Rebel Mermaid escrita por nekokill3r


Capítulo 14
A vergonha após o desastre




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No outro dia, passo a tarde inteira dormindo e só acordo quando está perto de anoitecer. Para não ser ingrata e agir como se não tivesse me importado com sua situação, tomo os remédios que o médico especial me receitou nas horas certas e tento comer mais para parar de tomar soro. Os pulsos ainda doem, mas vou poder tirar os pontos logo. Não voltaram a amarrar meus ombros, embora eu não confie mais em mim mesma quanto a não me machucar. A única parte boa disso tudo é que não recebi a visita de ninguém, o que me deixou alegre por não ter de ficar ensaiando várias coisas na minha cabeça para explicar aquela atitude imprevisível. Prim é a única que vejo nesse meio tempo de isolamento. Eu adorava vê-la, de certa forma fazia com que eu me sentisse mais alegre, mas ela não fica muito porque ainda é nova e aprendiz, então precisa deixar que as enfermeiras mais velhas assumam a responsabilidade de cuidar de mim. E ver seu cabelo louro sempre preso em uma trança parecida com a de Katniss, me fazia ter vontade de ter tido uma irmã também.

 Tudo o que faço enquanto nem tenho ideia de como as coisas estão além do quarto do hospital, é pegar os velhos rascunhos de quando estava aprendendo libras e guardar na cabeça por não poder mexer tanto as mãos. Me distraía um pouco, quase me fazia esquecer do estado precário que me encontro, mas não apaga a vontade de acabar com minha vida mais uma vez —– um pouco mais cedo eu até pedi para que Prim colocasse as amarras, porque estava sentindo vontade de me machucar de verdade, só que ela ficou comigo me distraindo até que passasse, penso que ela não quer fazer isso para que eu não um animal como no dia anterior. Resisto a tentação de pedir para que Cressida me leve para passear, mesmo que fique me filmando a cada passo meu, mas sei que não posso implorar por algo assim. Faz apenas um dia que tentei fazer meu coração parar de bater, não é como se eu fosse me recuperar em segundos por conseguir dormir um dia inteiro.

A porta se abre me assustando um pouco, mas é a enfermeira dando uma olhada para conferir que eu ainda estava lá quieta na cama. Eu dou um sorriso para ela indicando que está tudo bem, ela me encara desconfiada, depois fecha a porta devagar. E suspiro revirando os olhos, já cansada de permanecer ali. O médico especial não veio hoje e, por estar ficando tarde, também acho que não vai arriscar vir conversar comigo. Pelo menos, tenho algo para contar a ele quando vier, a grande notícia de estar tomando os remédios e alguma história da minha infância, coisas que ele quiser saber sobre mim.

Como havia tomado banho mais cedo, às 22:00 já me encontro debaixo das cobertas. Não tenho alucinações, nada de imaginar que a Avox ruiva está me observando, minhas mãos nem tremem como antes... Certo, estou me sentindo uma estúpida por não ter tomado esses remédios de forma correta antes. Eu tinha uma visão errada sobre eles, até porque os tomava irregularmente, mas percebi que fazem um efeito bom sim depois de um tempo.

E antes de 00:00, estou dormindo como uma pessoa normal que nem sabe o que é pisar o pé em uma arena.

(...)

Acordar, tomar os remédios, almoçar, me certificar de ficar quieta o dia todo, tomar banho com a ajuda de Prim, jantar, voltar para a cama, tomar mais um remédio, olhar para o relógio até que eu adormeça sem perceber e repetir tudo de novo. Depois de dois dias nessa mesma sequência parece que estou, na verdade, revivendo o mesmo dia por conta da rotina. E o meu sentimento de querer me isolar, me esconder no escuro, manter a porta sempre trancada se transforma na vontade de sair andando pelos corredores, chamar todos para vir me ver ou até enfrentar o refeitório lotado de pessoas.

O médico especial não voltou desde aquele dia, o que me faz ficar um pouco preocupada, então não tenho como contar para ele que me alimentei muito e não estou mais tomando soro na veia, além de que meus pontos vão ser tirados amanhã e eu nem sinto mais tanta dor como antes. Fico surpresa ao ver que eu estava sentindo falta dele, ainda que continuasse difícil me esforçar em suas consultas.

Assim que são 20:40, alguém diferente abre a porta. Não é uma das enfermeiras rudes ou a doce Prim, mas sim Gale, e eu nunca me senti tão feliz em vê-lo como agora, principalmente quando me diz para colocar o roupão porque precisava me levar a algum lugar. Em menos de segundos já estou pronta, não me importando com a peruca bagunçada, esperando que ele leve logo dali, porém Gale pega uma cadeira de rodas do lado de fora do quarto e eu o olho meio incrédula; tento dizer que estou bem e consigo andar, até fico irritada por ele não me ouvir, repetindo que foram "ordens da presidente Coin".

—– Não sei como você ainda não morreu, sabia? —– brinca Gale rindo enquanto me empurra devagar para mim aproveitar o passeio.

—– Talvez eu seja um vaso muito ruim para que isso aconteça —– brinco de volta também rindo. —– Ou talvez eu preciso ficar viva para você me dar mais agulhadas inesperadas.

—– Até quando vai ficar com raiva de mim por isso? —– pergunta ele fingindo estar ofendido.

—– Até você me ensinar a caçar —– respondo inesperadamente, pois nem mesmo eu sabia da minha vontade em aprender algo assim.

—– Está bem, eu ensino, mas vai ter de prometer não morrer até lá —– diz ele e confirmo com a cabeça.

Ainda andamos mais um pouco, depois encontramos a sala que entrei a uns tempos atrás quando estava em pânico. Gale bate na porta, ouço a voz de Coin dizendo para ele entrar, e ele me coloca com cuidado lá dentro. Ele começa a se afastar e eu o olho desesperada, pedindo em silêncio para que pudesse ficar, mas a única resposta que tenho são de seus lábios me dizendo "não tenho permissão para entrar também". E me viro devagar, pensando que tudo vai dar certo se eu não falar sem ser intrometida.

—– Olá, Krystal —– cumprimenta ela se sentando perto de mim, mãos apoiadas na mesa. —– Como você está?

Não se faz esse tipo de pergunta para alguém que tentou se matar, respondo mentalmente, seria mais fácil se me perguntasse como eu não estou, presidente.

—– Estou bem, sinto que venho melhorando bastante —– respondo de verdade devagar, o sorriso enorme, sempre tentando ser o mais educada possível.

—– Fico feliz em ouvir isso —– diz Coin com um pequeno sorriso, o que faz meu coração acelerar. —– Como sabe, a equipe de filmagem gravou sua história. Nós a vimos e nos comovemos muito por tudo o que lhe aconteceu.

É claro que isso aconteceria, penso comigo mesma, por que passou pela minha cabeça que guardariam aquilo e não mostrariam a ninguém?

—– Ah, obrigada... —– digo abaixando a cabeça, logo a olhando mais uma vez. —– Eu queria agradecer pela hospedagem que tem me dado, desde que cheguei aqui. Os médicos, as enfermeiras... todos me tratam muito bem, eu me sinto em casa.

—– É um prazer tê-la aqui, tenha certeza disso —– anuncia ela e pega na minha mão, sou surpreendida e a mesma fica um pouco fria, mas não posso tirar porque vai ser desrespeito. —– Krystal, eu gostaria que soubesse que, quando vi a sua história, percebi como eu havia lhe julgado errado. Você sabe que já vem tentando fazer a diferença desde muito cedo, enfrentando toda a dor sozinha. Estamos todos lutando por uma mesma causa e eu gostaria que se juntasse também, participando dos treinos para poder se encaixar em algum esquadrão. Temos uma missão de acabar com a Capital e eu sei que, sem você, a revolução estaria incompleta. —– Congelo no instante em que vejo as lágrimas se juntando nos olhos dela, e não sei o que fazer. —– Por aqueles que você perdeu e tanto tentou proteger, saiba que aqui no 13 você estará sempre salva. E em qualquer esquadrão que entrar, tenha plena consciência de sua viagem de volta com vida.

Eu seguro a mão dela por cima da minha, quase penso em abraçá-la, mas não sei ao certo se tenho permissão para isso. Assim como quando eu e Finnick ficamos aguardando os soldados chegarem, novamente não faço ideia do que posso fazer para ajudá-la.

—– Não fique assim, se eu soubesse que minha história faria esse estrago eu teria contado de quando caí na lama enquanto ia para a escola —– peço a olhando com sobrancelhas erguidas de forma triste. —– Muito obrigada por tudo, eu prometo que tentarei entrar para os treinos e conseguir passar. Mas não chore, por favor.

Coin seca as lágrimas segundos depois, me dando seu típico meio sorriso. Ela diz algo engraçado sobre minha peruca azul extravagante, afirmando que algumas pessoas queria roubá-la por ser tão chamativa. Me recomenda voltar para o quarto sem tentar chamar os olhares curiosos somente para mim, confirmo com a cabeça sorrindo, porém algo em seus olhos me intriga...

Embora molhados e não sendo da mesma coloração dos do presidente Snow, eu reconheço aquele olhar que passa somente uma certeza: ela está mentindo para mim.

(...)

Quando tiro os pontos cerrando os dentes pela agonia, a primeira coisa que faço é pedir por munhequeiras pretas que possam tapar os dois sinais na vertical que ficaram. Sei que vão virar cicatrizes feias, então quero me previnir de ficar olhando antes que seja tarde. Para a minha surpresa o médico especial reaparece minutos depois, tão alegre e emocionado pela minha melhora que corre para me abraçar, e passamos um tempo conversando sobre coisas como remédios, traumas, pesadelos, alucinações, tentativa de suicídio e minha saúde mental inexistente. E depois de me parabenizar por ter me esforçado tanto, diz que só vai voltar na próxima semana para que eu possa continuar com a mesma rotina.

Assim que liberada para ir ao refeitório, já com as munhequeiras escondidas por baixo do uniforme e com a peruca presa em um meio rabo de cavalo, percebo que as pessoas estavam olhando para mim mais que o normal. Será que eu estava muito pálida, muito estranha? Ou será que é só impressão minha? Descubro que não é quando desço o elevador, encontrando um enorme pôster meu pregado no telão. Conseguiram achar uma imagem antiga minha no Centro de Treinamento, quando participei na primeira vez dos Jogos e ainda tinha um pouco de sanidade; não me recordo direito o que ocorreu naquele dia, mas na foto eu estava com o cabelo natural preso em um rabo de cavalo alto, as mãos nas costas segurando uma flecha, o sorriso de lado e a sobrancelha erguida. Aquela era a cara de deboche que eu tanto adorava fazer, na intenção de provocá-los. Abaixo da imagem, consigo ler a frase SEREIA REBELDE SE JUNTOU AO TORDO, SE JUNTOU À LUTA e não consigo deixar de me irritar pelo fato de não querer mais ser atendida por aquele apelido, além de terem feito isso sem o meu conhecimento.

Ainda estou com raiva quando me sento na mesa, quase jogando a bandeja com tudo fora. Tento me concentrar no que quer que seja que Gale ou Katniss falam, ou o que Johanna está reclamando ou o que Finnick tanto repete, mas fico tão concentrada pensando em quem poderia ter feito aquilo que a voz deles mal chega aos meus ouvidos.

—– Ontem vimos um filme seu, sabia? —– pergunta Finnick, chamando minha atenção. —– Achei que te conhecia porque fui seu mentor, porém depois de ver você contar tudo aquilo percebi como eu só sabia o seu nome.

—– Como é? —– pergunto de volta, sem entender nada. —– Está me dizendo que mostraram a minha história para todos no telão, aquele que tem um pôster meu agora?

—– Sim, você não sabia que fariam isso? —– responde ele e deixo o meu braço cair devagar em cima da mesa, sem acreditar. —– Aqui ninguém tem privacidade, Krystal. Sem esquecer que, como somos vitoriosos, é como se todos tivessem a liberdade de espalhar tudo sobre nossas vidas.

—– Bem legal a equipe de filmagem, não acha? E aí, não vai defender eles agora? —– provoca Johanna ao meu lado, sorrindo irônica. —– Achou mesmo que eles iriam te gravar e te mandar uma cópia quando voltasse para casa?

Sim, eu achei, respondo para mim mesma, mas não posso julgá-los nem por isso, porque sei que estão recebendo ordens para fazer o que é apenas o trabalho deles.

Há um momento em que todos se calam e ficam congelados olhando para frente, imagino que devem ter começado a pensar na vida e agora não sabem como voltar a realidade, porém ao me virar também fico no mesmo estado. Continuo com a cara feia até encontrar Peeta nos encarando, as algemas tão apertadas que suas veias ficavam expostas e a pele vermelha, os olhos vazios como se não entendesse por quê estamos todos reunidos e os guardas atrás de si denunciam a possibilidade de alguma melhora. Katniss engasga com a comida enquanto Gale tenta ajudá-la, e eu agradeço em silêncio por não ter decidido fazer uma trança logo hoje.

—– Oi, Krystal —– cumprimenta Peeta olhando para mim. —– Vi seu pôster, está bonito, é bom saber que estava mentindo para mim sobre não ter se juntado com essa bestante.

Suspiro odiando quem quer que foi que fez aquela porcaria, ainda mais por terem deixado ele ver.

—– É bom te ver também —– digo olhando entre o chão e seu rosto, e me recordo de algo que faz tempo que quero dizer. —– O bolo que decorou estava realmente lindo, eu até senti pena de comer para não estragar.

—– Mesmo? Muito, muito obrigado —– ironiza ele, quase rindo da minha cara. —– É bom que você tenha comido bastante, afinal se lembra de quando passamos fome por causa daquela que você está ao lado.

É inevitável não sentir uma certa vontade de chorar, então apenas abaixo a cabeça e me viro de novo para terminar de comer o que restou na minha bandeja. Não existe mais o velho e doce Peeta, apenas o amargo e irônico resultado do que a Capital havia feito com ele.

Ficamos minutos assim, um longe do outro, até que ele começa a surtar por causa de Katniss e quase vejo as algemas se quebrarem conforme ele avança sobre ela, Gale se coloca na frente e os guardas o levam de volta para o quarto arrastado, enquanto ele grita que sou uma mentirosa.

—– Bem, pelo menos ele está conversando mais —– diz Finnick depois que as coisas acalmam.

—– É, ele está ótimo para ser capaz de me dizer aquelas coisas... —– murmuro olhando para a mesa.

—– Krystal, sabe que aquele não é ele de verdade —– diz Gale, me fazendo erguer o rosto para ele.

—– Você não tem culpa de nada, Peeta que ainda está com a cabeça fraca demais —– consola Johanna, dando de ombros. —– Aposto que ele diria a mesma coisa ou até pior se visse um pôster nosso igual ao seu, então não ligue para isso.

Eu sorrio e por um segundo me pergunto como ninguém mencionou o fato de eu ter tentado me matar a alguns dias atrás, imaginando que me fariam mal se perguntassem algo, mas quando me levanto e pego a minha bandeja vazia, todos me entregam folhas —– até mesmo a silenciosa Annie —– e tudo o que vejo escrito de primeiro é "motivos para viver". Não entendo o por quê disso, mas Finnick me aconselha a ler um a cada noite e reler se eu me sentir muito mal, e logo penso no que cada um deve ter colocado para mim não querer ver a morte antes da hora. E eu os agradeço de verdade, quase começando a chorar e vou embora tentando não me importar com meu pôster gigantesco.

São 21:00, hora de tomar o remédio para dormir. Prim não veio mais me ajudar e começo a sentir a falta dela, com sua presença leve que transmitia paz. Já estou de banho tomado desde mais cedo, então tiro a bota e vejo as cartas na minha mão. Cada letra é mais bonita que a outra e não sei qual ler primeiro, mas um pedacinho cai quando abro a de Katniss. Um papel rasgado, uma letra trêmula. O remetente é Peeta.

Porque você é minha amiga

E eu caio no choro, não sei se de emoção ou de tristeza pelas coisas que ele havia me dito, porém preciso me recordar de que aquele não é ele e o Peeta que conheço não diria nada daquilo para mim. Esse é o motivo principal para permanecer viva, porque eu sou amiga dele.


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