Plano Áureo escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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O letreiro iluminado chamava a atenção de qualquer um que passasse por perto. “Plano Áureo” não era um nome comum de se encontrar nem mesmo em Lux, a grande cidade da Lua. Mas aquele lugar era exatamente o que Eric buscava. Em meio às vielas mal iluminadas da cidade, aquele cantinho escondido, mas com a placa chamativa, guardava algo que poderia ser de grande valia para o escritor. Depois de meses fora do sistema solar aperfeiçoando sua escrita com os mais diferentes mestres do ramo, o homem se via numa situação irônica: ele passava por um forte bloqueio criativo.

O escritor viajara com uma bagagem mínima: uma pequena quantidade de roupas, a sua LISI (Lente Integrada ao Sistema de Informações) e uma garrafa d’água. Através da sua LISI, ele pôde visualizar que sua mãe havia mandado mais uma mensagem. Não era a primeira que ele não lia. Fazendo uma careta, ele gesticulou negativamente com a cabeça, de maneira que a notificação de “nova mensagem” desapareceu. Finalmente Eric adentrou o local almejado.

Indo contra as expectativas causadas pela péssima localização, o interior do lugar tinha uma aparência invejável. Apesar do pouco espaço, o seu piso bem polido era um deleite aos olhos, deleite esse que aumentava ao visualizar as paredes metálicas que portavam quadros com as faces de grandes cientistas da área da computação, neurociência, entre outros. A iluminação era leve, garantindo conforto ao olhar dos visitantes. Atrás de um balcão, uma recepcionista analisava Eric com o sua LISI. Ela então disse:

— Seja bem-vindo, Eric Franzoi. Chegou bem na hora. O doutor Kaas te espera.

Com um sorriso no rosto, Eric acenou positivamente com a cabeça enquanto era conduzido pela recepcionista. O lugar não era grande: após a recepção, havia apenas um curto corredor com duas portas ao fim. O escritor foi conduzido para a porta a sua direita, finalmente se deparando com o local onde seria feito o procedimento contratado.

— Eric Franzoi, escritor — disse o doutor Kaas.

Mais uma vez, Eric estava num lugar simples, mas belo. O consultório contava com poucos objetos: uma cadeira de formato incomum com um maquinário logo acima, além de uma mesa com um computador. Kaas sorria enquanto Eric analisava todo o local indiscretamente.

— Veio participar do nosso plano padrão, certo? O “Plano Áureo” — falou o doutor.

— Exato — Eric confirmou.

Através da LISI, o escritor pôde conferir a efetuação do pagamento. O plano era caro e ele viu seu saldo se tornar negativo.

— Você já deve conhecer o funcionamento, mas ainda assim devo fazer algumas explicações — explanou Kaas. — O “Plano Áureo” nada mais é do que uma simulação da sua mente, mas de maneira ordenada. Você se encontrará num lugar branco, vazio e silencioso. A partir daí você poderá acessar memórias, ideias e até emoções. Com isso será possível furar bloqueios, recuperar memórias perdidas, entre outras coisas. Entretanto, para tudo funcionar como planejado, você deve esvaziar sua mente. A dica é sempre a mesma: se for para pensar em algo, pense em um quadro em branco.

Com as instruções dadas, o doutor conduziu Eric até a estranha cadeira. Finalmente sentado, o escritor pôde desfrutar de um conforto incomum. Kaas seguiu até o computador, digitando alguns comandos para, logo em seguida, o processo ser iniciado. O maquinário acima da cadeira começou a descer lentamente, posicionando-se em volta da cabeça do escritor. Tudo que ele via era um largo monitor com uma tela branca. Além disso, um som agudo levemente incômodo ecoava em seus ouvidos.

— Esvazie a mente — repetiu Kaas.

Eric fez um esforço, mas acabou se distraindo ao ver que mais uma mensagem da sua mãe havia chegado. O branco a sua frente se misturou com a imagem projetada de sua LISI e o agudo tornou-se mais alto e incômodo. O escritor quase que pediu para interromper o procedimento, mas com algum esforço acreditou ter esvaziado a mente. E então, com um último clarão do monitor, tudo embranqueceu para o rapaz.

O vazio se espalhava todos os lados. Eric se sentia incorpóreo. Olhando para o que seria seu próprio corpo, ele viu que nada havia ali. Uma estranha sensação de liberdade se apoderou do espírito do escritor. Entretanto, aos poucos tudo começou a ganhar cor e forma. O branco começou a vibrar, dando espaço para um misto de cinza metálico e um preto fosco. Eric começou a sentir a volta do peso de ter um corpo. Seus dedos formigavam e suas costas doíam. E, em meio àquela onda abstrata, o concreto se fez presente. Ele finalmente se viu em um lugar palpável.

O escritor estava, afinal, em um ônibus espacial. Ele estivera em vários daquele modelo nos últimos meses. A cadeira não era a das mais confortáveis e ele não tinha acesso a muitas distrações enquanto viajava, mas não se podia pedir muito da classe econômica. Mas agora era diferente. Ele estava sozinho, não havendo ninguém sentado próximo. Além disso, o cinto de segurança o apertava de maneira incômoda e desproporcional. Tentando se soltar, Eric percebeu que o instrumento estava emperrado. Ele simplesmente não queria largar o escritor, não permitindo que ele se levantasse.

Como se aquilo já não fosse ruim, a nave tremia e suas luzes piscavam com frequência. Tudo aquilo assustou o escritor, que logo gritou um comando para que a simulação fosse encerrada. Ele não obteve resposta. Decidiu então simplesmente esperar. Ele não podia fazer nada.

— O que eles querem com isso? Que eu tenha uma ideia brilhante enquanto olho as estrelas? — Eric falou sozinho.

Os minutos foram passando e o tremer da nave se tornou mais intenso. Não só isso, a escuridão fazia questão de tomar o espaço da luz por um tempo cada vez maior. A sensação de medo começou a se apoderar do escritor. Ele então começou a verificar seu assento. Abaixo dele, colado com uma fita, ele encontrou um estilete. Retirando o instrumento, ele analisou se valeria a pena. Tentou mais uma vez se libertar do cinto através do botão tradicional, ação que resultou em nada. Finalmente liberando a lâmina do estilete, Eric se libertou da prisão que o cinto de segurança o impunha.

Era estranho, aquele não parecia um grande feito. Entretanto, o escritor se sentia mais leve e livre. Mas como consequência, o tremor que se seguiu na nave o derrubou, porém sem nenhuma lesão grave. Com o coração palpitando, Eric reconheceu que cair era uma possibilidade e custo de ter se libertado das amarras. Mas finalmente livre para andar, ele se levantou e começou a investigar o lugar.

Não havia qualquer sinal de vida. Nenhum pertence pelas filas de cadeiras. Enquanto caminhava, Eric acabou se assustando em diversos momentos com a escuridão repentina e com o tremer repetido da nave. Aos poucos foi se acostumando e se apoiando nas cadeiras próximas para não cair. Após alguns minutos, ele finalmente se viu de frente para a porta que dava acesso à cabine de pilotos. Mas ela não combinava com o lugar: era simplesmente uma porta de madeira com uma maçaneta tradicional. “Isso é de séculos atrás. Ou coisa da Terra”, ele pensou. Aceitando que nada faria sentido, Eric girou a maçaneta.

O que ele encontrou do outro lado foi assustador: a nave viajava em direção a um buraco-negro. Não só isso: o piloto estava morto. Seu corpo nada mais era do que uma ossada com seu traje típico dos tempos de trabalho e um crachá que Eric não deu qualquer importância. Mais uma vez, o medo tomou conta do escritor. Com o tremor e a escuridão, ele decidiu se sentar no chão enquanto escondia seu rosto com suas mãos. Aquilo não era real e ele sabia disso. Mas ainda assim, a sensação de impotência o tornava um escravo do medo.

Estando à beira de um colapso, o escritor se surpreendeu ao ver uma notificação do seu LISI. Sim, a lente estava funcionando. Com uma nova mensagem, Eric não viu alternativa a não ser ler. Ela dizia “ASSUMA O CONTROLE, SEU IMBECIL”. Ele quis rir daquela situação desesperadora. Ele era só um escritor, não sabia nada sobre naves e estava solitário na escuridão. Ainda assim, as mensagens continuavam a chegar. “NÃO FIQUE PARADO, IDIOTA”.

Querendo achar um outro meio de escapar daquele pesadelo, Eric decidiu sair da cabine do piloto. Ao abrir a porta, ele se surpreendeu com o cenário encontrado: tudo havia mudado. As fileiras de cadeiras deram lugar a um corredor único. Era um corredor típico de hotéis, com um belo carpete vermelho e várias portas. Ao fim do corredor, o escritor conseguia ver um espelho. Seguindo o caminho, ele pôde perceber que todas as portas apresentavam a numeração “1.10.1”. A apresentação dos números era estranha e Eric chegou a pensar que aquilo fosse uma data. Entretanto, ele não se lembrava de nada importante.

Finalmente de frente para o espelho, o escritor enxergou alguém magro ao extremo, com terríveis olheiras e um legítimo olhar triste. Olhando para seu corpo de fato, ele viu que aquela imagem não refletia a realidade. Ainda assim, aquela visão causou pânico em Eric. Reagindo com raiva, ele atirou o estilete no espelho, quebrando-o. O que se viu a seguir foi uma grande surpresa: havia uma espécie de cofre escondido pelo espelho. O escritor entendeu o recado das portas: era a senha. Ele digitou a numeração “1101”. Finalmente aberto, o cofre revelou um livro. “A obra de toda sua vida: um trabalho de Eric Franzoi” era o título.

Ao abrir do livro, o escritor se entristeceu: simplesmente não havia nada escrito. Uma grande obra vazia, essa era a Magnum opus dele. Sentando-se no chão como um derrotado, Eric começou a chorar. Então mais uma notificação apareceu em sua LISI. Ela dizia “AINDA NÃO ENTENDEU A MENSAGEM, BABACA?”. É, não adiantaria se lamentar. Diferente da primeira vez, Eric recuperou sua postura mais rapidamente. Ele começou o caminho de volta para a cabine.

Entretanto, mais uma mudança era perceptível nesse caminho. As numerações das portas se converteram em uma única palavra: “AJA”. Com o livro em mãos, Eric abaixou a cabeça e seguiu seu calvário. Finalmente abrindo a porta da cabine, ele encarou mais uma vez o buraco-negro. Ele estava maior, mais sombrio, mais misterioso e mais assustador. Mas nada poderia congelar o escritor dessa vez. Ou ao menos ele pensava isso.

Ao tentar retirar o esqueleto do piloto da cadeira, Eric se deparou com uma revelação chocante. Estava escrito no crachá o nome “Marcus Franzoi”. “Pai?”, pensou o escritor. Uma onda paralisante de medo, insegurança, ansiedade e angústia tomou conta dele. “Não, isso é só uma simulação, só uma simulação. Nada disso é real”, ele pensou, tentando se acalmar. Mas não adiantava. A situação poderia ser simulada, mas os sentimentos eram reais.

Mais uma vez debilitado emocionalmente, o escritor foi ao chão. Completamente impotente, mas não pelo medo do buraco-negro. A visão de seu pai morto foi algo muito mais assombroso e chocante. Ele estava a pensar mais uma vez “O que posso fazer?”.

— Parem! — Eric gritou com todas as forças.

Mas não adiantava. A nave ainda tremia, a escuridão ainda tomava conta rotineiramente lugar e o corpo do seu pai ainda se fazia presente. O buraco-negro crescia ali fora, mas a escuridão dentro de Eric era muito maior. “Só quero que isso acabe”, ele pensou enquanto fechou os olhos. Mas nem mesmo olhos fechados podiam fugir das notificações da LISI. “VOCÊ É BURRO? AJA COMO SABE QUE DEVE AGIR!”.

— Para! — Eric perdeu o controle e começou a falar. — Você acha que ajuda? Eu estou numa droga de nave perto da morte. Eu sei que essa maldição não é real, mas é exatamente o que não aconteceu ainda que me aflige!

Com o silêncio que se fez presente a seguir, Eric riu pelo fato de estar falando aquilo tudo para o vazio. Era simplesmente patético: um homem de vinte e tantos anos passando por aquele perrengue em um simulador e conversando com o nada. “E pensar que torrei minhas últimas economias nisso”, ele se lamentou.

Acalmando os nervos, Eric se levantou para analisar mais uma vez a situação. O buraco-negro estava realmente próximo e ele teria pouquíssima chance de fuga mesmo se soubesse como usar os controles daquela maldita nave. A tremedeira havia aumentado e os momentos de luz é que haviam se tornado escassos. Criando coragem, ele retirou o esqueleto do pai da cadeira do piloto. Sentando-se nela, o escritor vislumbrou as estrelas, a escuridão e a imensidão do universo.

— Eu só queria que as coisas fizessem sentido — ele falou alto.

E então o LISI trouxe uma resposta: “ENCARE O ABISMO”. O escritor pensou “Já estou perdido mesmo” e, pela primeira vez seguindo as palavras que se projetavam na sua frente, ele segurou o manche da nave.

— Aí vamos nós — Eric pensou alto enquanto tentava uma manobra de salvação.

Agindo puramente por instinto, o escritor tentou escapar do buraco-negro. Aquela onda gigantesca de escuridão, no entanto, já estava próxima demais. Ela puxava a nave com força e, por mais que Eric apertasse os botões desesperadamente, nada adiantava. Chegou ao ponto em que realmente era tarde demais: as sombras cresceram e tomaram completamente conta da nave. Ela mergulhou em meio ao mistério, girando e se distorcendo enquanto passava por uma experiência cósmica única.

Eric mal pôde perceber todo o ocorrido. Tudo aconteceu de maneira extremamente rápida e o escritor nem sequer pôde temer o processo. A nave havia simplesmente chegado ao outro lado. Nada de uma morte lenta e violenta ou mesmo sofrimento cósmico. Tudo não passara de uma viagem. E a imagem que Eric pôde vislumbrar naquele momento era belíssima: a azul e magnífica Terra se fazia visível bem na sua frente. Ele poderia, finalmente, voltar para casa.

Então, com o sentimento de felicidade e esperança, o escritor se despediu da simulação. O quadro cósmico deu lugar ao consultório de outrora. O maquinário voltou para sua posição original, permitindo que Eric reparasse na ausência do doutor Kaas. “Deve ter saído para um lanche”, pensou o escritor. O LISI então alertou a chegada de mais uma mensagem. Era de sua mãe. Dessa vez, Eric criou coragem e leu os recados acumulados. Eram eles:

“Filho, como estão indo as coisas? Já faz uns meses que você está aí fora sem dar notícias. Saiba que a gente sente muito sua falta! Eu e seu pai te amamos demais!”;

“Eric, a situação do seu pai pirou. Eu sei que você está estudando muito e juntou quase toda sua verba para esse trabalho como escritor, mas agora seu pai mais do que nunca precisa de ajuda. Não estou falando de ajuda financeira, mas da sua presença. Volta para casa”.

O escritor parou brevemente de ler as mensagens. Seus olhos começaram a lacrimejar e ele temia que os próximos recados trouxessem trágicas notícias. Respirando fundo, ele retomou a leitura.

“Filho, mandei para você um artigo sobre ansiedade. Deixei em anexo e pode te ajudar. Responda minhas mensagens, por favor”;

“Eric, eu nem sei se você lê isso aqui, mas tenho que te dar a notícia: por um milagre seu pai melhorou! Nem os médicos sabem explicar, mas ele já está bem melhor e em breve deve conseguir alta. Você não sabe como estou feliz!”.

Aquela era a última mensagem. Eric, de fato, começou a chorar. Mas era um choro de alegria. Ele não deixava de se culpar por sua ausência e sua covardia em não ler as mensagens, mas se sentia extremamente abençoado pelas boas notícias sobre seu pai. Finalmente o escritor respondeu. “Estou voltando para casa, mãe e pai. Amo os senhores”, ele enviou.

Não tardou para sua mãe enviar uma resposta: uma foto dela com seu pai. O homem não estava morto e nem mesmo era um esqueleto. Ainda que estivesse em uma cama de hospital, Marcus estava bastante vivo. Eric se emocionou e disse que partiria para Terra naquele mesmo dia. Logo em seguida, Kaas reapareceu no consultório.

— Fortes emoções? — Questionou o doutor.

— Até demais — respondeu Eric com bom humor. — Inclusive, tenho uma reclamação: eu não fui parar no tal “Plano Áureo”. Digo, até que fiquei por lá por alguns segundos no início. Mas depois fui arrastado para um ambiente completamente diferente e até mesmo hostil. Era para ser assim mesmo?

Kaas ficou surpreso com as palavras do escritor, mas respondeu com classe:

— Bem, o sistema não cria nada. Ele apenas reproduz visualmente âncoras e links da sua própria mente. Ou seja, tudo é criação do próprio usuário da máquina. Eu não poderia interferir nisso nem se quisesse, porque o sistema não suporta esse tipo de controle.

Dando um sorriso discreto, Eric cumprimentou e se despediu o doutor. Finalmente saindo daquele lugar, o escritor vislumbrou de longe a estação espacial. “Quem diria que eu terminaria o dia pegando uma nave daquelas?”, ele pensou. Ele sabia que, apesar da experiência dolorosa de certa forma, as coisas melhorariam. Iria reencontrar sua família e finalmente criaria coragem para escrever o livro que tanto sonhava. Seu Magnum opus não seria um livro vazio.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ter lido até aqui. Deixe sua opinião e, caso tenha gostado, recomendo para amigos e outros fãs de literatura de maneira geral.

Forte abraço!



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