Cenário: cafeteria. Motivo? Uma quase Meireles escrita por Poésy


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Peguem suas xícaras, seja para café, chá ou até mesmo, aventurem-se em um frapê. Boa leitura!



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“Um chá, por favor?”

"A moça do café",é assim que eu a chamo mentalmente. Moro ao lado de uma cafeteria arrojada, não muito longe do setor universitário e já faz um tempo que me atento a um movimento em específico. Sabe, empresas marcarem reuniões em cafeterias, especialmente esta, é algo rotineiro, ok, vá lá. Mas estudar horas à fio? Sozinha? Bom, isso prende minha atenção.

O padrão de seu pedido também. Sempre a mesma bebida e uma alternância aos sabores das tortas doces. Primeiro o frapê, tomava-o pela metade, pedia a torta. Após terminada, voltava ao frapê. É quase um ritual, talvez seja mesmo. Notebook ligado na tomada, um livro em mãos, bloco de notas adesivas azuis ou amarelas ao lado, headfone com bluetooth vermelhos, que notei, todas as vezes estava desligado. Devia servir como um abafador de som, não encontrei outro motivo.

Ela? Um aproveitamento considerável em estudos em plena cafeteria com música boa. Eu? Uma observadora que não ganha nada espionando a vida alheia, mas continua o fazendo. Ao menos, quando se trata dela.

Meus finais de semana já ficaram marcados pela sua presença, torcia acertar o dia, sábado ou domingo, em torno das 16h, em que sei que estaria aqui. Fica cerca de 4h ou 5h, estudando. Não que eu aguardasse todo esse tempo, mas fiz amizade com uma das funcionárias, que aparentemente reparou meus olhares à moça estudiosa. "Intrigante, não? Uma santa concentração, fico passada com isso!", uma vez comentou. Com dias melhores, ou piores como qualquer um, era realmente admirável, olha-la me inspira. Acaba que quando chego em casa, adianto algo ou leio algo literário. Pensei em tentar usar a cafeteria também, mas parece ser algo dela.

Divirto-me, também, quando seu corpo ginga com a música do ambiente, quase sem ela perceber que o faz. Aparenta gostar de pop e músicas latinas. Descobri que por trás da aparência séria, possui um sorriso aberto muito bonito. Bonito e convidativo. Convidativo o suficiente para oferecer pagar um de seus frapês e ouvir um pouco sobre a temática que ela tanto se debruça a conhecer. Bom, isso fica no plano das ideias. Assim como idealizo o quanto aqueles olhos devem brilhar, quando fala do que anota compulsivamente no seu "Dell". Já dizia Helena que se diverte ao me observar, observando: "ela deve ser uma apaixonada!".

Apaixonada quem esta sou eu. De alguma forma, imersa em uma cafeína de fim de semana. A cafeína, para mim, é uma droga lícita. Vicia. Acelera meu coração. Justo eu, a calmaria apreciadora de chás. Apenas tomo chás, com meu pequeno luxo de fim de semana, ingleses. Porém sinto trepidar em minhas veias a marcante pulsação do café. Um gosto doce e amargo em minhas papilas gustativas.

O café cai em meu estômago como uma azia inebriante, insistente. Incomoda mas instiga a continuar, afinal, viciei. A adrenalina de ser capturada pelo olhar dela, que poderia descobrir a direção dos meus, tão constantes. Poderia ela desvendar o meu interior que grita em pousar minha xícara na sua mesa? Esses olhos apenas curvam-se perante livros, são apenas atentos a suas transmissões? Será ela uma distraída em seu mundo teórico? Desejo ser localizada, de fato? Será que não sou eu, na realidade, uma forjadora de imaginações e seja esse meu deleite? Idealizar para manter o fogo de minha discreta chaleira aceso?

Sou conduzida para a realidade quando vejo a dança de seus longos fios castanhos escuros se soltarem do headfone. Outro traço, que esqueci de mencionar, é que ela é a única por aqui que leva, assim que termina, seu prato e copo para o balcão. Não há nenhuma solicitação na cafeteria que  requira esse feito. Helena a acha uma gracinha por isso, "Uma jovem educada, isso pode ter certeza, Bel!". Também já disse e faz questão que eu saiba "ela tem um sorriso lindo, você também poderia apreciar isso se não fosse tão sonsa!".

Ah! Nem sei o que faço a respeito disso. Olho em meu celular, são 20:22,  percebi que a "moça do café" levantou e recolheu seus materiais. Rotineiro, deve estar de saída, sua missão do final de semana esta cumprida. É sempre pior quando ela vem aos sábados, poderia deixar meu domingo mais proveitoso, mas o resquício do efeito do café, o qual não tomo, despeja a cólera em minha mente.

Recolho minha bolsa e sinto alguém se aproximar de mim, deve ser Helena vindo me aturdir, para variar. O tilintar de um xícara se choca contra a mesa, seguida pelo  tilintar mais grave do que percebi ser um bule de igual porcelanato. "Se não for um incômodo, poderia ficar mais um tempo, por favor? Eu gostaria que me acompanhasse a tomar esse chá." Definitivamente a voz não é de Helena, nem essas unhas não esmaltadas, porém muito bem cortadas (pontada lésbica modo ON).

O sorriso não mostra seus dentes, é constrangido e meigo. O headfone abraçado em seu pescoço confere-lhe um charme despojado. Geralmente não gosto da combinação verde oliva (na verdade, qualquer verde) com vermelho, mas essa composição jaqueta-fones de ouvido combinou nela. A pesada mochila preta sustentada por um único ombro esta quase escorregando, ansiando tomar o rumo ao chão. Os cabelos jogados para o lado. Os óculos ovais, que sempre achei deixarem-na com um tom mais sério, estão espelhando minha imagem e se encontram levemente caídos, revelando-me olhos castanho escuros um tanto mestiços  (outro charme!).

Percebo que estou há uns segundos sem respondê-la, afinal estou embasbacada a encarando."Claro, sente-se....". Olha a educação, Isabel! "Por favor!", complemento em seguida. Despejou, sob meu consentimento, seu chá do bule em minha xícara. Adoçou-o, junto a mim, com seu doce olhar. Em meu estômago uma paz, as borboletas voam livremente.

Seu nome é Cecília. É estudante de psicologia e está em seu último ano de curso. Descobri que seus óculos são, de fato, para conferir-lhe um caráter mais "grave", os pacientes apresentam mais respeito perante sua pouca idade. "Formular a aparência pode ajudar, tanto a eles quanto a mim. Tenho outra armação, mais moderna, mas me sinto melhor quando leio com estes", ri de si mesma e da pequena possível dependência que criara sobre si.

Após eu falar a meu respeito e como estou, apenas, no primeiro ano da faculdade de letras, perguntou-me se eu nunca tentara ler na cafeteria. Após minha resposta, confessou-me que era quase uma magia estar em contato literário nesse ambiente, tudo era mais saboroso (conveniente o pensamento dela, uma taurina). Descobriu paz e maior foco e aí está quase que o total segredo desse feitiço da escolha de local.

"Como assim 'quase'?"

E assim, em um tom abaixo de seu timbre de voz  e os olhos puxados direcionados aos meus, terminou sua confissão, com um lampejo de tropeço nas palavras: "há um motivo para ser exclusivamente essa cafeteria: é saber quem mais a frequenta.". Agora a cafeína afogou-me até a garganta e posso sentir meus batimentos trepidarem. Devo estar a olhando de forma apreensiva, pois ela abaixou sutilmente a cabeça para, após, sorrir-me de canto e sem jeito: "a moça bonita com uma flor de lótus tatuada e que está sempre a me observar".

Definitivamente trocar de número com Cecília não fazia parte de meus planos. Conversar com ela a semana toda por whatsapp, até o próximo sábado, também não. Lermos juntas, na cafeteria de sempre, "A Carta Roubada" de Edgar Allan Poe, muito menos. Ela ser muito mais fascinante que minha imaginação permitia, até então, foi inesperado. Darmos um beijo que durou mais de uma hora no "happy hour" da psicologia, que combinamos de ir mais tarde foi uma surpresa (agradabilíssima, por sinal). Ela deixar-me em minha casa e eu convidá-la para entrar fez meu nível de cafeína quase me enfartar. Acho que, de fato, enfartei quando ela aceitou, me olhando de maneira penetrante.

Passar a noite em semi-luz trocando poesias que traduzem o prazer na pele, compartilhando a riqueza dos detalhes onomatopeicos, desbravando a linguagem corporal, o potencial da língua no contexto literário do desejo, as rimas dos batimentos cardíacos quando enlaçadas em harmonia pela manhã...

"Cecília 'Mequeres'?"

"Sim, posso ser sua poeta."

Pronto, finalmente meu chá está servido.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham saboreado. Até qualquer dia!



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