Estilhaços escrita por Artemis Stark


Capítulo 1
Capítulo 1




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Ele via seu rosto multifacetado no espelho rachado à sua frente. Diversos pedaços que se desfaziam partindo do ponto de impacto. O ponto que sua mão chocou-se violentamente. Ignorava o sangue que caía sobre a pia, assim como ignorava a dor que latejava. Quantos espelhos já tinha quebrado? Muitos. Tinha tanta vergonha e raiva por olhar-se. Por ser quem era. Sou Draco Malfoy e que merda isso importa?

Depois se lamentava, pois quebrando o espelho apenas via mais de si. Mais pedaços de si mesmo e essa era a merda de realidade em que vivia. Que sempre vivera. Diversos pedacinhos de si impossíveis de serem encaixados sem deixar marcas, sem deixar cicatrizes. Às vezes mágica não era suficiente. Mesmo sendo um sangue puro.

Apoiou as mãos na pia e soltou a cabeça para baixo, fechando os olhos com força e escondendo a enorme vontade de chorar como acontecia em alguns momentos. Angústia. Aquele lugar se tornou um espaço para esconder-se. Era o que fazia melhor: fugia. De si. De todos. Lá onde quinze anos antes chorou pela primeira vez, onde sentiu uma dor lancinante ao ser atingido pelo feitiço de Potter. Imbecil.

Aquele nó na garganta. Nó das coisas não-ditas. Escondidas. Engolidas e não digeridas. Porra.

Era 02 de maio, o que representava mais uma comemoração em Hogwarts pelo fim da guerra. No entanto, sua guerra nunca chegara ao fim. Os alunos estavam animados com a celebração. Visita do Potter. Do Weasley. Da Granger. Aliás, dela não. Ela sempre estava lá. Todos os dias para piorar seu tormento. Piorar a sua guerra. Maldita sujeitinha de sangue ruim.

Em um tempo em que o sangue não deveria significar mais nada para ele, era nesse sangue impuro que ele se pautava para viver. Era isso que precisava, não era? Odiar aquela menina. Não, agora era uma mulher. Odiar aquela mulher que representava todo o quebra-cabeça que sua vida se tornara. Ele precisava disso, não precisava? Precisava odiá-la, não? Mas eu não te odeio, Granger.

Não, não precisava.

Precisava odiar a si mesmo.

E odiava a si mesmo. Odiava por que a queria absurdamente. E Draco não estava acostumado a querer e não ter.

E lá estava ela. Tão impura que não o aceitava. Claro que não.

Encarou mais uma vez os pedacinhos da sua imagem distorcida. Sua vida toda fora uma distorção.

Olhou o reflexo partido e percebeu que mais um rosto distorcido estava lá. Olhando-o. Castanho fracionado. Era ela.

— Malfoy? Você está bem?

Desde que começaram a trabalhar em Hogwarts mantinham uma conversa civilizada. Ele nunca a agradeceu por ajudar a resgatá-lo da Sala Precisa. Ela o agradeceu por ele não entregar Harry em sua mansão.

— Obrigada por não confirmar que era Harry... Por parecer em dúvida – ela falou anos antes, quando ficaram a sós na sala dos professores.

 

— Eu realmente estava em dúvida – ele mentiu.

 

— Dúvida? – Hermione perguntou, inclinando levemente a cabeça.

 

— O rosto estava bem deformado. Eu não tinha certeza. – Mentiu novamente, olhando para alguns pergaminhos.

 

— Só que você conhecia Ron e eu. Nossos rostos não estavam deformados.

 

Não havia mentira para essa constatação tão óbvia.

 

Ele não sabia responder a agradecimentos sinceros.

 

Levantou-se e saiu sem ver o sorriso discreto nos lábios dela.

 

Ficou em silêncio. O que responderia?

A verdade era doída demais para ser dita em voz alta.

O que diria? Que era por ser um covarde?

— Estou bem, Granger – ele respondeu. Mentindo, claro. Ligou a torneira e lavou a mão, então Hermione percebeu que ele sangrava.

— Você está sangrando – viu pelo reflexo que ela se aproximava. Diversos pedaços partidos de Hermione.

— Eu posso me curar sozinho – podia, mas tinha um porém. Ele era destro.

— Você não é bom realizando feitiços com a mão esquerda e é sua mão direita que está sangrando. Eu te ajudo – ele ainda de costas. Pedacinhos de Hermione. Queria não ter quebrado o espelho para vê-la sem aqueles traços estranhos de imagem distorcida.

— Eu me viro, Granger. – Falou, disfarçando o orgulho ferido pela verdade que ele dissera há pouco.

Agora ela estava ao lado dele. Draco olhou-a agradecendo internamente por ver o rosto sem estar partido. Ela puxou a sua varinha e apontou para o machucado lançando um feitiço não-verbal. Ele lamentou por isso, pois queria ouvir a voz dela.

Depois ela consertou o espelho.

— Você detesta essa festa, não? - Ele era tão óbvio assim? - Por quê?

— Por que o quê? – ele perguntou querendo fugir da resposta. Estavam próximos. Ela estava bonita. Como sempre.

— Por que não gosta de comemorar o fim da guerra?

— Não gosto de comemorações, Granger. Daqui a pouco é o showzinho do Potter, não? Aliás, de vocês três...

Conversa civilizada não era o mesmo que o fim das provocações. Como Draco viveria sem provocá-la se essa era a única maneira de tê-la?

— Sabe que não é nossa escolha – ela afastou-se. Draco sentiu um vazio – Já pedimos para o Ministério que parassem com isso.

— Aposto como o Potter adora e se quisesse realmente que o Ministério parasse com isso, daria um jeito. E o Weasley, então? Pelo menos um dia por ano a vida dele tem algum sentido.

— E o meu papel nisso tudo? – ela perguntou voltando a se aproximar e ignorando os insultos lançados aos seus amigos. Hermione tinha os braços cruzados, fazendo com que seus seios ficassem um pouco mais empinados. Uma sobrancelha erguida, como em tom de desafio. Draco olhou-a com intensidade analisando todos os traços do rosto que conhecia tão bem. – Você falou de Harry e Ron... para você, como me encaixo nesse teatro?

Descruzou os braços e fez um gesto com a mão, incentivando que ele falasse e depois repousou as duas mãos na cintura. Olhava para cima, encarando os olhos cinzas e Draco sentiu o coração acelerar levemente diante daquela imagem. Deslumbrante.  

— Apenas para mostrar para a sociedade bruxa que sangues-ruins podem servir para algo. – Ele se arrependeu assim que as palavras se formaram em seu cérebro e saíram pela boca alcançando os ouvidos dela. Leu nos olhos castanhos a decepção, porém não falou nada. Ele odiava quando ela não falava nada. Contradição. Antes odiava quando falava.

Hermione deu um passo para trás. Virou-se e caminhou pisando pesadamente. Saiu do banheiro sem ouvir o som do espelho sendo estilhaçado novamente.

—--

Quando foi para o Grande Salão, Potter já discursava. Ignorou o olhar repreendedor de Minerva, diretora de Hogwarts. Sentou-se no lugar que estava reservado para os professores.

Queria quebrar a cara do Potter.

Não.

Queria quebrar a cara do Weasley. Hoje casado com uma jogadora de quadribol, o ruivo pobretão já tinha namorado Hermione. Um Weasley pobre e sem graça teve algo que um Malfoy não teve. Não tinha. Aquilo era ofensivo. Ultrajante.  

Madame Pomfrey o olhou irritada. Não gostara nada de ter que sair do Salão instantes antes para curar sua mão.

Você não é bom realizando feitiços com a mão esquerda e é sua mão direita que está sangrando. Eu te ajudo.

 

Ela o ajudara e ele a humilhara. E com palavras falsas.

Sua vida era falsa.

Só seu sentimento por ela era verdadeiro. Merda de vida.

Quando o baile começou, os alunos dançavam e cercavam o trio... Ele observou-a de longe. Sempre sorrindo, mas com tristeza nos olhos. Ainda de longe viu quando Harry a puxou e perguntou algo, ela assentiu mexendo a cabeça. Ele não pareceu ter acreditado, então a abraçou.

Sim, queria quebrar a cara do Potter.

Depois das 22 horas, os professores tinham autorização para sair do castelo e comemorar o fim da guerra. Geralmente os mais novos iam. Hagrid era um dos poucos professores mais antigos que compareciam ao Três Vassouras. Draco nunca ia, mas naquele dia ele mudou de ideia.

Hermione não saía de perto de seus amigos.

O bar estava cheio, mas havia uma mesa reservada para os professores de Hogwarts. Apesar de não serem professores da Escola, Potter e Weasley tinham seu lugar garantido. Claro. Por esse motivo estava sentado em outra mesa, observando o grupo de longe com seu tradicional copo de uísque na mão.

Nunca conseguira se entender com os dois. Jamais conseguiria.

— Como puderam julgar você inocente?

 

— Não fui julgado totalmente inocente, caso não tenha percebido, pobretão. Ahhh, claro que não percebeu. Precisa que a Granger, uma sangue-ruim, traduza as coisas para você, não?

 

— Não fale assim dela – Ron aproximou-se do loiro. A varinha apontada para o adversário.

 

— Deixe isso para lá – Hermione falou tentando controlar os ânimos.

 

— Você deveria estar em Azkaban. Acabar sua vida lá como o covarde do seu pai – Ron continuou.

 

— Pare, Ron! Vamos embora. – ela tornou a falar puxando o então namorado.

 

— Eu ajudei vocês, seu filho da puta! – Draco falou aproximando-se. Sua varinha já preparada.

 

— Por covardia! – vendo que os ânimos não se acalmavam, Hermione se pôs entre os dois rapazes. Sim, rapazes. Tinham apenas 18 anos. Jovens demais. Ficou de frente para Rony que olhou para baixo. Hermione parecia tão frágil entre os dois, tão pequena. Foi o primeiro a baixar a varinha. Lançou um último olhar de raiva para Draco e saiu puxando a namorada pela mão.

 

Em determinado momento, ela afastou-se da mesa e foi até o balcão. Ele foi atrás. Não foi ensinado a desculpar-se. Mesmo sabendo que precisava, não conseguia.

— Eu não penso aquilo que te falei.

Ela o olhou interrogativa. Ele gostava daquele olhar. Do que ele não gostava nela? Tantas coisas. Mas nela, tudo aquilo que não gostava, se harmonizava.

Draco jogou o cabelo para trás. Bebeu um gole do seu uísque. Apenas as vozes dos outros ao redor deles.

— Não acho que participe desse teatro por causa do seu sangue – ele falou, depois de um tempo. Hermione o olhou. Draco encarava o vazio e Hermione sabia que aquilo era uma forma de desculpa. Não conseguiria mais nada dele.

Quando o rumo da conversa na mesa onde estava sentada foi a caça às horcruxes, quis apenas sair de lá. Afastou-se da mesa com a desculpa de pegar uma bebida, apesar de ter garçons servindo. De forma alguma esperava que Malfoy falasse com ela, nem esperava que ele estivesse lá. O atual professor de poções nunca aparecia nas comemorações mais do que o necessário. Viu que Draco apenas bebia seu uísque, ainda com o olhar perdido. Sozinho. O bar estava repleto de alegria. Só não havia alegria em Draco Malfoy. Ela também não estava completamente feliz. Sentou-se e ele imitou seu gesto.

— Por que acha que faço isso? – ele virou a cabeça o suficiente para encarar o perfil dela. Hermione também olhava o nada. O som atrás deles era entediante. Radiante demais. Sufocante demais para Draco.

— Pelos seus amigos – ele decretou. Sim, era um decreto. Era por eles. Tudo era por eles. Por Potter. Por Weasley. Queria socar os dois. Lançar alguma maldição. Ela virou-se para o loiro.

Se fosse possível, tinha a pele mais clara que quando novo. Não era exatamente bonito. Mas austero. Alto. Magro. O nariz afilado. Os lábios finos e bem desenhados. Tudo nele era como uma sinfonia tocando a mais perfeita música. Os movimentos pareciam ensaiados e a fala pensada antes de ser dita. Era diferente de Rony. Ou de Harry. Os cabelos extremamente claros não eram mais fixados por gel. Viviam caindo nos olhos. Uma perdição para Hermione. Tudo se fundia em seus olhos cinzas. Tantos matizes de cinza em um único par de olhos. Ele era bonito.

Draco era um quebra-cabeça impossível de se resolver.

— Você nunca celebra o fim da guerra – ela afirmou.

— Não estou aqui para celebrar nada, Granger.

— Eu quis dizer que você nunca esteve aqui para celebrar o fim da guerra. Por que veio hoje?

— Merlin, Granger... Achei que você gostasse de responder, não de fazer tantas perguntas. – Então, inesperadamente, Hermione riu. Claro que ela estava feliz pelo fim da guerra, mas não gostava daquilo. Muitos tinham morrido e, mesmo tantos anos depois, ainda tinha pesadelos... Porém, aquela pequena frase debochada de Draco Malfoy a fez rir. De alguma forma aquilo a lembrou seu primeiro ano em Hogwarts, quando Voldemort era apenas um futuro distante e sua preocupação era ter amigos naquele novo mundo que acabara de entrar.

Draco ficou espantado com aquela inesperada risada, porém não pôde conter um pequeno sorriso ao ver Hermione Granger, ao seu lado, rindo de algo que falara. Algo que anos antes, muitos anos antes, renderia uma azaração. Tomado de uma coragem pouco vista em sua vida, Draco Malfoy reclinou-se, sua boca a milímetros da orelha dela:

— Eu vim hoje porque queria ver você. – Obviamente aquela frase, aquele desabafo, aquela declaração... Aquela confissão fez com que Hermione parasse de rir. Então, para Draco, não havia mais o som contagiante da risada dela, apenas o burburinho irritante das pessoas no bar.

— Malfoy... – O loiro segurou o copo com mais força. Ele já tinha pensado que queria socar Weasley aquela noite? – Tudo bem por aqui, Hermione?

— Não, Weasley... Na verdade esses anos todos eu apenas fingi ser um dedicado professor de poções, também fingi ser um aliado da porcaria da Ordem dos Bostas e agora estou aqui, como novo herdeiro de Voldemort, tentando sequestrar a Granger. Posso até mostrar minha marca... é uma doninha. – Hermione colocou sua taça em frente dos lábios para que seu amigo não visse o sorriso que surgiu.

— Parece que os anos passam e você não muda, Malfoy. Venha, Mione. – O ruivo esticou a mão, mas Draco voltou a falar, depois que virou seu copo de uísque e colocou-o sobre o balcão.

— Os anos passam e você não muda. Você que continua com esse ódio em relação a mim, ao que eu fui, ao meu passado. – Draco deu um passo na direção do homem que falava com ele, ambos tinham uma altura semelhante e já começavam a chamar atenção. – Vá se foder, Weasley. – Dizendo isso, afastou-se deixando seu ombro trombar propositalmente com o ruivo. Hermione conteve o amigo, segurando-o pelo punho.

Draco saiu na noite fria ajeitando sua capa e envolvendo ainda mais seu pescoço com o cachecol. Merda. Andava a passos largos, andava com raiva. De si mesmo, do Weasley... menos raiva dela. Um sorriso inesperado apareceu no rosto alvo ao se lembrar da risada dela. E não era qualquer risada, era uma risada que surgira por algo que ele dissera.

Naquele momento sentiu novamente raiva de si mesmo por ter parado de fumar. Precisava urgentemente de um cigarro... Talvez encontrasse algum perdido em seus aposentos em Hogwarts. Olhou para o céu, alguns fogos ainda iluminavam a noite com poucas estrelas. Comemorar o fim da guerra era também lembrar-se de tantos mortos. Seu pai morreu em Azkaban e sua mãe... Uma maldição que Voldemort lançou quando descobriu que ela mentira.

Quando olhou o contorno do castelo no horizonte é que pareceu notar que tinha parado de andar, nem havia percebido. Balançou negativamente a cabeça, xingando mentalmente a aparição do Weasley. Eu vim hoje porque queria ver você. Retomou seus passos.

— Que bela merda, Malfoy – falou em voz alta, então estancou no lugar, pegando rapidamente sua varinha ao ouvir passos rápidos atrás de si. – Lumus! – Mas o que iluminou quem chegava não foi seu feitiço, foram novos fogos de artifícios colorindo Hermione em cores multifacetadas. – Granger?

— Puta merda... Por que vocês têm que ser tão altos? – Ela colocou a mão no peito, num gesto claro que precisava recuperar a respiração.

— Granger, que porcaria andou bebendo? Deve estar fazendo 5 graus e você está correndo descalça!

— Desculpe, mamãe – Ela respondeu irônica andando até ele. – Não consigo correr usando saltos. Que foi? – Perguntou ao ver a expressão dele, uma expressão que não conseguiu decifrar.

Draco olhou para Hermione, as cores fracionadas em seu rosto, mudando de cor. Talvez não fosse tão ruim vê-la assim, beleza fracionada. Respondeu de forma óbvia, como se não estivesse pensando na beleza dela:

— Você é professora de transfiguração, Granger. – Então Draco sorriu, por que, por mais colorido que estivesse o rosto dela, o vermelho dominou. Rapidamente Hermione pegou sua varinha e fez um rápido feitiço nos sapatos que estavam em sua mão, quando os calçou os dois continuaram o caminho até Hogwarts em um silêncio confortável.

— Preciso beber um uísque – Draco olhou para ela, pois nunca tinha visto Hermione Granger beber nada além de vinho ou cerveja amanteigada. Dessa vez, não conseguiu ocultar sua surpresa – Que foi? Não bebo apenas vinho, Malfoy. A sala dos professores deve estar vazia... Nos encontramos lá... Preciso também tirar essa porcaria de vestido.

Draco observou que ela deveria estar realmente acostumada com amizades masculinas para falar tão livremente sobre tirar vestido, mas aquilo era algo totalmente novo para ele. Quando uma mulher falava sobre tirar vestido, era apenas...

— Está tudo bem, Malfoy? – Draco não percebeu que havia fechado os olhos, mas percebeu que seu corpo reagiu não só àquela simples frase, mas também à mão dela sobre seu ombro.

— Sim. Estou bem, Granger. Estarei lá em 15 minutos.

Draco caminhou para o banheiro antes conhecido como o “banheiro da Murta”. A fantasma havia desaparecido, depois da morte de Voldemort.

Ainda via seu rosto multifacetado no espelho rachado à sua frente. Diversos pedaços que se desfaziam partindo do ponto de impacto. Aquela era sua real imagem, não era? Deixou novamente a cabeça pender para baixo, respirando profundamente. Granger tinha mesmo ido atrás dele e agora marcara um encontro para beber uísque na sala dos professores? Preciso tirar essa porcaria de vestido.

 

Doze anos antes, quando aceitara o cargo de professor de poções, aceitara por covardia. Não queria um cargo no ministério, não queria ficar perambulando pelas ruas do Beco Diagonal ou Hogsmead. Queria ficar sozinho e aquela era a melhor escolha. No entanto, tudo virou de cabeça para baixo quando Granger aceitou ser a nova professora de Transfiguração.

 

— Eu acompanhei ambos na época que eram estudantes... – Draco cruzou os braços, irritado por aquela conversa. – E sei as desavenças entre os dois....

 

— Desculpe, Diretora, não somos mais alunos... Ambos temos quase 30 anos. – Draco levantou-se, ignorando o olhar reprovador de McGonagall. – Bem-vinda a equipe, Granger.

 

Voltou seu olhar para sua imagem fracionada. A presença constante de Granger tornara-se uma lembrança presente do seu passado, das suas escolhas, dos seus erros. Você é um covarde, Malfoy.

 

Abriu a torneira e ficou alguns segundos observando a água escorrer, depois jogou-a no rosto, na nuca, em seus cabelos. Respirou fundo. Está fodido como sempre, Draco.

Quando abriu a porta da sala dos professores, encontrou-a sentada de forma despojada, sem ter percebido sua presença. Os pés com uma meia escandalosamente colorida e feia repousava sobre a grande mesa central, ao lado da garrafa de uísque já aberta. Ela usava calça legging preta e uma camiseta de quadribol da Grifinória.

— Essa não é a camiseta de goleiro. – Ele afirmou, entrando na sala e fechando a porta atrás de si. Pegou um copo em uma das prateleiras e serviu-se de uísque.

— Não, não é. – ela sorriu e Draco continuou olhando, sem entender.

— O Weasley era goleiro.

— Sim, Malfoy... Mas digamos que os Weasleys não se limitam apenas ao Rony, não é? Molly e Arthur souberam fazer filhos bonitos, exceto Percy, por Merlin... – Hermione riu do olhar chocado de Draco.

— Você teve um caso com o irmão do seu namorado, Granger? – Havia julgamento naquela indagação, um julgamento que Draco não conseguiu disfarçar.

— Claro que não, Malfoy! Fiquei com Fred depois que eu e Ron terminamos. Foi algo passageiro...

— Mas é a camisa dele que está vestindo...

— Não quero ficar falando sobre meus relacionamentos amorosos e sexuais, Malfoy.

O loiro bebeu um grande gole da sua bebida e começou a andar de um lado para o outro. Parou de repente, notando que Hermione o observava calada. Não pôde deixar de notar que a camisa, grande demais para ela, caía pelo ombro, revelando a alça de um sutiã preto. Fechou os olhos com força, sentindo, de repente, uma dor forte na mão e na cabeça.

— Se continuar quebrando espelhos sua mão nunca vai cicatrizar.

Draco abriu os olhos e viu que ela estava em pé, perto de si. O copo em sua mão e a atenção dela voltada para a mão dele, que também segurava o copo de uísque.

— Quebrar espelhos... Se ferir... Te ajuda em algo, Malfoy? Eu gosto de beber uma dose de uísque antes de dormir... Nem sempre funciona. Quebrar espelhos te ajuda?

Draco não respondeu, pois não sabia o que responder. Na verdade, não tinha o que responder.

— Nada me ajuda, Granger – desabafou depois de alguns goles de uísque. Olhou para ela, ainda mais baixa perto dele agora sem os sapatos altos. Viu que ela se recostou sobre a mesa, ainda olhando para a mão com pequenas cicatrizes. – Essa meia é horrível.

— Eu sei... Gosto de usa-la... Sabe quem fez para mim? Dobby – Hermione respondeu sem dar tempo para ele falar alguma coisa.

— Isso é algum tipo de provocação, Granger? Acha que eu não sei que ele está morto por causa da merda da minha tia?

— Claro que eu sei, Malfoy... Você estava lá, não estava? – ela levantou-se e colocou o indicador com força no peito dele – Mas você se importa? – Draco virou o conteúdo de uma vez e depois jogou o copo contra a parede. Empurrou a mão dela e aproximou-se um pouco mais.

— Eu me importo, Granger, mas de que adianta essa merda de sentimento? Não vai trazer o elfo de volta, não vai trazer minha mãe de volta, tampouco seus pais e nem vai apagar merda nenhuma que aconteceu. – Hermione pegou sua varinha e com um floreio juntou os pedaços de vidros estilhaçados, virou-se e pegou a garrafa sobre a mesa. Draco acompanhava todos os movimentos dela, observando todos os detalhes daquele corpo de sangue proibido. Ela encheu os dois copos e entregou um para ele.

— Por que foi atrás de mim?

— Eu posso fazer a mesma pergunta, Granger. – Hermione sorriu novamente e Draco, tão perto dela, não pôde evitar fazer o mesmo.

— Tem razão, Malfoy, mas perguntei antes.

— Responda antes, então... – Hermione bebeu um gole de uísque.

— Ron foi injusto com você. Ele e Harry... Bem, eles não conseguem superar as diferenças do passado, nem que você foi o responsável pela entrada dos Comensais no castelo... Sabia que o irmão de Rony foi atacado por Greyback? Claro que você sabe...

— Você não pensa como eles. – Draco observou como a cor do uísque era um tom mais claro que os olhos dela. Como nunca tinha reparado nisso?

— Não... Tudo teria sido bem diferente se você tivesse nos entregado para sua tia, para Voldemort. Sua mãe nos ajudou... E se você não tivesse revelado os esconderijos dos comensais muitos teriam escapados... – Os dois se olharam – Inclusive seu pai.

Draco virou de costas para ela e passou a mão pelos fios que ainda estavam úmidos. Respirou fundo, lembrando do final da guerra, quando procurou por ela.

— Granger... – A varinha dela tremia na mão, enquanto Draco guardava a sua. – Posso ajudar vocês, não pude antes... Mas posso agora... Potter vai matar Voldemort e os comensais vão fugir... Posso entregar todos os esconderijos que conheço, todos os planos ainda não realizados...

 

— Malfoy, não posso acreditar em você... Eu não posso... Eu não consigo... – O rapaz olhou para um ponto atrás dela.

 

— Draco, - a voz de Rookwood se fez presente – leve a sangue ruim até o salão... Potter vai se entregar ao ver que temos a amiguinha dele... Abaixe a varinha. – Porém Hermione não abaixou, então ela viu Draco pegando a própria varinha e apontando-a para seu peito. Então tudo foi muito rápido... Ele desviou a varinha para o bruxo mais velho e um jato verde fez com que Rookwood voasse longe e caísse morto.

 

— Acho que agora você pode acreditar em mim.

 

— Granger, eu não me arrependo do que fiz... Não disso, pelo menos.

— Você ainda precisa responder minha pergunta.

— Sim... Preciso... – Draco virou-se novamente. – Sei que não confia em mim, mas viria até meus aposentos?

— Seus aposentos? Por quê? – Indagou, desconfiada.

— Quero te mostrar uma coisa... Leve a garrafa de uísque. – A sala era circular com diversas portas e cada uma delas levava para os aposentos dos professores e professoras. Draco aproximou de uma que continha um caldeirão e murmurou a senha, abriu a porta e ficou segurando, esperando por Hermione. Ela mordeu o lábio inferior, pensando no que fazer, porém acabou pegando a garrafa de uísque e passou por Draco. O corredor era estreito e iluminado por alguns archotes. Andaram em silêncio até chegar em outra porta. Ouviu a voz dele perto de si e arrepiou-se – Preciso falar a outra senha, Granger.

Hermione foi para o lado, deixando-o passar e Draco novamente murmurou outro feitiço, segurando a porta para que ela passasse. O quarto dele era bastante parecido com dela, mas com cores mais sóbrias. Havia apenas um porta-retrato em que um Draco ainda novo estava abraçado com sua mãe. Hermione sorriu diante daquela lembrança, colocou a garrafa sobre a mesa e pegou a fotografia.

— Cuidado com isso, Granger. É a única que tenho.

— Impossível, Malfoy!

— Possível quando seu pai é Lucio e queimou todas as fotos de família. Olhe... – Hermione olhou para onde ele apontava. Um grande espelho rachado também. – É assim que me vejo, Granger. Não consigo olhar para mim mesmo depois de tudo que aconteceu. E fui atrás de você por que representa tudo aquilo que eu poderia ter sido, tudo aquilo que eu sempre quis ser, mas nunca tive coragem...

— Malfoy... – Hermione aproximou-se dele, sem entender – Do que está falando?

— Sirius Black sabe o que é ser criado para odiar nascidos trouxas, mas Sirius Black conseguiu escapar da família... Eu não. As cicatrizes na minha mão não são nada, Granger.

— Você não é o único com marcas, Malfoy.

— Algumas marcas não são visíveis, Granger. – Draco voltou até a mesa e encheu seu copo. Sempre se sentia vazio quando se afastava dela. – Eu sou assim, Granger. Uma merda de espelho estilhaçado que nenhuma magia pode arrumar.

— Malfoy, - Hermione perguntou, sem sair do lugar – Por que queria me ver? Nos vemos todos os dias. – Dessa vez foi ele que se aproximou, parando a alguns passos dela.

— Não é desse ver que estou falando... – Então Draco ousou colocar um fio cacheado dela atrás da orelha. Hermione não o afastou – É ver que seus olhos parecem com a cor do uísque, sua risada é um som inesquecível, sutiã preto combina com seu tom de pele, mas... definitivamente... uma camiseta verde cairia muito melhor que essa que está usando.

— Malfoy... Eu... – a mão dele soltou-se do cacho e foi deslizando lentamente pelo rosto dela, até interromper o contato. Vazio.

— Eu sei o que vai falar. Sei quem sou eu e o que represento para você... Estou tão quebrado, tão fudido,...

— Cale a boca, Malfoy – e Hermione acabou com a pouco distância que os separavam, sua boca indo diretamente até a dele. Draco não demorou para reagir, não quando senti-la daquela forma era seu maior desejo. Sua mão livre a puxou pela cintura, andou de forma cambaleante até a mesa e depositou seu copo. Afastou-se brevemente e fez o mesmo com o copo dela. Voltou a beijá-la, novamente sua mão na cintura, a outra na nuca dela. Granger, seu maior desejo. Seu maior medo.

Seu maior medo. Afastou-se de repente, respirando rapidamente. Uma respiração rápida e curta.

— Granger, você não sabe o quão fudido estou. Não sabe o quão quebrado, estilhaçado...

— Você não é o único, Malfoy. Cada um teve sua parcela de sofrimento, de dor, de morte, de marcas que jamais serão curadas.

— Eu sei, Granger... Ao mesmo tempo... Trazer você para isso, para meu mundo...

— Eu já estou nesse mundo,... Já fui torturada, ameaçada, abusada,... Marcas que não tornam meu corpo bonito, mas é quem sou. Quem você é.

— Abusada? – Draco fechou os olhos com força, lembrando-se daquela noite na mansão que vivia, das conversas dos comensais... Achava que não passavam de ameaças para Potter e Weasley ouvirem... Claro que não. E, assim, mais uma marca nascia dentro de si.

— Draco – ele olhou-a ao ouvir seu nome, então Hermione apontou para o espelho – Esse não precisa ser você... – ela puxou a blusa que usava e  apontou a varinha para seu corpo, fazendo com que um feitiço revelasse suas cicatrizes – Sua tia, – apontou para o braço – Dolohov, – passou o dedo pelo peito – casa de Batilda Bagshot – pequenas marcas pelos ombros e pescoço – E tantas outras que, assim como você, são invisíveis aos olhos.

O homem ficou parado, olhando-a. Depois fitou o espelho quebrado onde via a imagem distorcida de ambos, pequenas imagens que se complementavam e se perdiam. Encurtou a distância entre os dois, puxando-a para si, sentindo o corpo quente dela contra o seu. Ainda estava vestido formalmente, como sempre. Sentiu a mão dela afrouxando a gravata, suas bocas relutando para não se separarem, mas precisavam mais que lábios, boca e língua... Precisavam sentir aqueles corpos marcados, feridos. Fracionados. Estilhaçados. Os lábios dela beijaram o queixo, o maxilar, subindo até a orelha. Estava na ponta dos pés e sentia a mão dele firme em sua cintura. A respiração dele sobre si.

— Se não fosse um sonserino covarde – Hermione disse, num sussurro próxima a orelha dele, fazendo com que o loiro se arrepiasse – podíamos ter feito isso anos atrás... – Draco riu, como poucas vezes acontecia. Há quantos anos não ria?

— Se fosse uma grifinória corajosa – Ele rebateu, puxando-a para seu colo, fazendo com que Hermione envolvesse suas pernas na cintura dele – podíamos ter feito isso anos atrás.

— Um ponto para você, Draco... – Hermione voltou a beijá-lo e sorriu quando sentiu seu corpo cair na cama e ele sobre si.

— Isso não é novidade, Hermione... – olharam-se com intensidade e ele ficou sério – Não sei exatamente o que sinto, mas sei que preciso de você. Agora.

Ela o puxou pela nuca, fazendo com que os lábios se encontrassem novamente. Eram beijos, toques, carícias, afagos, línguas, mãos, peles, cicatrizes,... As roupas iam se espalhando pelo chão, enquanto eles iam juntando pedaços quebrados de si mesmo sem ao menos notar.

Draco acordou sentindo o peso da cabeça de Hermione sobre seu peito e a respiração dela roçar conta sua pele. Ajeitou-a sobre os travesseiros, ela murmurou algo incompressível, levantou-se e encarou o espelho partido. Ele via seu rosto multifacetado no espelho rachado à sua frente. Diversos pedaços que se desfaziam partindo do ponto de impacto. Porém, um pequeno pedaço começa a se juntar. Deixando marcas, claro. A linha fina da junção de destinos improváveis.

Olhou para o corpo nu de Hermione deitada nos lençóis escuros. Odiar aquela mulher representava todo o quebra-cabeça que sua vida se tornara. Ele precisava disso, não precisava? Precisava odiá-la, não? Mas eu não te odeio, Granger. Não ele não odiava. Aquela manhã, sentindo o cheio dela em seu corpo misturado com seu próprio cheiro, percebeu que ela era a peça, a pequena peça, que faltava para completar sua vida.

—--

Uma nova comemoração do fim da guerra e Draco novamente no banheiro. O espelho ainda rachado, mesmo depois de tantos meses ele via seu rosto multifacetado no espelho rachado à sua frente. Diversos pedaços que se desfaziam partindo do ponto de impacto. O ponto que sua mão se chocou violentamente. Então pegou sua varinha e consertou o espelho.

— Você vem?

A voz dela o tirou dos seus pensamentos. Fitou-a através do espelho, agora inteiro, com um sorriso no rosto. Ela aproximou-se entrelaçando seus dedos aos dele... Olharam-se cumplices, agora sem o auxílio do espelho. Castanho no cinza... Os lábios dela desenharam um fino sorriso antes de se aproximarem dos dele. Sentiu-se diferente de todas as vezes anteriores em que estivera naquele banheiro. Seu coração deu um salto e internamente ele agradeceu-a por isso. Sentia-se vivo pela primeira vez em muito tempo.

—Sim. - Uma resposta simples ao se separarem. -Eu vou aonde você quiser que eu vá...

Ela alargou ainda mais o sorriso e ainda de mãos dadas saíram pelos corredores com suas capas esvoaçando levemente, deixando para trás aquele específico banheiro de uma vez por todas...

Draco Malfoy deixou para trás também o espelho remendado, pois não havia mais estilhaços em sua vida. Não mais.


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Notas finais do capítulo

Essa short está parada há tantos anos! Insspiração veio e resolvi terminar. Sei que algumas coisas super seriam possíveis de serem mais desenvolvidas, mas é uma one com poucas páginas e juro que não posso me compreender com uma long!
Bjs bjs, Ártemis!

Valeu, Maris e Ju!!!! Amo vcs!