A princesa proibida escrita por Helena Melbourne


Capítulo 29
A profecia de Rafiki




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(I’m streched on your grave – Kate Rusby)

A ala hospitalar estava amontoada de homens feridos, crianças chorando e mulheres nobres, que nunca trabalharam antes, tentando cuidar dos machucados daqueles que participaram da batalha. O cheiro de defuntos, álcool, enxofre e fumaça era nauseante para qualquer um que não precisasse estar ali. Ainda assim, Simba estava lá.

Depois do exército de Reichstein ter entrado na batalha, o de Utah debandou, porém, foram feitas capturas significativas dos inimigos e o principal deles foi o príncipe Felix. No dia seguinte à fatídica noite do ataque, os utanianos foram julgados e mortos por enforcamento no pátio exterior e seus corpos foram jogados em valas comuns na floresta. Simba descobriu que quem colocou fogo nos estoques de trigo foi o Sir Thompson para que o reino comprasse suas sacas a preços mais caros depois de um tempo. Porém, quando Utah foi banido pelo comportamento de Félix, ele viu uma oportunidade de lucrar mais e fazer sua filha a rainha dos dois reinos que eles planejavam unir quando matassem Simba. Sir Thompson não teve o destino feliz de uma morte rápida como os soldados utanianos, ele foi torturado por traição por algumas horas até dizer toda a verdade.

 Simba fez questão de mandar seu mensageiro até Utah e dar de presente a cabeça de Félix e do sir. Thompson ao rei, junto a uma carta demandando que uma taxa anual de 10 000 sacas de trigo fosse paga à Reichstein, ou então, eles atacariam com o apoio dos demais reinos menores. Simba não queria começar uma guerra e o exército de Utah foi muito mais comprometido do que o dele na invasão, então, achava que seria punição suficiente o tributo anual e a perda da proteção dos 25 reinos. Certamente, a Inglaterra ou Escócia fariam o trabalho de massacrar Utah por ele, enquanto isso, era preferível lucrar e manter a paz. O rei de Reichstein já não era ávido por uma guerra e derramamento de sangue como outrora foi, agora ele era um pai, acima de um monarca. Tudo o que mais amava no mundo estava naquela ala hospitalar escura e fétida, por isso, não sairia de lá tão cedo, mesmo que todos os ossos de seu corpo pedissem por descanso.  Simba acreditava ter batalhas mais perigosas dentro de suas próprias terras do que fora delas. Kiara abraçada ao corpo semi-vivo de Kovu estava no topo de suas preocupações, no momento. Sua princesinha já não confiava mais nele, pois fora tolo o suficiente para deixar seu ódio pelo exilado atrapalhar seu julgamento como rei e pai. E ele sabia, por mais que Kiara o tivesse perdoado, ela o via com outros olhos. Tudo por culpa de Kovu, se ele não tivesse entrado em suas vidas...

— Graças aos céus, vem vindo chuva. – comentou Rafiki ao seu lado no parapeito da janela. Simba não estava prestando atenção na droga do céu, mas era verdade, ao longe nuvens negras e cheias se aproximavam e, com sorte, apagariam o resto do fogo que já perdurava há dois dias na floresta. O rei observou o médico e vidente lavar as mãos ensanguentadas numa bacia de prata e sentar-se, em seguida, ao seu lado no parapeito da janela.

— O que está fazendo? – indagou Simba.

— Descansando. – riu o ancião de longa barba grisalha. – Alguns de nós precisam, sabe? – Simba deu de ombros, nunca gostou muito do velho metido a sábio, preferia ignorar sua existência na maior parte do tempo. Apenas mantinha-o no cargo porque Mufasa tinha grande consideração por ele. – Curioso, não? – perguntou ao acompanhar o alvo do olhar do rei. Kiara estava deitada ao lado de Kovu numa cama pequena demais para os dois e abraçava seu corpo, sem importar-se com o que os outros diriam. Simba não tinha forças ou coragem para tirá-la de lá, não precisava ser um velho ancião para perceber que a filha tinha sentimentos pelo exilado.

— O que é curioso? – retorquiu Simba, ríspido.

— É curioso que Kovu tenha salvado vossa vida e é curioso que as profecias sejam impossíveis de serem decifradas no sentido mais literal possível. – respondeu enigmático. O maxilar de Simba se contraiu.

Não, ele não sabia o que fazer com o fato de o exilado ter lhe salvado a vida, porém, o rei não podia ignorar jamais as coincidências que levaram Kovu até o castelo. Todas as vezes que ele salvou Kiara... tudo parecia parte de um plano para chegar até ele. Simba sabia como funcionava a mente dos exilados, como funcionava a mente de Scar... e Kovu era uma cópia do pai perverso.

— Eu sou o rei de Reichstein, meu pai foi o rei por direito e eu...

— Vosso pai nunca quis realmente o trono, sabe? – Rafiki o cortou e Simba estarreceu. – Há muitos segredos escondidos pelas paredes deste castelo que Vossa Majestade desconhece.

— Não ouse pronunciá-los em voz alta, então. – interrompeu, sentindo o punho fechar-se. – O melhor lugar para deixar o passado é no passado, coisas velhas não tem utilidade no meu reinado. – devolveu num rosnado, o ancião deu um meio sorriso entristecido.

— Não sou eu que dito os escritos das estrelas, apenas os interpreto. Vosso pai sabia disso, ele tinha ouvidos para ouvir e amabilidade ao julgar. Vossa Majestade me lembra muito Scar nesse aspecto, o ódio lhes cega o julgamento...

— Sabe que eu posso cortar sua língua por essa comparação, não sabe, velho? – levantou o dedo em riste, Rafiki sabia que os dois monarcas compartilhavam da mesma fúria no olhar. Scar e Simba tinham a capacidade de odiar e amar na mesma intensidade.

— Faças como quiser, entretanto, não podes mudar algo que foi decidido antes mesmo de vosso nascimento. “Da segunda semente de Scar virá o legítimo rei de Reichstein”. – repetiu a profecia que atormentava Simba desde que colocou a coroa na cabeça. –  Vossa Majestade pode lutar contra isso ou estar em paz com o fato. – afirmou sério.

— Em paz? – sibilou baixo, mas não menos ameaçador. – Jamais deixarei que Kovu tome meu reino.

— A profecia jamais disse que Kovu tomaria vosso trono pela força. – respondeu calmo, Simba franziu o cenho confuso. O ancião, então, apontou com o queixo de modo enigmático para o casal desafortunado na cama e o outro riu, entendendo aonde o médico queria chegar.

—  Acha mesmo que vou entregar meu trono e a mão de minha filha para o filho de Scar? – a voz transbordava ironia. Simba se levantou abruptamente, não suportando estar na presença do homem.

— Não me parece que tens muita opção. Não só as estrelas e o destino, mas os corações de ambos estão entrelaçados. – ouvir outra pessoa falar o que ele mesmo já percebia tornou aquilo real demais, foi como levar uma facada no coração. – Kovu não é Scar, Simba, então não ajas como se fosse, não deixe o ódio dominar-te e dê-lhe uma chance. – o ancião falou cansado.

— É o que veremos, velho. – cuspiu Simba e saiu de perto do ancião, que suspirou cansado.

***

Kiara entrou aflita na ala hospitalar na manhã seguinte. Nala havia passado ali na noite anterior e a convenceu a dormir, alimentar-se e banhar-se propriamente em seus aposentos. A chuva a embalou num sono profundo e sem sonhos, graças a Deus, mas no dia seguinte acordou com o coração apertado, como se algo terrível tivesse acontecido.

— Onde ele está? – sussurrou para si ao ver a cama de Kovu vazia, teria ele acordado durante a noite? Um bolo de ansiedade e esperança se fez na boca de seu estômago. “Ele acordou!”, pensou. Finalmente os dois viveriam o que o destino pregava peças e empecilhos o tempo todo para impedi-los. Mas onde ele estaria? Kiara vasculhou por toda ala entre os feridos, mas não o encontrou. Foi então que sentiu uma mão em seu ombro.

***

7 meses depois – Tempo presente

(Time -Mikky Eko)

— É bonito, não é? Gostaria de ficar aqui para sempre. – Kiara dizia na pausa do treino de espadas. Era um dia espetacular, o sol batia sobre as águas do riacho formando pequenos arco-íris, borboletas amarelas brincavam no ar e o som da correnteza e da cachoeira trazia uma atmosfera de paz. Ela se deixou levar e tirou os sapatos, pisando nas pedrinhas doloridas e escorregadias para molhar os pés.

— Ficaria para sempre comigo? – indagou Kovu às suas costas. Ele estava próximo, podia sentir a respiração calma dele na nuca, um arrepio a invadiu.

— Kovu... – a princesa se virou cautelosa, encarar os olhos esverdeados era sua perdição, mas não podia evitar. Ele tinha o sorriso afetado de sempre no rosto, o mesmo que fazia seu estômago dar cambalhotas no lugar. – Não faça perguntas do tipo, por favor... – pediu olhando para as mãos, Kovu deu um passo à frente e ergueu o queixo dela para que o fitasse novamente. Era doloroso ver a ternura que ele exibia no toque e no olhar e não poder desfrutar propriamente, aquilo a destruía mais e mais a cada dia. Era como estar sedenta em um deserto há dias e não poder beber da água mais pura e fresca bem diante de si.

— Não repreendas o que sinto por não vos permitir o mesmo. Não amá-la é um erro tão grave como pedir para que o sol não se ponha, que os pássaros não cantem pela manhã ou então que as flores nas despontem na primavera. – A intensidade, veracidade e transparência de suas palavras a machucavam profundamente. Kovu suspirou, passando o polegar no lábio inferior da princesa e falou num tom mais grave. – É impossível. – Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, amargurando a situação.

— O senhor prometeu, seria cavalheiro de vossa parte cumprir com a palavra. – Kiara devolveu fria dando um passo para trás, as águas estavam nas panturrilhas, mas ela não se importava, precisava distanciar-se do calor dele ou então... quem descumpriria o acordo seria ela. Kovu apertou o olhar ligeiramente irritado, sem intimidar-se a seguiu como um predador diante da presa. – Combinamos... de sermos amigos apenas.

— Primeiro, princesa. – ergueu o dedo em riste. – Deixei claro desde o início que não tenha o menor interesse em vossa amizade. – deu mais um passo na direção dela, molhando a barra das calças, Kiara recuou. – Segundo, não esperes que eu aja como um cavalheiro quando sabes bem que sou um exilado. – mais um passo e ela desequilibrou-se, caindo de vez nas águas geladas do rio corrente; quando submergiu encontrou o homem rindo com vontade.

— De fato, o senhor não tem um fio de cabelo inclinado ao cavalheirismo. – devolveu irritada com as bochechas avermelhadas, o que a tornava ainda mais adorável na visão do exilado. Kiara tentou se levantar, contudo, o peso do vestido e as pedras lisas tornavam o ato difícil, Kovu ria tanto que teve de apoiar-se nos joelhos com as mãos.

— Deixe-me...  ajudá-la, princesa. – dizia entre os risos. Estendeu a mão marcada para ela, que a segurou prontamente, no entanto, ao invés de ser puxada, deu um sorriso zombeteiro.

— O que está fazendo? – arqueou a sobrancelha charmosamente. No segundo seguinte, Kovu foi puxado por ela, mas a princesa calculou mal o movimento e ele caiu sobre ela no rio.

Eles estavam na parte rasa apoiados pelos braços, mas seus corpos estavam molhados e as roupas coladas, permitindo que sentissem um ao outro sem dificuldade. E céus, como era boa a sensação de tê-lo sobre si... Kovu virou o rosto que, na queda, encaixou-se no ombro da princesa, e ela notou que ainda havia um sorriso malicioso no semblante.

— Conseguiu o que queria, princesa, é visto que já não és uma dama como outrora. – falou com a voz arrastada.

— Apenas porque tenho o senhor de professor. – devolveu ainda mais vermelha.

Estavam colados e Kiara podia sentir a rigidez e calor que emanava do corpo dele, sempre muito mais quente do que o próprio. Os narizes já estavam encostados e as respirações se fundiam, então, ele roçou a barba rala em seu rosto, fazendo a pele de porcelana arrepiar-se por inteira. Kovu conhecia perfeitamente seu estado sobre ela e sabia que não iria resistir, os olhos castanhos se fecharam com o prazer que o leve arranhar dos pelos proporcionava. O exilado queria tocá-la, mas não podia usar os braços ou despencaria o peso em cima dela, realmente não estavam em uma posição confortável. Kovu afastou um pouco o rosto para olhá-la e sorriu satisfeito ao vê-la entregue com a boca vermelha pelo frio entreaberta; ele pousou os lábios na garganta da garota, sentindo a reverberação do gemido delicioso que se fez em seguida. Subiu os lábios até o ouvido da princesa e mordiscou o lóbulo, alternando as mordiscadas por beijos no pescoço e clavícula.

— Kovu... – gemeu um pouco mais alto.

— Já percebeste, princesa... – dizia sedutoramente em meio aos beijos. – a tua boca que me nega tantas vezes é a mesma que usaste para me beijar sem consentimento... – Kiara pareceu sair de seu transe com os dizeres. – Duas vezes, pelas minhas contas. – sorriu vitorioso diante da fúria dela, não sabia se a raiva era por ter parado ou se por ter razão.

— Minhas razões foram justificáveis... – começou retomando o lado racional.

— E as minhas não o são? Vossa Alteza me beijou duas vezes de surpresa, nada mais justo que eu faço o mesmo. – os olhos dela se estreitaram e o sorriso arrogante dele se alargou. – Porém, como me pedes para que eu seja mais cavalheiro, terei a decência de avisar que irei beijá-la. – Kiara abriu a boca para protestar, mas não houve tempo. – Eis o meu aviso, Kiara, vou beijá-la agora e nem mesmo Deus vai me interromper. – Em seguida, Kovu avançou, aproveitando sua boca aberta e as uniu como deveriam estar.

Kiara apenas sentiu, sentiu como há muito tempo não se sentia completa. Ansiava por aqueles lábios mais do que qualquer coisa no mundo, eram macios como deveriam ser, úmidos e habilidosos como se lembrava, e o cheiro dele estava impregnado na memória, provocando toda onda de sensações de sempre. No entanto, quando a língua se moveu para encontrar a dele, não sentiu nada, pois, na realidade, elas não tiveram o prazer de se conhecerem muito antes. E agora jamais poderiam...

A princesa acordou com o raio estrondoso do lado de fora da janela, percebendo que se esqueceu de fechá-la na noite anterior. Um vazio estarrecedor tomou conta de seu coração ao perceber que tudo não se passava de apenas mais um sonho, a tempestade refletia como sentia-se internamente. Pelo menos, o sonho não se transfigurou em um pesadelo como na maioria das noites, o que era bom e ruim. Por um lado, não teve de lidar vividamente no sono com as lembranças que a atormentavam, por outro, não conseguiria dormir tão cedo e ficaria remoendo a dor acordada. Não sabia o que era pior.

Ela foi até a janela e sentiu o vento carregado de pingos nervosos castigando o rosto. Ao longe, Kiara observava o mar furioso ser iluminado pelos raios, as ondas se levantavam e atingiam a base do castelo caiado. A paisagem era muito diferente da que tinha em Reichstein, mas nenhuma beleza aliviaria sua devastação emocional; Simba errou ao pensar que em Xártis ela seria afastada do sofrimento, pois o maior demônio estava em seu coração. Era crueldade demais estar viva e sentir-se morta por dentro. Seu último sorriso genuíno foi quando pensou ter sentido a mão de Kovu tocar seu ombro, há 7 meses atrás. Apenas um segundo de esperança antes da notícia que deixaria sua alma em carne viva para sempre.

7 meses atrás

A princesa virou-se para abraçar o homem que amava e acabou encontrando olhos castanhos ao invés dos verdes esmeraldas. O ruivo de aspecto pesaroso também era uma figura de amor, mas não era seu amante. Simba não precisou dizer nada, Kiara imediatamente caiu em seus braços e soltou um grito tão agonizado que partiu a alma daqueles que ainda a possuíam na ala hospitalar.

— Me diga que é mentira, meu pai... E-eu imploro. – Kiara pediu aos soluços depois de um tempo.

— Eu gostaria de dizer, minha estrelinha. Gostaria que não sofresse... – Simba engoliu em seco enquanto afagava a cabeça da filha. Aos seus olhos, Kiara não passava da menina que colocava no colo e ninava até dormir, sua pequena preciosidade indefesa que precisava ser protegida a qualquer custo.

— Eu só acreditarei se me jurar, pai. – o olhar lacrimoso clamava por uma fagulha de esperança, mas Simba foi firme ao mirar em seus olhos e proferir as palavras amaldiçoadas.

— Eu juro pela minha honra, minha filha, Kovu se foi...

7 meses depois – Tempo presente

(Roselyn – Bon Iver)

Kiara lembrava-se de acordar durante a noite, em Reichstein, e caminhar até o cemitério dos soldados para deitar-se por cima da sepultura de Kovu. O fato de nunca tê-lo visto depois que seu coração parou de bater lhe dava a esperança de que a qualquer instante seu amor retornaria dos mortos. Aquele ritual fúnebre era a única coisa que a fazia dormir profundamente, sentia-se próxima a ele e as fantasias ficavam mais vivas. Ficou brava com o pai por tê-lo mandado enterrar durante a noite quando ela estava dormindo, sem deixar que visse o rosto belo uma última vez, no entanto, depois sentiu-se grata por não ter que ver a face de Kovu sem vida.

Durante dois meses, a princesa conseguiu disfarçar onde passava a noite, pois quando o sino da igreja soava pela manhã, ela acordava e voltava ao próprio quarto. Porém, acabou pegando uma pneumonia pelo frio que a atormentava durante as madrugadas e os pais descobriram sua fuga doentia. Com isso, Simba resolveu que o melhor a fazer seria mandar Kiara para longe, distanciá-la dos acontecimentos ainda frescos.

Assim, a princesa foi para Xártis e, afastada de tudo aquilo que lhe lembrava seu amor, nunca mais teve uma boa noite de sono. Era irônico que tudo o que Kiara mais quisesse antes de tudo acontecer era conhecer o mundo além dos muros de Reichstein, mas, agora, tudo o que queria era voltar para seu reino e manter vivas as memórias que tinha de Kovu. Ela tentava não ser ingrata com o tio-avô Oberon II, rei de Xártis e irmão de sua falecida avó. Ele era um homem bondoso e sem ter nenhum herdeiro, gostava de passar o tempo livre conversando com a princesa como se fosse sua própria filha, então Kiara se forçava a sorrir e responder educadamente suas perguntas. Um dia descobriu que os dois tinham um interesse em comum, espadas; desde então, Kiara percebeu ser muito mais produtivo passar o tempo duelando com o tio do que forçando-se a conversar frivolidades, ademais, era uma forma de estar mais perto do seu antigo instrutor, o exilado.

Sem um pingo de sono, Kiara levantou-se na madrugada, colocou um vestido qualquer, apanhou a espada ao lado da cama e dirigiu-se ao pátio exterior do castelo. Estava frio e escuro, podia sentir a água salgada do mar na ponta da língua, mas não ligou, simplesmente começou a treinar seus golpes sozinha. Essa era a única maneira de sentir um pouco de paz e desligar a mente, o cansaço físico e a dor nos músculos pareciam dissolver minimamente a dor interior.

— Pelos céus! Já está de pé, princesa! – o rei Oberon II apareceu ao seu lado e ela parou de golpear o ar. Foi então que Kiara percebeu já ser dia, a chuva havia cessado e o sol aparecia fraco entre as nuvens cinzentas. A tempestade havia castigado o pátio externo, trazendo areia da praia e umidade da água salgada, formando poças lamacentas pelo piso de azulejo xadrez de mármore. O castelo de Xártis tinha um tom rústico, para não dizer descuidado, devido às armaduras, estátuas e outros móveis corroídas pela maresia do local.

— Perdi o sono. – deu de ombros, o melhor de tio é que ele não a oferecia o olhar de piedade ou a tratava com a mesma extrema delicadeza que seus pais após a morte de Kovu, como se ela fosse quebrar. Talvez a única vantagem de estar em Xártis era que ninguém conhecia sua dor ali.

— Ah, se todos os meus soldados tivessem sua disposição para treinar... – alisou a grande barriga e enrolou o bigode negro, como sempre fazia ao elogiar alguém. – Eu já poderia vencer os exércitos da rainha Elizabeth e a rainha Mary juntas! – riu alto da própria piada, em seguida, olhou o estrago no pátio. – Maldição! Minhas margaridas! – lamentou-se, olhando para o canteiro de flores próximo onde estavam. Apenas algumas sobreviveram à ventania.

— Talvez o senhor deveria plantar flores mais resistentes. – sugeriu Kiara. Outra ocupação do rei Oberon era a jardinagem, não que fosse muito bom nisso, mas era um jeito de preencher seus dias vazios desde que a esposa falecera. Aparentemente, a antiga rainha Anne cuidava daquele canteiro com as próprias mãos e tinha o dom de fazer qualquer espécie de flor crescer e sobreviver ao clima impróprio. A princesa podia perceber sua frustração, mas a própria Nala um dia lhe dissera que arranjar um bom jardineiro é um milagre, pois cuidar de plantas é uma virtude que floresce em almas raras.

— É, talvez... – ainda olhava desolado para as margaridas. – Está frio e o desjejum já será servido, querida, vamos para dentro. – Kiara obedeceu e seguiu o tio para os aposentos do rei, onde eles costumavam tomar a primeira refeição do dia juntos. Os nobres e o rei não se serviam no salão principal, como em Reichstein, as refeições apenas eram feitas em conjunto em tempos festivos. No entanto, o rei Oberon II gostava de ter a companhia de Kiara em suas refeições, principalmente porque ela não era uma bajuladora como seus demais súditos. – Sabe... Você lembra muito minha falecida irmã, princesa, talvez por isso goste tanto de tê-la aqui comigo. – bebericou um pouco mais do chá, o comentário despertou a atenção de Kiara. Há meses não pensava mais na trágica história da avó, mesmo estando agora em sua terra, mas o interesse pela vida de Sarabi caiu no esquecimento após ter descoberto a última peça do quebra-cabeças.

7 meses atrás

Kiara chorava ao que pareciam horas após saber do falecimento de Kovu, seus soluços haviam cessado nos braços do pai e apenas um vazio existencial parecia a consumir, como se jamais a felicidade fosse encontrá-la novamente. Simba a carregou para seu quarto depois que ela parou de chorar na ala hospitalar, visto que estava muito desolada para caminhar. Então, na comodidade de seu aposento, um sentimento novo se apoderou dela, raiva, fúria. A vida era injusta, o destino era perverso e ela precisava de alguém para culpar por isso.

— Não me console como se o senhor não estivesse exultante com a notícia... – Kiara afastou-se de Simba e o olhou com tamanha ferocidade, que o rei de Reichstein acabou se encolhendo. – O senhor o odiava! O odiava tanto que deve estar se contendo para não sorrir! O senhor é um mentiroso perverso e egoísta, que marca crianças inocentes, pune como um tirano e é vaidoso o suficiente a ponto de condenar o próprio povo por caprichos! Aposto que o senhor vai dançar sob o túmulo fresco de Kovu! O senhor o odiava apesar de ele ter me salvado a vida incontáveis vezes e me amado por quem eu sou! O senhor é detestável! – a princesa apontava o dedo trêmulo e novas lágrimas escorriam de seu rosto em chamas. – O senhor é mesquinho e certamente desejou a morte de Kovu... do seu próprio irmão! – Kiara cuspiu as palavras como se fossem veneno, ela queria infligir dor, não era justo que apenas ela sofresse. Então soltou a informação como se ela pudesse ser um tapa na cara do pai, que apenas a escutava compreensivo e isso a deixava ainda mais possessa em ódio.

— Meu irmão? Do que está falando, querida? – indagou confuso.

— Eu li os diários de Sarabi, sua mãe! Ela estava grávida quando se casou com Mufasa e então o senhor nasceu. O senhor, que desprezava tanto Kovu por ser filho de Scar, também é filho dele! – acusou com satisfação, era bom explodir, deixar a pose de compostura por um instante.

— Eu não sei de onde tirou essa informação, Kiara, mas está completamente equivocada. – pontuou serenamente com convicção, foi a vez da princesa ficar confusa. – Vou lhe contar algo que deve jurar jamais contar a ninguém. – suspirou passando a mão pelos cabelos ruivos longos, em seguida, levantou o lóbulo da orelha. – Está vendo esse sinal de nascença? Eu o tenho exatamente no mesmo local que meu pai, Mufasa.

— Isso não significa nada, Mufasa e Scar eram irmão, compartilhavam traços de família, talvez Scar também o tivesse. – argumentou confusa, esquecendo sua raiva por um instante.

— Sim... os dois eram irmãos, mas... – inalou profundamente. – Você jamais deve contar para ninguém o que ouvir agora, entende? – a jovem acenou incerta. – Os dois eram irmãos apenas por parte de pai. – Kiara formou um vinco na sobrancelha e ia contestar, contudo, Simba fez sinal com a mão para que lhe deixasse explicar. – Ahadi costumava amar uma moça chamada Tara, mas não poderia se casar com ela, pois precisava cumprir a aliança dos 25 reinos e se casar com Uru. Assim o fez, mas continuou com Tara como amante... Até ela ficar grávida. Então, Uru e Ahadi fizeram um acordo, o filho não seria um bastardo, e sim um oficial do casal real como Scar, se Ahadi prometesse nunca mais se encontrar com Tara enquanto Uru estivesse viva. – os olhos de Kiara se arregalaram. – Meu próprio pai me contou, descobriu anos depois do casamento de Ahadi e Tara, quando Uru já estava morta. Você e seu primo, Kion II, tem um parentesco muito mais próximo do que imaginam, já que o pai dele era o meu tio direto, filho do primeiro casamento da lady Tara; Kion também tem a mesma marca de nascença em forma de raio, assim como o pai dele. Entende? A marca vem dos traços da família de Tara, não de Ahadi. – Kiara precisou de alguns segundos para absorver todas aquelas informações. Isso só podia significar que Sarabi estava grávida de dois homens diferentes e a menina que nasceu morta era filha de Scar e seu pai, o filho de Mufasa. Parando para refletir, ela já havia ouvido Rafiki comentar sobre casos raros do tipo na gravidez.

— Por isso Ahadi desprezava Scar... ele era o filho do casamento que nunca quis, enquanto Mufasa era o filho do amor de sua juventude. – concluiu mais para si do que para Simba.

— Por isso, você jamais deve vazar essa informação para alguém, entende? Pelas leis, meu pai é o segundo filho e ainda... bastardo. Se alguém descobre isso... Se Zira souber disso... Podemos culminar em uma segunda guerra civil e os filhos legais de Scar tomarem o poder. – Kiara nunca vira uma sombra de medo no olhar do pai antes, mas o viu naquele instante. – Os exilados jamais podem tomar o poder novamente, entendeu, Kiara? Nunca! Seria o fim de tudo o que nossos antepassados construíram. – a princesa apenas se calou, consentindo confusa.

7 meses depois – Tempo presente

— Senhor... Posso lhe fazer uma pergunta, se não for muito indelicado de minha parte? – indagou cautelosa.

— Claro, cara mia. Se eu puder responder... – o rei estranhou a pergunta, afinal, Kiara não era muito de iniciar conversas.

— Eu gostaria de saber como minha avó morreu... Meu pai nunca me contou, parece ser muito doloroso a ele, no entanto, se o assunto lhe entristece demasiadamente também, não quero abusar de sua boa vontade. – falou de uma vez, sentindo um clima desconfortável ser formado.

— De fato, não é um assunto confortável, porém, imagino que seja mais fácil a mim lhe narrar os fatos, do que a seu pai, que estava lá e presenciou a fatídica morte de minha irmã. – suspirou e Kiara prendeu o ar, eles estavam tensos. – Muito bem... – pigarreou antes de começar. – Você deve saber que Scar matou Mufasa usando veneno de cobra e fez parecer um acidente perante todos. E ainda conseguiu convencer Simba, de apenas 10 anos na época, que a culpa era dele pela morte do pai. Scar era um sujeito inteligente, conseguiu enganar a todos com maestria, menos minha irmã, ela o conhecia bem... – fez uma pausa, temendo falar demais.

— Meu tio, eu sei sobre a história de minha avó e Scar. – garantiu, entendendo que Oberon II receava tocar em um tabu. Ele pareceu surpreso pelo conhecimento da sobrinha, mas continuou.

— Bem, sabe que Scar e minha irmã já foram um casal. – ela acenou. – Assim, ela o conhecia melhor do que ninguém e era uma das únicas que sabia que Scar já havia tentado matar Mufasa muitos anos antes e foi banido por isso, só voltando às terras do reino quando Ahadi faleceu. Na ocasião, Mufasa, que tinha um coração muito bom e puro demais, acolheu o irmão e a família que este formou de braços abertos. Depois que o matou, Scar achou que poderia enganar Sarabi contando sobre o acidente com a serpente, mas ela aprendeu a amar Mufasa e não se deixaria cair na história de Taka... Então, ele mandou prender minha irmã no calabouço do castelo logo após o enterro e disse a todos que a rainha havia voltado para Xártis, sua terra de origem. Quanto à Simba... Ele mandou o menino para morar no exterior, em Londres, a fim de completar seus estudos e assumiu o trono enquanto regente. Pode-se dizer que o mínimo de humanidade que Scar demonstrou foi também sua sina, pois ele não teve coragem de matar Simba enquanto era um garoto, mas então o menino cresceu e se tornou um homem forte e corajoso. Aos 17 anos, seu pai voltou para Reichstein casado e com você nos braços e percebeu que o tio que achava ser bom e tinha o salvado da culpa pela morte do pai, na verdade, era um sujeito de caráter duvidoso. Simba notou que Scar governava com demasiada libertinagem e desfavorecia os antigos homens de confiança de seu falecido pai, Mufasa. Então, Simba conseguiu formar um levante com os nobres insatisfeitos com o reinado de Scar e eles iniciaram uma batalha pelo trono, que na verdade, sempre foi de Simba.  A história que eu conheço é que ao fim da batalha, Scar foi até o calabouço e matou Sarabi para se vingar de Simba, em seguida, seu pai os encontrou logo e cortou a cabeça do tio tirano.

— Não imaginava que justamente Scar tivesse a matado, ouvi dizer que eles se amavam muito antigamente. – Kiara comentou chocada com a revelação.

— De fato, mas Scar amava o poder mais do que a qualquer coisa. – finalizou soturno, mas Kiara não se contentou com a versão dos fatos, para ela, não fazia sentido que pessoas que se amassem tanto pudessem ferir de tal forma. A princesa foi arrebatada de seus pensamentos por batidas na porta.

— Entre! – ordenou Oberon II. Um mensageiro entrou, deixou uma carta com o selo de Reichstein nas mãos do rei e partiu com uma reverência. – Oh! É de seu pai! Ele deseja que retorne imediatamente, disse que irá recebê-la para a festa de carnaval em 4 dias e convidará a todos do reino! Oh! Que sorte a sua, jovem, há anos Reichstein não comemora um carnaval, desde o falecimento de Ahadi... Será um evento primoroso, acredito. – Kiara estranhou o evento, já havia lido sobre os carnavais de Veneza, mas não sabia que sua terra havia o costume de comemorar a festividade.

— Está bem, creio que já abusei minha estadia aqui, de qualquer forma. – Kiara disse simpática.

— Bobagem, criança! – abanou o ar descontraído. – Venha sempre que quiser!

— Agradeço muito, meu tio. – disse comovida. – É melhor que eu vá arrumar minhas coisas, então.

O coração de Kiara encheu-se de uma ansiedade há tempos não sentida. Enfim, ela iria para casa, para seu lar, quem sabe o que o destino reservaria quando voltasse?

7 meses atrás – No exílio

(The Curse - Agnes Obel)

Nuka acabara de sair do velório de Vitani e o memorial de Kovu. Segundo fontes de Reichstein, o irmão foi enterrado como um soldado do reino em terra sagrada; por isso, apenas o corpo da irmãzinha fora entregue a eles. O filho mais velho de Scar dirigiu-se ao antigo quarto de Kovu e jogou-se na cama com um sorriso estampado no rosto. O clima geral no exílio era de pranto, até mesmo Zira demonstrava pesar pela perda dos dois filhos, mas ele não sentiria tristeza.

Nuka se lembrava bem do pai e como este o tratou desde que Rafiki leu nas estrelas a profecia da segunda semente. Scar e Zira o achavam fraco, pensavam que Kovu seria o verdadeiro herdeiro ao trono, mas eles estavam errados e a morte dos irmãos foi a confirmação de que o trono nunca pertencera a Kovu. Ele se lembrava como se fosse hoje, se agarrava à lembrança toda vez que alguém duvidava de suas capacidades.

17 anos atrás – Guerra Civil de Reichstein

Nuka corria amedrontado pelos corredores do castelo de Reichstein, havia se perdido de sua serva, que deveria levá-lo junto aos seus irmãos para um lugar seguro. Ele não sabia para onde ir, as vozes dos apoiadores de Simba se aproximavam e, apesar de ser um menino de apenas 9 anos, não achava que havia misericórdia em tempos de guerra. Só restava buscar abrigo em algum lugar discreto até que sua mãe ou o pai o achassem, mas onde? Foi então que notou a portinhola escondida pela tapeçaria com o emblema do reino, a mesma que Scar o proibira veementemente de ir. Não havia outra saída, precisava de um esconderijo ou o capturariam.

O garoto emaciado de aspecto cadavérico fechou a portinhola com cuidado e desceu a longa escadaria escura em espiral , avistando fracas luzes e vozes mais adiante, após a curva da escada. Ele reconhecia bem uma das vozes.

— Diga-o para cessar fogo, Sarabi, Simba irá ouvi-la. Então, eu lhe concederei o que mais desejas, a liberdade. – Nuka viu a imagem sombria do próprio pai apoiado nas grades que o separavam da mulher cansada, mas bem arrumada, presa ali. O garoto percebeu que estavam no calabouço do castelo, mas o local não lhe parecia tão desagradável assim, continha uma estante cheia de livros, uma cama confortável e arrumada, penteadeira e uma pequena fenda na rocha da parede por onde passava o sol.

— Está aqui porque sabe que não é páreo para enfrentar Simba num combate honesto, não é? Assim como não foi capaz de vencer Mufasa anos atrás na luta pelo trono. – a mulher de postura inabalável e rosto cansado deu um passo desafiador para frente sem intimidar-se pelo homem empunhando a espada. – Viu nos olhos de meu filho a mesma força e triunfo de seu irmão, não? É por isso que está aqui, pedindo clemência como um covarde, demonstrando que nunca foi digno da coroa que roubou. – ela sorriu como se tivesse todo o tempo do mundo para alfinetá-lo com as palavras e não no meio de uma guerra.

— Cuidado, Sarabi. – ele ergueu a arma na direção do pescoço fino da mulher, que não pestanejou por um segundo. Nuka jamais vira a voz do pai oscilar daquela maneira, trêmula e irritada. – Eu mantive Simba vivo por todos esses anos por respeito a ti, tive muitas chances de acabar com ele, mas não darei o reino que é meu por direito a ninguém. Todavia, se não vai cooperar comigo, eu acabarei com a vida do fedelho sem clemência, estou lhe avisando... – e foi se afastando das grades em direção à escadaria, Nuka se encolheu ainda mais no ponto em que estava. Não queria que o pai o visse, não parecia o tipo de conversa que ele permitiria que ouvisse.

— Não, Scar! Pare! Não pode matar Simba! – a moça parecia ter saído da pose superior e cedido o terreno à humilhação.

— E por quê? Já passamos do ponto em que eu faria tudo por você, Sarabi. – e subiu o primeiro degrau.

— Porque Simba é seu filho, Scar! – Nuka viu o pai estagnar no segundo degrau.

— Como? – indagou virando-se lentamente, a voz tomada por pavor. O garoto observando a cena prendia a respiração diante das revelações.

— Não diga que nunca lhe passou pela mente, Scar, talvez por isso não tenha criado coragem de matar Simba. No fundo, sempre soube da verdade. – A mulher loira com traços marcantes derramava lágrimas copiosas. – Eu estava grávida quando duelou contra Mufasa, por isso não fugi contigo, eu queria dar um futuro ao nosso filho. Fui obrigada a me casar rapidamente com Mufasa para que ele não desconfiasse da gravidez, mas meu coração sempre foi seu, Scar. – ela fungou enquanto limpava as lágrimas, o homem esguio se aproximava novamente das grades, como se a examinasse, buscando vestígios da verdade.

— Não pode ser. – sussurrou.

— É a verdade, basta examinar a idade de nosso filho. Ele é seu primogênito, Scar. – sussurrou de volta a mulher, passando os dedos pela grade e alisando os cabelos revoltosos do rei. O coração de Nuka batia acelerado observando tudo. – E eu o amo, sempre o amei e amarei. Me desculpe. – Nuka e provavelmente Scar achavam que ela pedia perdão pela omissão da verdade, porém, a faca de queijo atravessada no pescoço do atual rei de Reichstein, segundos depois, indicavam que ela se referia ao ato que praticaria. O garoto abafou um grito, colando a mão à boca e saltou para trás enquanto via o pai se debater com a faca na jugular, esguichando sangue a todos os cantos. Sarabi o segurava no lugar, como se o abraçasse e chorava ao mesmo tempo. – Me perdoe, Scar, me perdoe, meu amor. – A mulher o deixou escorregar lentamente por seus dedos e capturou a chave que estava no bolso do gibão enegrecido. Enxugando as lágrimas, Sarabi abriu sua cela com as mãos trêmulas e seguiu com uma vela em disparada pela escadaria. Nuka ficou muito quieto, o ódio pulsava em suas veias, suas entranhas clamavam por vingança, então, quando a mulher dobrou a curva da escada, ele chutou suas canelas e a antiga rainha despencou com um grito gutural até atingir a base. Todo o corpo do garoto tremia em convulsões, tinha matado aquela mulher, ele tinha certeza disso, entretanto, não sentia medo ou remorso, foi um ato justo.

Nuka desceu os degraus aos tropeços até chegar ao corpo ainda em espasmos da assassina de seu pai, seus olhos azuis estavam esbugalhados e parecia que sairiam da órbita. Ela ofegava por ar, mas engasgava-se com o próprio sangue, não duraria muito tempo; o menino poderia ser bondoso e dar fim ao sofrimento de sua inimiga, porém, deleitou-se com o que viu e preferiu deixá-la agonizando. Caminhou um pouco mais e agachou-se até o pai defunto. Não choraria por Scar, pouco lhe agradava a figura paterna, que sempre preferiu Kovu devido à maldita profecia, mas sabia o que seu falecimento significava a ele. Haviam perdido a guerra. De repente, ouviu a portinhola ser escancarada e correu rapidamente para debaixo da cama dentro da cela. Da posição onde estava, conseguia enxergar a moça deitada no chão e botas pretas ao lado de seu corpo.

— Mãe! Não! Não depois de tanto procurá-la, não pode morrer, por favor! Não me deixe. – suplicou a voz pertencente ao homem que, supostamente, era seu irmão. O ruivo ergueu a mãe quase moribunda para um último abraço. – Não me deixe, a senhora não pode, não agora! – notava o tom choroso de Simba. – Como isso aconteceu?  Por que... – então, a cabeça da antiga rainha pendeu para o lado e o coração de Nuka falhou uma batida ao perceber que ela apontava um dedo trêmulo em sua direção. Os joelhos do homem se redirecionaram para ele e o garoto encolheu-se até onde era possível debaixo da cama. Contudo, Simba desviou a rota e parou na frente do outro cadáver no recinto. Da posição onde encontrava-se, conseguia ver apenas a face chocada do pai, por isso, sufocou outro grito quando a espada atravessou o pescoço de Scar e a cabeça rolou para o lado, esguichando sangue para todo canto. Mesmo que Nuka tivesse gritado, duvidava que o outro ouviria algo devido ao próprio urro carregado de ódio. Simba certamente achava que o tio matara sua mãe. A partir desse ponto, o menino cerrou os olhos com força, engulhando devido ao líquido escuro que jorrava livremente, o mesmo que corria por suas veias e o mesmo que pulsava no coração do homem que seria rei futuramente.

7 meses atrás – No exílio

Nuka acordou de suas lembranças ao notar um desenho amador amassado na cama do irmão falecido, esboçando as feições da atual princesa de Reichstein quando criança. Ele sorriu, agora havia apenas um empecilho de se tornar o que nascera para ser. Afinal, aquele dia sangrento marcara sua história, tirando-o da condição de zero que seu pai sempre achara que fosse. Scar estava enganado em supor que Kovu era “a sua segunda semente” referente à profecia de Rafiki, pois sendo Simba o primeiro filho de seu pai, então, ele, Nuka, era o segunda e, portanto, o legítimo rei de Reichstein. A recente morte de Kovu apenas confirmava aquilo que ele já sabia há tempos, talvez agora a mãe acreditasse nele finalmente. Sim, o exílio estava em luto, mas seu estado de espírito era de glória. 


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