The Ballad of Mona Lisa escrita por CASS


Capítulo 1
I — Capítulo Único.




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Veja bem, aproxime-se e preste atenção. Existem seis regras vitais para um velório.

A primeira delas é abrir a janela do cômodo de recepção. Sim, você tem que escolher um cômodo para deixar o morto em exposição, para que as pessoas olhem-no uma última vez, pálido e sem vida, antes de apodrecer para sempre em uma caixa de madeira a sete palmos do chão.

A segunda regra é fechar a janela duas horas depois para não deixar que os queridinhos mentirosos fiquem resfriados ou que o morto escape enquanto ninguém está olhando. O medo de tal fuga pode acabar levando segredos a serem espalhados e, mesmo que impossível, faz a crendice popular ultrapassar os limites do imaginável. Isso me assusta.

Em seguida, você deve parar todos os relógios na hora da morte e cobrir os espelhos para prevenir que o espírito fique preso entre eles. Além do mais, você pode ver sua própria face hipócrita e lembrar que uma pessoa morreu por conta de sua farsa.

Com tudo isso pronto, segue-se para a quarta regra: você tem a obrigação de banhar o morto. Dê um banho no cadáver, vista-o com uma roupa leve de algodão fino e branco para que ele possa supostamente entrar no paraíso purificado. Pelo menos espera-se que isso ocorra com aqueles que ainda não têm assuntos inacabados nesta maldita terra.

Quinta regra, aquela que é essencial: você precisa cobrir o corpo do cadáver com algo branco. Um pano, sendo ele adornado ou não, você deve ter em casa. Grande o suficiente para cobrir um corpo e pequeno o bastante para fazer apenas isso. Purifique a alma de seu cadáver pecador com uma roupa branca, da cor das roupas de deus e dos anjos, e encontre-o na entrada do inferno assim que morrer.

Por fim, na sexta e última regra, permita que as pessoas chorem e lamentem entre suas expressões renascentistas escondendo suas perversões e apatias, fingindo sentimentos para com pessoas que nunca se importaram. Fingindo te conhecerem enquanto só se fazem presentes para tentar entender os mistérios de uma morte repentina.  

E como eu sei de todas essas coisas? Pois as estou presenciando nesse exato momento, enquanto encaro meu corpo inerte em um caixão aberto.

...

Eu não lembro como aconteceu. Lembro de ter acordado de repente, de frente para meu corpo estirado e pálido no sofá, como se estivesse dormindo. Rezei para que fosse apenas um sonho e esperei, querendo desesperadamente acordar. Mas não aconteceu.

Entre meu corpo e eu, havia um carpete manchado de vinho pela garrafa que antes fora derrubada, uma taça vazia em pé ao lado dela, e algumas outras garrafas de gim vazias, escondendo o antigo líquido marrom claro.

Mary dormia ao lado do meu corpo. Parecia não se importar com meu cadáver. Que seja um sonho, que seja apenas um maldito sonho, eu pensava. Mas minhas preces não foram atendidas.

A morena, bêbada, trajava apenas suas vestimentas de baixo, enquanto o vestido esverdeado estava pousado no braço da poltrona no canto da sala. Lembro de como eu a dizia que aquele vestido combinava com seus olhos. Maldita hora em que a elogiei. Maldita hora que sorri para ela. Maldita hora em que fomos apresentados, quando crianças, em minha casa.

Desde pequena, ela sempre fora o centro das atenções. A pintora, a dama, a filha dos vizinhos, a morena que encantava a todos com sua ternura e talento. Entretanto, sua mente era o que mais me surpreendia. O que as pessoas não percebiam - mesmo eu, até ser tarde demais - eram as intenções por trás de suas palavras ensaiadas, a habilidade que ela tinha de manipular a todos como bem queria, podendo facilmente governar uma cidade inteira. Ah, como eu pagaria para ver sua queda.

No dia em que nos conhecemos, ela tinha apenas oito anos e eu, dez. Assim que sua família se mudou para a cidade, nossos pais ficaram instantaneamente amigos e esperava-se que fizéssemos o mesmo.  

No início ela era uma locutora solitária em uma conversa, falando incansavelmente sobre coisas que já não me interessavam, enquanto suas palavras entravam e saíam pelos buracos dos meus ouvidos. Uma nova irmã empolgada demais sobre assuntos de criancinha, era como eu a via.

Com o passar dos tempos, suas visitas tornaram-se cada vez mais frequentes e, de pouco a pouco, achamos mais coisas em comum. Ela sabia tocar violoncelo, e eu cantava para ela quando pedia. Viramos quase inseparáveis, em seu olhar. Eu só queria satisfazê-la de uma vez para que ela sumisse de meu ombro.

Em nossa adolescência, era eu quem a acompanhava a bailes de gala e até suas aulas de pintura. Lembro do dia que ela tentava desenhar uma tela de um homem segurando uma rosa. A força de vontade que tinha para que aquilo saísse perfeito, extremamente real, parecia consumi-la.

“Já está bom”, eu dizia. Mas ela nunca ouvia. Sempre um detalhe a mais, um sombreamento, uma linha de expressão. A pintura foi tomando forma, tão delicada e aterrorizantemente detalhista, que quando ela a terminou, fiquei tão impressionado como desconcertado: era eu. Eu alcançava a rosa. Para ela.

— Bonito. — cheguei a comentar. — É assim que você me vê? Romântico desse jeito?

Um sorriso escapou de meus lábios. Ela me encarou, e um arrepio cruzou minha nuca.

— Sim. Desse jeito. É assim que você é comigo, não é? Delicado, educado, romântico.

Permaneci em um silêncio aterrador. Ela voltou a pintar.

— Vou chamar de Miss Jackson.

Uni as sobrancelhas, encarando-a.

— Mas não deveria ser “Mister” Jackson? Afinal, sou eu e…

Foi então que percebi. O rubor atingiu meu rosto, e ela deu um sorrisinho envergonhado tão bem feito que acreditei ser verdadeiro. Encarei-a por um tempo, e ela retribuiu o olhar. Viu meu rubor, pescando o tom rosado da paleta de tintas, começando a pintar minhas bochechas lentamente.

— Assim, com vergonha, você fica fofo.

Então ela limpou o pincel na barra do vestido manchado, voltando a fazer seus detalhes minuciosos. As curvas dos dedos segurando o caule da rosa vermelha, as sombras acima da mesma. Engoli em seco.

— Já está bom. — repeti, desconfortável.

Daquela vez, ela me ouviu. Largou seus pincéis, pegou suas coisas e estendeu seu braço para que fôssemos embora. Neste dia não a acompanhei de volta. Inventei outro compromisso na urgência de escapar de sua presença nauseante e saí.

...

Essa mesma noite, em especial, não foi boa. A imagem do quadro ainda assombrava minha mente. O buquê em meu colo, uma flor estendida à alguém escondido nas sombras. Sempre que adormecia, podia ver a pintura, seu rosto, o rubor nas bochechas, a sensação de incômodo. Miss Jackson ainda estava lá, no cavalete, na sala de pintura de Mary, esperando por mim.

Sem conseguir dormir, me vi a pensar na garota. Nunca tinha dado qualquer brecha para que ela se apaixonasse por mim, tinha? Dizem que o amor é cego. Cego, surdo, mudo, tetraplégico, catatônico. Era impossível que estivesse apaixonada. Nunca fui tão displicente com uma garota na minha vida, mas, mesmo assim, ela insistia em algo que não existia.

Acho que o ápice de sua perrice foi quando me viu com uma garota loira. Não lembro onde, nem quando foi. Apenas lembro dos olhos de Mary, perdidos, tentando achar sentido no que via. Claramente se perguntava “o que ela tem que eu não tenho?”. Eu e Claire nos beijamos aquele dia; não enxerguei a silhueta da morena na janela de sua casa, observando, talvez até chorando. Talvez tenha sido, outrora, coragem coisa que nunca tive para perguntar.

Coragem essa que igualmente nunca tive para questionar Mary sobre seus sentimentos sobre mim — não que eles já não estivessem óbvios o suficiente. Preferi, entretanto, fazer-me de cego, e dar continuidade àquela suposta amizade. Ignorei os pequenos sinais, e até mesmo os mais notáveis. Seu possessivo ciúme e a forma como ela me observava, seus olhos felinos prontos para um ataque surpresa que, anos depois, viria. A forma como se movia, piscava, respirava ou referia-se a mim. Nunca como seu melhor amigo, seu irmão: sempre como o Brendon romântico, que nunca a machucaria.

Eu nunca a machucaria. Não de propósito, pelo menos.

Minha opinião era tão diferente da dela.

Depois daquele dia, do beijo, ela acabou descobrindo que eu era sexualmente ativo. Nem eu sabia que alguém (além das garotas do prostíbulo) tinha conhecimento sobre minha vida sexual. Um empurrão de Mary, e acabei caindo sentado no sofá vermelho e gasto de minha casa.

— Você está louca?!

— Não. Você está?! — perguntou, furiosa. — Está se dando para reles vulgívagas sujas?

— O QUE VOCÊ TEM A VER COM ISSO?

Mary chegou a assustar-se com meu grito, e talvez aquilo tenha feito-a perceber o que havia feito. Ajudou-me a levantar, os olhos corriam pelos meus, desesperados. Dispensei sua ajuda, e ficamos sem nos falar durante aquela semana.

Perdoei aquele ocorrido pouco tempo depois. Preferi iludir-me dizendo à minha consciência que era apenas uma forma equivocada de demonstrar a preocupação que sentia. Mary sempre tivera uma maneira exagerada de expor seus pensamentos a mim, e devo dizer que me sentia muito mais confortável em acreditar que era isso que havia acontecido.

Por algum motivo, até mesmo cogitei em evitar o casamento com a loira dinamarquesa. Após muito refletir, refreei-me. Achei-me louco, um legítimo disparate de minha mente tão conturbada. Eu, o melhor aluno do curso de direito da faculdade, planejado casamento com Katherine Delashair, com poder e dinheiro mais do que além da imaginação, e ela, Mary Ravin, artista por opção, também rica, porém extremamente excêntrica e cabeça oca?

Que seria de mim?

Por certo estava débil no pensamento quando ponderei deixar a vida perfeita com a mulher mais linda da Dinamarca para viver ao lado de uma pintora louca. Magnífico.

Não me recordo de quando voltamos a nos falar. Deixei minha casa dois dias depois para visitar um ente enfermo. O médico da família anunciou que tio Harry logo bateria suas costumeiras botinas pretas de couro. Era malária, doença mortal que causava febre e cansaço.

Houve um abalo na casa. Mary não tinha como imaginar aquilo, eu não havia lhe contado. Mas uma carta arrebatou nossa atenção. A cassa de Ravin mandava as condolências pela doença de meu tio. Mas não podia ser possível! Como ela conseguia estar em todos os lugares, a todo momento?

— Ela tem medo. — murmurou Lisa, atrás de mim. — De te perder.

— Ela não me tem.

Virei-me, estava encarando a menina, filha de minha tia, de nove anos. Aquela que a família protegia da fogueira desde a primeira mostra de sua clarividência.

— Não é o que ela pensa, Brendon.

— Ela não existe para pensar nada ao meu respeito. — respondi, a contragosto. — Ela não vive em mim.

— Tu vives nela. Quantos antes aceitares isso, melhor. És jovem, sabe?

Tirei um cachimbo do bolso, acendendo na vela trêmula.As chamas rodopiaram um pouco antes de a fumaça começar a sair do fornilho. Pus o bocal nos lábios, tragando o tabaco puro.

Levou alguns segundos para ruminar aquele pensamento. Porém, eu sabia que Lisa estava certo. Eu devia aceitar que ela gostava de mim, não que eu devia deixar Katherine às vésperas do casamento.

Falando na Delashair, sua carta chegou alguns dias depois. Ela disse que sentia muito por meu tio, e que estaria lá para ler minhas lamúrias se eu assim desejasse. Devolvi-lhe a carta dizendo que estava bem. Que ela não se preocupasse, que logo nos casaríamos.

Meu pai conversou comigo sobre isso. Se era mesmo de meu interesse casar com Katherine. Eu concordei. Por que não? Isso nos faria ainda mais ricos, ela era linda, culta, pura e até mesmo sua letra era delicada como flor. Eu precisava daquela mulher, da mesma maneira que ela precisava sentir meu corpo junto ao seu. Eu sabia que a virgindade dela era a mim prometida desde que o mundo foi escrito. Estava enamorado. Não justamente por ela, seu corpo, suas curvas — cujas nunca nem mesmo presenciei —. Estava apaixonado pelo que sabia dela, pelo que ela me revelou através das cartas e preocupação angelical; e, hei de confessar, também encantei-me pelo que me contavam dela. Loira, olhos azuis ou verdes, pequena e delicada. Era um anjo, meu anjo. Minha futura esposa.

Nenhuma Mary louca, impura e libertina tiraria isso de mim.

Meu tio morreu em uma quarta-feira, dia dezesseis de maio de mil, seiscentos e vinte e um. Estavam todos lá, até mesmo Mary. Resolvi não aproximar meu corpo da morena, temendo por minha integridade física. Não sei se ela fingia tão bem estar triste ou realmente estava — apenas por motivos diferentes, eu presumia.

Lisa estava longe, muito longe, conversando com uma parede, animada. Vi o exato momento que a criança acenou para a própria sombra e voltar andando. Parou ao meu lado, sorrindo.

— Papai está em um lugar melhor, agora. — confidenciou a mim. — Está tudo bem.

— O que você quer dizer com isso?

— Exatamente o que disse, Brendon. — sorriu a menininha.

...

Nosso casamento foi marcado um mês após aquela carta. O dia mais importante de minha vida seria treze de novembro, uma sexta-feira alva, quando a neve, branca e pura, já estivesse caindo.

Era fim de outono, ainda. O sol de outubro dissipava a costumeira névoa de Londres, aquecendo as casas e fazendo o habitual fulgor dos corpos ávidos retornar. Fui ao prostíbulo uma ou duas vezes naquele mês. Eu era homem, precisava daquele incentivo, daquela mania.

Ainda lembro de ter esse fogo, essas labaredas flamejantes queimando meu cerne, fazendo-me ansiar por qualquer toque.

E foi assim que morri. Não de alguma doença mortal, como meu tio, muito menos venérea. Nem mesmo de amor. Morri de sexo, de coito, de cópula, lascívia, luxúria, volúpia. Morri por não saber diferenciar uma mulher de puteiro com aquela que me cobiçava desde cedo. Vinte anos ainda era cedo.

Lembro das mãos dela envolvendo meu corpo em um abraço, e eu, bêbado naquela noite, aceitei. Não lembro porque estávamos sozinhos naquela casa, tudo no pós-morte é confuso; mas estávamos. Tenho teorias à respeito, principalmente sobre ela ter trancado-me no cômodo e começado a conversar. Alguns fragmentos da conversa me eram familiares.

— O queres de mim? — perguntei, encarando-a sentada na poltrona.

— Conversar. — disse a voz maléfica e sensual. — Você precisa de mim.

Uma taça de vinho, duas, três… sete. Ela me servia e eu bebia, sem muito pensar em consequências semelhantes. Já estava atordoado pelo efeito do álcool, e ela nem mesmo bebia. Encarava-me sorver o líquido roxo calmamente. Hesitei apenas uma vez, vez na qual ela bebeu um gole do vinho da própria garrafa. Não estava envenenado.

Ainda.

Mary veio ao meu colo. Isso é fato, eu nem podia mexer-me mais após a terceira garrafa, que agora transmutava para um licor de cereja adocicado. Ela mesma desfez os nós do vestido, despindo-se aos poucos.

Lembro que era uma garrafa e uma vez, outra garrafa e novamente. Não lembro de ter feito objeções, apenas ao pedido de um “eu te amo” no ouvido dela. Balancei negativamente a cabeça, os olhos arregalados, desconectando nossos corpos com o susto.

— Tu estás louco? — gritou ela, com dor.

— Tu estás? Amar-te? — eu disse, quase que trocando letras. — Só podes estar demente!

— Tu vais amar-me, Brendon! — esbravejou, enquanto eu começava a vestir minhas roupas. — Vais amar-me!

— Nunca! Nem em outro século te amarei, Mary! Vou casar-me com Katherine Delashair, e vou sair de Londres!

— Vejamos, então! Que eu morra queimada se isso acontecer!

— Que tu morras queimada em qualquer momento! — berrei.

Vi apenas seus olhos azuis nublarem, como se escurecessem apenas com uma mirada fatal. Não vi no momento, mas ela derramou o conteúdo de um frasco nas duas garrafas abertas que restavam. Eu, ébrio, bebi de uma delas.

O resultado não foi imediato, fazendo a mulher até mesmo cogitar se estava fazendo errado. Mary ofereceu calma, pedindo para que me sentasse na poltrona em que fizemos sexo, enquanto ela voltava a vestir-se.

Contar-te-ei que eu ainda admirava o par de seios da morena, aos poucos sendo cobertos pelo vestido. Pelo menos, eu sabia que ela havia apreciado aquela noite comigo. Seus gemidos ainda soavam em meus ouvidos, como sinfonia.

O que eu estava pensando?

Mary?

Mary e eu, transando?

Foi quando fui levantar-me, em breve momento de lucidez, caí ao chão como se não pesasse uma pena. Ainda estava consciente, apenas sem forças, sentindo o peito encher e a garganta fechar aos poucos. Estava sem ar, aos poucos sem vida. Ergui os olhos para o corpo seminu da jovem, que me encarava com pompa de vencedora.

Afinal, ela vencera.

— O que… fizeste… comigo, Mary?

— O que fiz? O que tu fizeste, a ti mesmo! Como podes tentar suicídio, Brendon? — disse, os olhos marejando. — Oh, não! Estava tão infeliz com o casamento arranjado, pobre Brendon! Que descanse em paz…

— És o próprio demônio! — clamei, minha saliva se tornando excessiva, a dificuldade de respirar consumindo meu ser.

— Talvez eu seja. Nos vemos no inferno, Urie.

E foi assim que eu morri, acordando apenas como fantasma, arrastado para o sofá sem pena alguma do cadáver, sendo molestado enquanto defunto, a alma deixando meu corpo lentamente.

Quando Mary acordou, olhou em volta. Eu a observava ajeitar meu corpo pálido. Vestiu-me do jeito que podia, limpando qualquer vestígio de que esteve ali. Saiu por uma das portas de minha casa, entrando novamente e fazendo um escarcéu. Bradou aos céus e à terra, “o quarto dele está trancado!, ele não responde!, Brendon!”. Revirei meus olhos de fantasma enquanto podia. Aquele teatrinho mal feito podia ludibriar qualquer um.

Arrombaram a porta, dando de cara com meu cadáver. Olharam todas aquelas garrafas no chão, o cachimbo com o tabaco espalhado no tapete, as marcas de vinho manchando-o de roxo. Muitos choraram minha morte. Era até interessante de saber o quanto se importavam. Ou não.

Minha família e amigos, foram todos chamados. Conversavam sobre como eu tinha desistido de tão boa vida. A mentira de Mary havia contagiado a todos.

— Ele iria casar com uma Delashair! Lástima!

— Pobre Brendon… suicidar-se foi uma péssima escolha.

— Mary!, meus sentimentos.

Por que todos lhe atiravam condolências? Ela agia como se fosse minha esposa, agora viúva, vestida com seu melhor vestido preto, e um camafeu no pescoço com minha pintura em uma das paredes.

Eu poderia vomitar se não estivesse tão… etéreo.

Na preparação de meu velório, Mary foi encarregada de banhar meu corpo, juntamente com minha tia, a mãe de Lisa — que era cega de um olho, a pobre mulher. Fecharam e abriram a janela, pararam os relógios na estimada hora de minha morte. Cobriram meu corpo em renda branca. Lamentaram minha morte, chorando aos pés de meu caixão. Tudo conforme o combinado. Um dia antes para o fim de outubro. Mary praticamente esperneava, ajoelhada à minha frente.

Vós mal sabeis, foi Mary Ravin que criou a famosa frase “deixem-me ir com ele! Leve-me, Brendon!”. Farsante.

Não era possível que ninguém ali escutasse meus gritos de desespero.

— Enterrem-na junto! Livrem-se dela! Eu estou aqui!

De nada adiantava gastar toda a força que eu sentia ter naquele momento. Encarar, tentar jogar algo em alguém como se fosse um legítimo fantasma, nada funcionava! E, em ato de indiferença, sentei-me em uma das poltronas e continuei encarando.

Mas algo despertou em mim um sorriso diabólico, quase como o de Mary no momento de minha morte. Lisa! Lisa! Ela entrava, ao lado da mãe, que ainda chorava, soluçava depois da Sexta Regra.

— Ele está em um lugar melhor, não é, padre? — perguntou meu pai, encarando Lisa.

O padre Theodore pigarreou.

— É… suicídio não é aceito por Deus e…

— Ele está em um lugar melhor. — reforçou minha mãe, novamente.

— Não, não está. — disse Lisa, me encarando.

Viu o padre afastar-se e sair pela porta, negando a extrema-unção, já que eu estaria no inferno no momento, ele pensava.

— Ele está na sala. — sussurrou Lisa. — Bem ali.

— Filha, acho que você… está indo longe demais.

Elisabeth correu ao meu encontro, tentando disfarçar sob os olhares das pessoas. Olhou meu corpo, os olhos correndo para mim, logo ao lado.

— Ajude-me, Lisa. — implorei, à frente dela.

— Mataste-se?

— Consegues ver-me?

— Consigo. Mataste-se? — repetiu.

— Não!, nunca!

— Então me diga, quem fez isso?

Eu, primeiramente, achei que ela estivesse brincando. Sua mãe veio até ela e nós disfarçamos, como se eu ainda estivesse vivo, sendo visto pelos outros. A menina baixou os olhos para os sapatinhos, balançando os dedos dos pés.

— Mary. — sussurrei.

Lisa encarou-me e puxou a mãe para baixo.

— Mary matou Brendon, mamma.

— Não diga essas coisas.

— Mary matou Brendon. Como, Brendon?

Levantei-me da poltrona enquanto a pequena me observava.

— Eu acho que… envenenado. Dormimos juntos.

— Brendon disse que ela o envenenou. E que eles dormiram juntos. Eca!, Brendon, você disse que não gostava dela. — sibilou para mim.

Minha tia estava espantada. Era a que mais acreditava na filha, a que mais a protegia de todo o mal que o mundo poderia lhe causar apenas com seus dons.

— Você… tem provas, Brendon? — perguntou a mais velha, tentando caçar meus olhos fantasmagóricos.

Pensei, durante muito tempo. Mary havia limpado tudo no local. Bem, quase tudo.

— O batom dela. Na garrafa de vinho que estava caída no tapete.

Lisa repetiu.

Não foi mais de uma hora para que meus pais e minha tia confirmassem o feito. O batom vermelho de Ravin manchava o gargalo da garrafa de vinho que ela bebeu para apaziguar os ânimos.

Tomando a mesma nas mãos, meu pai entrou na sala, tempestuoso.

— Foi ela! — gritou, apontando para Mary, que encarava meu corpo. — Ela matou meu filho!

Burburinho, cena de comoção, teatro angelical.

— Eu amava seu filho, senhor Urie. — murmurou, cabisbaixa.

— Amava, sim! — bradou minha mãe. — Você o envenenou.

Arquejos na plateia. O show estava somente começando. Lisa e eu saíamos de fininho pelo canto do cômodo, ainda encarando a cena do show de horrores.

— Nunca! Não! — gritava ela.

— Têm alguma prova? — perguntou o pai dela para os meus.

— Óbvio. Uma acusação dessas deve ter uma prova! Que calúnia, Mary nunca faria isso! — os convidados fervilhavam.

Meu pai jogou a garrafa no chão, que não quebrou com a raiva dele, por algum dom divino. Todos encaravam a mesma, descrentes.

— Uma garrafa. — murmurou o pai de Ravin. — E então?

— O batom da sua filha está no gargalo! — ralhou minha tia. — E o veneno em pó que ela usou na outra garrafa ainda está fresco.

Eram provas incontestáveis demais. Todos a encaravam, assustados. Até um de meus amigos gritar.

— MATEM A BRUXA!

E todos acompanharam seu brado de ódio. A garota Mary, de dezoito anos, correu desesperadamente por sua vida, sendo parada por uma armadilha de rede, atirada por uma arma estilo steampunk.

Mary foi levada até um pilar, onde foi amarrada e amordaçada em praça pública, levadas em conta as provas de meu homicídio. Atearam fogo ao seu corpo, que berrava por perdão.

Bruxas não são perdoadas.

Nunca.

Exceto uma.

Lisa mexia nos sapatinhos, enquanto eu via Mary torrando pela janela.

— Obrigado. — murmurei. — Por ajudar a esclarecer.

— Por isso, eu nasci. — disse, divertida.

— Eu tenho mais uma pergunta.

A menina ergueu os olhos para mim.

— Por que eu não fui para o céu, ou para o inferno? Não vejo mais nenhum espírito aqui.

— Espíritos com causas incompletas ou que foram ceifados da vida muito cedo por algo injusto, sabe, tendem a ficar aqui e resolver. Alguns ficam tantos anos que conseguem até mesmo mexer nas coisas. Outros, têm pessoas como eu por perto.

Olhei para trás, deixando de ouvir os gritos de Mary.

— Ela logo estará aqui. E eu já estou indo. Mamãe!

Lisa chamou pela mais velha, acenando para mim.

— Você já pode ir descansar, se quiser.

Uma luz invadiu meu espaço, brilhando logo acima de mim. Pude ver uma loira entrando pela porta onde estava Lisa.

— Oi, Katherine. — cumprimentou a menina. — Brendon está em um lugar melhor.

— Certamente. — disse a loira, sorrindo, em meio a poucas lágrimas.

Ela sorriu, Lisa sorriu.

Eu sorri.

— Brendon. —  A voz de Mary estendia a mão para mim, nas profundezas da escuridão que a rodeava. — Somos só nós dois novamente.

— Não. — respondi. — Agora, é só você.

A luz me aguardava.

Eu iria para um lugar melhor.

 

...FIM?...


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