontecendo. Abri os olhos em tempo de ver os dois sentados no chão aos meus pés e a mão de Luana no ar, antes dele a segurar.

    — Precisa mais que isso. E não acho que algum deles pode fazer algo — disse, assim que um som de vômito atrapalhou a conversa.

    Virei o meu olhar para onde Ben estava olhando. Rafael permanecia escorado na parede, parecia estar dormindo e sua perna estava estendida. Heitor, do outro lado, atrás da caçamba, não tinha nenhum machucado, porém, sua cabeça orbitava. A sua frente uma poça fedorenta indicava de onde veio o barulho. Para falar a verdade, ele estava demorando para isso. Tiveram situações que por menos sangue ele já tinha desmaiado.

    — Ah, não, Heitor! — Luana disse, antes de tentar mantê-lo acordado. — Eles vão vir rápido.

    — Eles quem? — murmurei, porque estava tudo calmo demais.

    — Ah, o belo adormecido acordou — Ben disse, pegando a mochila e levantando o dedo para a sirene que começava a tocar. — Eles.

    Ben murmurou algo para Rafael, antes de pular em umas caixas e atravessar o muro, sumindo dali. Olhei confuso para a Luana, que puxava Heitor para outro canto, longe do vômito e desistia de tentar deixá-lo acordado.

    — Polícia chegou tem uns minutos. Até agora não voltaram.

    — Sem notícias da garota então?

    — Nada, houve gritos, tiros, mas ficou silencioso depois. Devem ter resolvido, melhor coisa que podemos fazer é esperar.

    Suspirei aliviado, ainda não tínhamos notícias, mas só o fato de saber que a polícia estava ali e não haviam mais gritos me tirava trinta quilos das costas.

    — O Rafa…

    — Vai ficar bem, o sangramento diminuiu bastante, só espero que não infeccione — respondeu, sentando-se ao meu lado e sua atenção foi para a minha orelha. — Ben não é bom de mira, passei uma fita.

    — No que? — murmurei e percebi do que se tratava. Com os dedos, senti a fita adesiva passando pela perna dos meus óculos. — Obrigado. E você, como está?

    — Bem, ainda não me acertaram com um soco — disse, rindo fraco.

    — Não, em relação a hoje mais cedo.

    — Ah, hoje? Tudo tranquilo. — Ela balançou a mão em frente ao rosto, com um sorriso, que apesar do escuro, eu via que era falso.

    — Lua.

    — Sério, Zar, tranquilo. Está tudo sobre controle.

    — Lua.

    — Não tem como dar errado, meu tio está bem, claro que sim — disse, aumentando o tom com um sorriso macabro. — Minha tia vai poder encontrá-lo.

    — Você sabe que pode con… — murmurei, mas ela não me ouvia.

    — Ele deve estar por aí, em algum lugar. — Voltou ao tom baixo, falando sozinha e paralisou. — Ah, meu Deus! Ele está por aí, César. Minha tia vai enlouquecer quando souber o que aconteceu hoje.

    — Mas Lua...

    — Olha essa menina. Deve ter sido a única vez que ela saiu de casa, Zar. A única vez e já foi atacada — disse, gesticulando com as mãos mais que o costume. — E ele está por aí, há muito mais tempo que ela.

    — Há chances, claro que ainda há — comecei sem saber o que falar, não queria que ela passasse por isso, mas precisava ser honesto, ajudá-la com isso. — Mas você precisa começar…

    — A aceitar — completou, balançando a cabeça. — Eu sei, estou passando por essa fase, mas a minha tia… Ah, Zar, é com ela que eu estou preocupada.

    Era a primeira vez que Luana dizia o que estava sentindo. Ela se virava nos trinta para cuidar de tudo e estava pouco a pouco indo para baixo também.

    — Vou te ajudar com isso. Vamos fazer turnos.

    — Turnos? — A ideia era boba, mas pelo menos ela estava respirando tranquilamente de novo.

    — Sim, uma manhã eu fico com a sua tia e na outra você fica.

    — Não, claro que não precisa.

    — Precisa, assim você fica em casa um tempo.

    — Eu estou bem.

    — Lua, sei que não, eu só preciso que você me deixe te ajudar. — Ela sabia sobre o que eu estava falando, suas notas e calou na mesma hora, mas eu não queria o ar tenso. — E temos que estudar lembra? Estou te devendo algumas aulas particulares. — Serviu de algo porque ela sorriu.

    — Aulas? — Levantamos o olhar e Heitor estava tentando ficar de pé. Me mexi para ajudá-lo, mas Luana olhou para mim com uma cara assustadora.

    — Você fica, sua cabeça ainda está sangrando, você bateu numa pedra quando caiu — ela murmurou e toquei na minha nuca. Estava molhada.

    — Não está mais aqui quem falou.

    Ela levantou, saindo do canto escuro e protegido pela caçamba, para ir ao outro lado. Observei seu rosto ser iluminado pela luz do poste, que vinha da rua, enquanto ela pedia para que Heitor continuasse sentado, calmamente. O som dos passos que eu ouvia não coincidiam com sua calma, alguém estava correndo, muito perto de nós.

    Alguém havia nos achado.

    — Lua — disse, correndo para que conseguisse a esconder.

    Caí em cima dela, porque não calculei bem a velocidade e nós dois bem ao lado de Heitor. No escuro, protegidos pela caçamba, indiquei que fizesse silêncio com o dedo, sentindo sua respiração ofegante e pedindo para que meu coração fosse mais devagar. Engoli em seco, desviando o olhar e escutei os passos, mais altos e mais perto, mais perto e não consegui evitar fechar os olhos e esperar que aparecesse.

    — César? — Uma voz me chamou e abri os olhos, dando de cara com uma pessoa que não esperava.

    — Henry? É você?

    — Sim, o que está fazendo aqui? Assim. — Apontou para o meu grupo de quatro amigos. Ele tinha razão, principalmente porque eu continuava em cima de Luana. Tratei de mudar isso, murmurando desculpas.

    — Eu… Bem… O que você está fazendo aqui? — O sorriso de Henry cresceu.

    — Estava indo para casa. 

    — Está tendo um ataque aqui. Você não ouviu os gritos?

    — Por isso mesmo estou indo para casa — disse despreocupado, com as mãos no bolso. — Quer uma carona?

    — E os policiais? Soube algo?

    — Estão cuidando disso, ajudamos mais em casa.

    Olhei para os meus amigos e para Henry. Era suspeito demais ele estar ali e a conversa com Beatriz tomou conta de minha mente. Era noite e ele não estava em casa, seria esse o momento da “convocação”? Coloquei na balança os prós e os contras. 1: nós quatro morreríamos no beco, 2: nós quatro morreríamos se entrássemos no carro de Henry, seu sorriso exagerado a minha frente era motivo suficiente para acreditar nisso, 3: chegaríamos tudo...

    — Queremos.

    — O que?

    Me virei para Luana, que não olhava para mim e sim para Henry. Ele entendeu, pegando a mochila jogada no chão, que havia servido de encosto para a minha cabeça.

    — Suspeito ele estar por aí uma hora dessa — murmurei, enquanto Luana amarrava o cabelo.

    — Não é proibido andar por aí, sabia? Porque é suspeito?

    — Heitor, você também acha que não é uma boa ideia, não é?

Os olhos do meu amigo se abriram durante um segundo e se fecharam de novo. O que recebi como resposta foi apenas um levantar de sobrancelhas. Péssimo momento para não ter dito nada a Luana sobre Henry. Se Rafael ao menos estivesse acordado ou Heitor dentro de si.

    — Não posso falar agora — expliquei, desistindo de Heitor me ajudar. — Mas é suspeito.

    — Ele é de boa César e eu não vou perder essa carona — disse e sorriu como se tivesse a melhor resposta. — Estou sangrando, sabia?

    Arregalei os olhos quando ela levantou o braço, justo o que estava embaixo de mim, revelando o ralado que recebeu quando eu a derrubei. Suspirei admitindo minha derrota. Ela segurou Heitor em seu ombro e tentei pegar Rafa no braço, duas, três vezes, mas de jeito nenhum eu conseguiria.

    — Eu te ajudo com isso. Você não está com uma cara muito boa.

    Prendi os dentes enquanto Henry pegava as pernas do meu amigo e eu o ombro. Luana foi na frente, amparando Heitor e nós logo atrás, carregando Rafa pelo beco até avistarmos o carro preto parado há uns quinze metros e precisarmos respirar. Limpei a gota de suor que escorria pela minha testa, pronto para continuar, mas Henry estancou.

    — O que foi?

— A ambulância. Vamos esperar para que levem o seu amigo.

— Pode ser que ela demore — disse, olhando para a rua deserta.

— Está vindo — murmurou como se fosse óbvio e a ambulância apareceu virando a rua. — Aqui!

    De novo carregamos Rafa até a ambulância. Tentei fazer algumas perguntas, ao ver um corpo dentro, mas a única coisa que recebemos foi uma advertência e uma ordem urgente de que voltássemos para casa. Não demorou mais que alguns minutos e Rafa estava indo.

A contra gosto entrei no carro com Henry. Luana sentou no banco da frente e aproveitou para conversar com ele, estava disposta a mostrar que meu vizinho era uma boa pessoa. Eu me encolhi entre o corpo deitado de Heitor, que havia pegado no sono e as quatro mochilas do outro lado.

Olhei a cidade pelo vidro do carro. Todas as janelas das casas estavam fechadas e até as pessoas que não gostavam de cortinas eram adeptas dela. Algumas pessoas ainda ficavam nos bares e nos supermercados, mas mesmo assim, nesses lugares, o clima não era o melhor. Todos olhavam apreensivos para qualquer carro que passasse. Na frente, a conversa era sobre a lanchonete, prestei atenção quando ouvi o nome do Tadeu.

    — Ele está bem, disse que é um bom lugar para ficar. Encon… Falei com ele ontem — Henry disse, descontraído. — Espera, ele não ligou para vocês?

    Queria poder dizer que não levei essa pergunta para o lado pessoal, mas a surpresa de Henry em saber que não havíamos recebido sequer uma mensagem do nosso amigo, junto com a insinuação de que “achei que eram mais chegados”, foi suficiente para eu e Luana trocarmos olhares chateados.

    — Irei pedir para ele ligar para vocês.

    Luana tossiu, porque caímos num silêncio constrangedor e apontou para algo que eu não via.

    — Henry, seu avô cuida de plantas, não é? — Estiquei minha cabeça e vi os saquinhos de sementes dentro de uma bolsa no chão.

    — Sim, depois que se aposentou ele encontrou sua paixão verdadeira — Henry comentou e eu estava ficando enjoado. O carro marcava quase 30 km/h enquanto os outros passavam voando ao nosso redor. Ele não parecia ter noção do perigo. — Hoje em dia vive trancado no quintal cuidando delas. Mais que tudo.

    — Seu avô vive em casa? — murmurei, pela primeira vez.

    — Claro, difícil ele sair de casa — ele gargalhou, mas paralisou em seguida. — Não. Não. Que cabeça a minha. Ele quase não para em casa, mas quando está lá, cuida das plantas.

Paralisei durante um momento. Ernesto vivia em casa? Aquela frase de Henry poderia ser realmente apenas um engano. Apenas uma troca de palavras. Poderia ser se a minha frente Henry não fosse a personificação da mentira. Sua mão bagunçava o cabelo e ele gaguejava, tentando emendar outro assunto com Luana.

Sabia que havia algo errado com as viagens de Ernesto. Sempre ocupado para visitas. Isso me levava a algo muito maior do que eu imaginava, ele estava nos evitando? Se fosse apenas a mim, eu diria que era pelos meus assuntos chatos e entenderia, mas minha avó também não conseguia o visitar. Era possível suas ausências serem mentiras?

— Eu não faço ideia — Henry disse, não gaguejando mais. — Tenho a sensação que nenhuma delas se encaixa comigo. 

    — Eu tinha essa sensação até me encontrar na arte. — Demorei para entender que eles falavam da faculdade. — Talvez essa seja sua área também. Vale a pena pesquisar.

    Luana tinha um sorriso que tentava se comparar com o de Henry, mas segurava a mochila no colo com força a mais do que precisava. Estava igual a mim, com a atenção nos dois lugares, esperando qualquer barulho ou sinal.

    — E você, César? — Ele olhou para mim pelo retrovisor. — O que quer fazer?

    — Qualquer coisa — murmurei, olhando para ele, Luana prendeu um sorriso. — E Beatriz, não perguntei a ela, o que ela queria fazer?

    Henry não gargalhou, pelo contrário, seu sorriso que antes estava tão escancarado fechou e ele respondeu sério.

    — Tantas coisas, tantas coisas que até hoje não deve ter decidido. Mas você realmente não gosta de nada? — tornou a perguntar, seus olhos cor de âmbar ainda mais fixos.

    — Nada. E ela, não gosta de nada específico também? — frisei bem a parte e vi o sorriso que Luana prendia escapar e por um momento me deixei levar por ele, a olhando.

    — Pergunte a ela, se quiser.

    — Claro. Onde ela mora?

    — Ela viajou. — O olhei novamente, só nesse momento notei o quanto suas mãos estavam apertando o volante.

    — Viajou?

    — Sim, pro sul. De volta a família. — O tom dele era muito seco.

    — Era de lá que era vinha, não? Porque voltou?

    — A mãe dela morreu. — Arregalei os olhos e repeti o que ele disse. Sua irritação foi palpável. — Sim, morreu. Podemos falar de outro assunto?

    O olhar duro de Luana como advertência não ajudou, só me deixou culpado por Henry não ter voltado a sorrir. A viagem caiu em um monótono silêncio, ele indo ainda mais devagar do que já estava. Continuei observando as lojas com meus pensamentos voltados para Beatriz e a garota do ataque daquela noite. Os gritos dela continuavam em minha cabeça e eu duvidava que saíssem.

Nesse momento, observando a rua, uma coisa me chamou atenção. As pessoas estavam fechando as lojas muito rápido e me perguntei se eu havia perdido alguma coisa, porque não fazia sentido todos estarem correndo daquele jeito, adentrando nas casas desesperados. Como se um fantasma tivesse aparecido.

    — Zar! — Luana gritou e me virei para ela. — Se abaixa!

Fiz isso um segundo antes do carro bater num poste que estava caindo, meus óculos voarem pela janela e o corpo de Heitor cair em cima de mim.

— Você está bem? — ela perguntou, me olhando.

Estava por completo embaixo de Heitor quando percebi uma mulher, que eu só enxergava o vulto, se aproximar do carro. Em câmera lenta, o suspiro aliviado de Luana se transformou num grito, ao virar e ver a porta do carro sendo arrancada. Com a pontinha do meu dedo, a única coisa que não estava embaixo de Heitor, agarrei a pontinha do dedo dela, no momento que a mulher agarrou seu corpo.

    — A segure! — gritei para Henry, porque eu estava a perdendo.

    Vi, incapaz de me mexer, seus dedos escorregarem dos meus. Vi Henry não a segurando, Henry não mexendo o braço para segurar a perna de Luana e ela ser arremessada, até o muro, antes de gritar.

    Um relógio branco estava na parede branca a minha frente. O ponteiro se mexia lentamente, passo a passo, como se estivesse com preguiça. O tic-tac havia me colocado em um transe, eu poderia estar dormindo, porque era assim que eu me sentia. Porém, eu podia ver as pessoas correndo de um lado ao lado, se atropelando para passar nos corredores estreitos.

    Seus gritos, ordens e pedidos deviam ser altos, mas o que eu escutava eram apenas sussurros, distantes diante do relógio a minha frente. Ele ainda teimava em ir devagar, não importava o que acontecesse. Por que ele não corria como as pessoas de branco ao meu redor, porque ele não corria? Talvez porque soubesse que dependia apenas dele, sabia que eu estava implorando que aquela porta se abrisse e fazia isso para rir de mim.

    Minha vó havia voltado de onde quer que tivesse ido e estava ajoelhada diante de mim. Trazia um copo de água, vi sua mão estendida, esperando que eu o pegasse, mas como disse, eu estava dormindo. Não tinha consciência dos meus membros, apenas os meus olhos perambulavam, sem fixar em nada exceto o relógio.

    Ela tentou brigar comigo, quando voltei para casa, estava muito possessa quando abri o portão. A mãe de Rafael havia ligado para ela, a pedido do próprio, para explicar a demora. Por isso sabia no que havíamos nos metido.

    — Então quer dizer que o senhor estava no meio da rua enquanto acontecia um ataque? — disse, segurando o pano de prato com força.

    As lágrimas de quando me abraçou, ao ver que eu estava bem, haviam sumido tão rápido quanto o rosto dela ia ficando vermelho. Não respondi.

    — Para completar você estava na pior parte da cidade — ela gritava. — Você tem ideia do que poderia ter acontecido? Você ao menos compreende o tamanho do risco? Essas pessoas são perigo…

    Então ela percebeu que meus olhos estavam inchados e meus lábios tremiam. A mãe de Rafael não sabia da outra parte. Não agradeci por ela não ter perguntado nada e apenas ter me abraçado, mas deveria porque minha voz não teria saído. Me agarrei a ela, o mais forte que pude e viemos para onde eu estava, no hospital.

    Rafa estava num quarto, pelo que ouvi sentado no chão, sendo examinado. Heitor não havia chegado ainda, segundo a mãe dele, numa ligação que ouvi de minha avó, ele estava esperando que o remédio de enjoo fizesse efeito para conseguir enfrentar um hospital. Henry, bem, foi enxotado, foi a única vez que reagi, apesar de ter sido tarde demais.

    — Não ouse passar por aquela porta! — gritei, assustando minha avó que andava abraçada comigo.

    — Quero saber o que aconteceu, estou machucado também.

    — Que se cure em casa! Faça um curativo, tome a merda do remédio que você quiser. Apenas suma daqui!

    Tive sorte por minha avó ter convencido ele a sair. Deveria agradecer a ela isso também, porque apesar deu estar gritando aos quatro cantos e assustando toda a rua, meu corpo estava fraco e eu não aguentaria dar dois passos para expulsá-lo. Ele não poderia vê-la, não depois de não ter feito nada. Voltei a ficar calado.

    No momento que entendi que o relógio, no fim, era meu amigo, que ele sabia o tempo necessário e eu não poderia apressá-lo a porta finalmente abriu.

    Pela primeira vez levantei meu rosto. O pai de Luana, que permanecia em pé com a ajuda do irmão mais velho dela, que viera de longe, correu de encontro aos médicos assim que saíram conversando. Vi a desolação e o desespero cravados no rosto dele, antes de ouvir o que o médico dizia.

    Ela estava em coma.


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