Doze anos de solidão escrita por iFancy


Capítulo 1
Prólogo




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Narração – Autora

Dezembro

New Castle, Delaware

Nesta época do ano, New Castle costumava estar debaixo de gelo. As ruas, quase intransitáveis, eram completamente desertas, recebendo apenas as coloridas luzes vindas dos pisca-piscas das casas e lojas. Ninguém tinha coragem ou disposição para enfrentar a ventania lá fora, o que fazia da cidade naquela estação quase que um cenário de filme de faroeste, só que com neve.

Freddie Benson, porém, um morador de New Castle praticamente desconhecido, escolhia justamente esta época para andar pelo centro da cidade. Era um hábito um tanto peculiar, mas não assustador. Afinal, há quem prefira a solidão.

Com vinte e oito anos, era um belo jovem de pele bronzeada e corpo robusto, marcado, aqui ou ali, pelos sinais de sua reclusa vida. Distante das pessoas, ele se cuidava a sós numa casinha pacata localizada no extremo sul da cidade. Era preciso boas pernas para traçar o caminho até sua residência, caminho este repleto de ladeiras, buracos e armadilhas.

Como de costume, então ele foi à cidade a carroça, deixando o cavalo próximo a uma área verde, ainda não coberta por completo pela neve que estava apenas começando a cair. Caminhou uma boa distância até a rua principal, naqueles dias, vazia, sempre bem atento aos cartazes que anunciavam mercadorias, promoções de Natal e festas natalinas. No entanto, não se deixava influenciar por nenhum.

—Bom dia! – Uma velha senhora, que passeava com o seu cachorro, saudou o jovem, mas este prosseguiu seu caminho, sem nem mesmo erguer a cabeça, ao contrário, baixou-a ainda mais.

Adentrou ao correio, rumando sem pretextos na direção do balcão da recepção. Antes precisava apresentar-se e dizer à que vinha, mas, depois de tanto tempo fazendo aquilo, o homem uniformizado num traje azulado apenas puxava da gaveta uma carta com o carimbo do exército e entregava-a a Freddie, que sempre virava as costas e ia embora sem agradecer.

Geralmente saía do correio e refazia seu trajeto até onde havia deixado sua carroça, mas naquele dia resolveu seguir um pouco mais e olhar as vitrines das lojas próximas ao único posto de gasolina existente na cidade. Deteve-se diante de uma televisão, que estava por trás de um vidro um pouco úmido, e assistiu atento às imagens coloridas que iam sendo passadas. Na mão esquerda, a carta estava segura. Sua outra mão, porém, tocava a vitrine, com seu dedo indicador movendo-se preguiçosamente pelo vidro, como se quisesse tocar o televisor.

—Socorro!

Uma voz ressoou pela rua vazia. Era uma voz fina, frágil, que trazia em si um pavor horrendo. Freddie, por ter uma audição extremamente aguçada, olhou imediatamente na direção do posto de gasolina, que estava há dois quarteirões de distância. Olhou bem, se certificando se havia alguém ali, porém não viu um só ser vivo. Voltou-se, então, para a televisão, mas foi importunado novamente.

—Alguém me ajuda!

Olhou na mesma direção e lá estava uma garota loira trajada num short branco sujo de sangue.

Não houve tempo para que Freddie absolvesse à imagem que estava diante de seus olhos. A garota, que continuou gritando por ajuda, veio correndo com tamanha velocidade que, ao atingir o moreno, quase o derrubou no chão.

—Estão me perseguindo! – Dizia ofegante e com a voz engolida pelo choro.

Mais uma vez ele olhou na direção do posto e viu um sujeito vindo correndo, armado com uma faca. Então, sem perder a expressão neutra de seu rosto, sacou da cintura uma velha pistola. E foi sentindo o corpo da pequena garota tremer que disparou duas balas na direção do homem armado, acertando-o no peito.

—Eles me sequestraram. Tiraram-me da tia Sharon e quiseram me levar para um lugar estranho. Por favor, me ajuda! Aquele homem me feriu.

Apavorada, a garota puxava freneticamente a roupa de Freddie, que apenas desceu o olhar, olhando para onde havia uma enorme mancha de sangue. Do ângulo, de onde viu a ferida, identificou logo ser uma perfuração feita por aquela faca que o sujeito, agora morto, trazia em mãos.

Não disse nada. Desgrudou a menina de seu corpo e a guiou rua a fora, até sua carroça. Ela, assustada, colocava toda sua esperança naquele que não falava, não arqueava as sobrancelhas, não franzia a testa, não se assustava... Não sorria.

Já diante da carroça, Freddie subiu, estendendo a mão para a garota que, desolada, aceitou sua ajuda. Talvez, em sua mente traumatizada, aquele moreno, tão sério e estranho, fosse um anjo, desses que ouvia falar nas histórias. Mas, mesmo se sentindo protegida, ela chorava copiosamente, enquanto gotículas de sangue sujavam a madeira da carroça, pingando por todos os lados.

Freddie, no entanto, não se deixava comover pelo choro.

...

Depois de trinta minutos dentro de um denso matagal, a menina finalmente vislumbrou uma vista um tanto rústica demais, desde o topo de um pequeno monte. Lá estava uma casinha simples feita de madeira; ao seu redor, um gramado religiosamente cuidado; galinhas ciscavam pelo terreiro, fugindo, ora ou outra, de um cachorro vira-lata que passeava por lá; um pouco mais a baixo estava um chiqueiro bem construído, perto de algumas vacas que se alimentavam como se a paz mundial houvesse sido conquistada; ainda ali era possível ver um pequeno celeiro, curral e estrebaria, todos feitos com boa madeira; além de hortas, nesta época do ano, cobertas por neve. O tempo da colheita havia passado.

Freddie pulou para fora da carroça e abriu a cancela, voltando à carroça rapidamente.

—Você mora aqui? – Perguntou, já com o choro amenizado. Encarou o moreno, ao não receber resposta. –Você mora aqui?

Ela insistiu mais algumas vezes, chegando a pensar que a surdez era a razão, mas precisou interromper suas tentativas quando, novamente, Freddie pulou para fora da carroça, rodeando-a e indo ajudar a garota a descer.

Abriu a porta da frente, revelando o interior da casa com apenas três cômodos. No que seria a sala, encostada na parede, em frente a porta, havia apenas uma pequena mesa de madeira com duas cadeiras que se fazia presente bem debaixo de uma janela que dava para os fundos, de onde era possível ver o celeiro e o chiqueiro, e uma lareira improvisada. À esquerda um pequeno quarto com uma cama, um guarda-roupa velho e um piano esquecido debaixo de um lençol já amarelado pelo tempo. À direita, o que seria a cozinha, com apenas um fogão de lenha e uma estante improvisada com algumas madeiras, onde era guardado talheres, panelas, vasilhas, copos e mantimentos armazenados em grandes potes transparentes. A casa cheirava à lenha e o sol despistado que entrava pelas frestas trazia a ela um calor fraco de manhã nublada.

A garota permaneceu parada à porta, enquanto Freddie foi até o pequeno quarto e apanhou de dentro do guarda-roupa uma maleta, com agulha e linha, e um pano, deixando-os sobre a mesa, na sala. Depois seguiu para fora da casa, passando pela cozinha apenas para apanhar uma pequena bacia. Curiosa, a menina espiou pela porta, vendo o moreno caminhar até um poço, que até então não havia reparado, perto do galinheiro, um pouco à frente da casa.

Ao voltar, Freddie apontou para a mesa e a garota, entendendo a mensagem, foi se sentar em uma das cadeiras. Observou, então, o moreno abaixar-se à sua frente, segurando sua perna para analisá-la.

—Ele me deu uma facada quando quase me alcançou, mas eu corri rápido – contou o ocorrido, mas perdeu um pouco da voz quando Freddie derramou um pouco de água sobre seu ferimento, causando nela gemidos de dor.

Porém o pior ainda estava por vir e ela não esperava por isto.

Sem se preocupar com os gritos da menina, Freddie costurou o profundo corte que havia em sua perna. Como se estivesse de fato surdo e insensível aos chutes que ela o dava com a outra perna, o moreno fez o seu trabalho calmamente.

Ao término, deixou a sala que estava preenchida pelo choro da garota, e foi buscar mais água, mas desta vez, ao voltar, passou direto para a cozinha, acendendo o fogão de lenha, colocando uma panela cheia d’água sobre o fogo.

...

O banheiro era externo à casa, porém para banhar-se era preciso despejar a água aquecida sobre uma enorme banheira, disposta do lado de fora do banheiro, rodeada por um pano florido, que fechava-se em meia lua.

Freddie apanhou uma toalha no guarda-roupa e, passando pela sala, fez sinal para que a menina o seguisse até o banheiro. Já havia despejado a água aquecida na banheira e, ao abrir a cortina florida, fez um gesto para que a menina entrasse.

—Tenho que tomar banho aqui? Você não tem chuveiro?

Ele não a respondeu. Deixou a toalha sobre os ombros da garota, fechou a cortina e voltou para dentro da casa. Ela, confusa, mas faminta e com dor, compreendeu que aquela era a única maneira de tirar o fedor de sangue seco impregnado em seu corpo.

Ao concluir seu banho, ela não soube o que fazer. Estava frio e suas roupas estavam sujas. Enrolou-se, portanto, na toalha e pisou fora da “área de banho”, correndo para dentro da casa, assustando Freddie que estava concentrado na cozinha.

—Minhas roupas estão sujas.

O moreno apontou para o quarto, para onde a menina foi e encontrou um short e uma blusa, ambos masculinos.

—São de menino. – Foi à cozinha, inconformada, mas recebeu apenas um olhar do jovem que logo voltou a prestar atenção nos legumes que ferviam.

Ela, como já vinha fazendo, entendeu a mensagem. Voltou ao quarto e vestiu as peças sem reclamar, mas confusa por todo aquele silêncio.

...

—Qual é o seu nome? – Perguntou ao receber seu prato com sopa de legumes, mas, como sempre, nada ouviu. – Eu sou Samantha, mas todos me chamam de Sam. Você não é de falar muito, não é?

Freddie, que comia faminto, prosseguiu de cabeça baixa, sem dar muita importância às palavras da garota.

—Amanhã você vai me levar para a tia Sharon?

Ele a encarou.

—Tia Sharon deve estar morrendo de saudades. Você tem mãe?

Em silêncio, ele voltou o olhar para o prato.

—Bom, eu também não tenho, mas a tia Sharon é como uma mãe para mim. – Finalmente olhou o prato e o empurrou. – Não gosto de sopa de legumes.

Freddie ergueu os olhos novamente e empurrou o prato na direção dela, voltando a comer.

—Tia Sharon costuma fazer lasanha quando vamos nos aproximando do Natal. Não vou querer. – Empurrou o prato novamente.

Sem mais tentativas, o moreno apanhou o prato e, já concluída a sua parte, começou tomar a sopa rejeitada pela menina.

—Amanhã você vai me levar para a tia Sharon? – Quis saber novamente, mas não mais Freddie a olhou.

 


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