Philia escrita por Mileh Diamond


Capítulo 5
1966


Notas iniciais do capítulo

Finalmente, o último capítulo desse clichê de wattpad /o/
Socorro, Nyah tá me barrando de postar essa belezinha faz um dia já, vamo ver se dessa vez dá *arregaça as mangas*
A todos os que leram esse presente estendido, obrigada! E à Nat, a aniversariante de uma semana atrás, todo esse amor é pra você ♥
Sem mais delongas, boa leitura!!



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Julho de 1966

 

Lilia já tinha dezoito anos e sabia que não se pode ter tudo na vida apenas com perseverança.

 

Era preciso muito trabalho duro, um pouco de sorte e pessoas que te apoiassem. Foi assim que ela conseguiu uma vaga no Bolshoi e ser uma das melhores da turma. Ela precisava disso para conseguir o papel que queria na apresentação de formatura.

 

Todos os anos, um grande espetáculo era organizado para os recém-formados. Era a hora deles brilharem após anos de sangue e suor derramados para alcançarem a perfeição. Lilia derramou muito dos dois.

 

Por isso, ela se achava no direito de conseguir um papel bom.

 

Os diretores disseram que reuniriam atos dos balés Paquita, A Filha do Faraó, Dom Quixote e O Cavalinho Corcunda. Quando anunciados os títulos, várias risadinhas foram seguradas entre os alunos, cada um apostando em quem seria a pessoa "sortuda" a ser o cavalo da última peça. Lilia nem prestou atenção. Ela só tinha um objetivo em mente: ser Kitri em Dom Quixote.

 

Podiam dizer que a personagem não combinava com ela, que era muito feliz para sua personalidade um tanto seca. Mas ela gostava da história. Uma garota que está sempre rejeitando o interesse amoroso, um amor ameaçado pelo pai, a atmosfera contagiante das danças espanholas... Ela queria aquilo.

 

Por isso, quando começaram a discutir a formatura em maio, ela decidiu que faria o possível e um pouco do impossível para conseguir o papel. Todas queriam Kitri. Mas apenas uma teria essa honra, sendo ao resto delegadas as funções de solos bonitos, mas não com o mesmo glamour. Não precisamos nem falar do corpo de baile.

 

Lilia decidiu que precisava ser a aluna perfeita até o dia em que distribuíssem os papeis. Ela precisava melhorar suas aulas de interpretação, deixar suas aterrissagens mais leves, não esquecer das matérias da escola...

 

Ela teve que dispensar uma grande quantidade de convites para sair, seja de Yakov ou de outros meninos. Uma piadinha surgiu entre os bailarinos dizendo que se você foi rejeitado por Lilia, então você foi "Baranovskado". Muitos meninos ganharam esse título nessa época, mas ela não podia arriscar cometer falhas.

 

— Você vai ficar doente desse jeito. - Yakov disse sério, numa das poucas vezes em que se encontraram nesse período. - Está dormindo bem? Se alimentando?

 

— Estou, mãe. - ela disse parcialmente concentrada na lição de história que tinha trazido com ela para o jardim, para ódio silencioso de Yakov.

 

— Não parece. Suas olheiras aumentaram. - ele suspirou. - Não acha que está trabalhando demais? Você já é uma aluna ótima. Se virem isso, é óbvio que vão te dar o papel.

 

— Mas eu não posso arriscar. - ela levantou o olhar do livro. - É a formatura. É quando todos realmente te conhecem no mundo do balé. Que futuro eu vou ter se tirar, sei lá, um dos Três Rios da Filha do Faraó?

 

— Você seria um rio muito bonito. - ele disse despedaçando um pedaço de grama que ficara preso em sua roupa. - Se te derem Paquita, será tão bom quanto Kitri.

 

— Mas não será Kitri. - ela disse o óbvio.

 

— Tá. Mas você já pensou no "se"? - ele disse endireitando-se no banco. - O que vai fazer se não conseguir esse papel?

 

Era uma ideia tão absurda em sua mente. Não existia "não conseguir" em seu dicionário. Era Dom Quixote e o resto. Se ela não fosse Kitri... Então do que valeu tanto trabalho? Qual a necessidade das noites mal dormidas e dos ensaios além da conta? Um papel menor significaria que ela não foi boa o suficiente, que não correspondeu às expectativas, que era tola por sonhar com o impossível, que...

 

— Lilia? - ela sentiu uma mão em seu ombro, seguida dos olhos preocupados do patinador - Você tá bem? Foi alguma coisa que eu disse?

 

— ...Não. - ela disse balançando a cabeça e desviando o olhar. - Só apaguei por um segundo. Devo estar cansada.

 

Yakov pareceu querer dizer algo sobre aquilo, se o olhar sério que lhe mandou não era pista o suficiente. No final, ele apenas se levantou e pegou sua mochila.

 

— Eu vou parar de te incomodar, então. Mas você tem que descansar.

 

— Yasha, espera... - Ótimo, agora conseguiu ofendê-lo.

 

— Estou fazendo isso porque me preocupo com você. - ele disse segurando sua mão naquela forma gentil que só fazia quando a situação era realmente crítica. - Termina de ler o que precisa e vá dormir. Acorde ao meio-dia, se puder. Você merece. - ele sorriu, mas logo ficou sério novamente. - E não deixe esses idiotas do Bolshoi fazerem você se sentir menor do que ninguém. Se tem alguém que merece todos os papeis principais desse lugar, é você, Lilia.

 

Aquilo a fez sorrir. Um sorriso cansado, porque por mais que se sentisse feliz recebendo apoio, Yakov ainda era seu melhor amigo. Era óbvio que tomaria suas dores, que a via como a mais merecedora do posto de protagonista quando a conhecia há quatro anos bem vividos.

 

Ainda assim, ela agradeceu:

 

— Obrigada, Yakov. - ela disse sincera, fechando o livro. - Eu vou ficar bem. Ainda estão para inventar algo que derrube Lilia Baranovskaya.

 

Ela torcia para que aquela autoconfiança sobrevivesse à distribuição de papeis.





 

 

 

Setembro de 1966

 

As listas vieram na segunda-feira de manhã.

 

Quando todos saíram das aulas para almoçar, as folhas já estavam nos murais. Uma pequena multidão se formou para checar os nomes. Lilia chegou atrasada.

 

Enquanto empurrava educadamente as pessoas no caminho, ela ouviu reclamações, suspiros de alívio ou contentamento, gritinhos comemorativos, um "Quer saber? Foda-se." e a lista continuava. Apresentações sempre rendiam as melhores reações dos estudantes.

 

Ela respirou fundo enquanto tentava entender a organização da tabela. Quatro folhas, uma para cada balé. Dom Quixote era o segundo.

 

 

DOM QUIXOTE

Kitri: Agrafina Ostroumova

Basílio: Oleg Smirnov

Cupido: Anna Matveyeva

...

 

Lilia abaixou a cabeça, colocando os pensamentos em ordem. Ela estava a um passo de uma crise nervosa.

 

Ela não conseguiu.

 

Agrafina, uma loira alegre da turma B cujo pai trabalhava no Congresso, conseguiu o papel de Kitri. Ela, não.

 

A garota forçou-se a procurar seu nome nas outras listas, apenas para saber o tamanho do estrago.

 

PAQUITA

Paquita: Nadezhda Gordeeva

Lucien d'Hervilly: Pavel Vinogadov

...

 

A FILHA DO FARAÓ

Aspicia: Monika Rumyanova

Ta-Hor: Ivan Bogatyrov

Os Três Rios: Olga Mironova, Klara Gurchenko, Ludmila Obolenskaya

...

 

O CAVALINHO CORCUNDA

Ivan: Daniyal Altin

Cavalinho: Domna Yun

Pérolas: Elena Maslak, Evgenia Mednikova

Espírito D'Água: Narkissa Rodnina

Czarina: Lilia Baranovskaya


...

 

 

O último solo. Quase esquecido nos papeis antes de citarem o corpo de baile.

 

Ela seria a Czarina da merda do Cavalinho Corcunda.

 

Lilia sentia que poderia desmaiar a qualquer momento. Não, não, não... O que ela fez de errado? O que ela deixou de fazer, que meta deixou de cumprir pra ser considerada à altura? O que Agrafina Ostroumova tinha que ela não tinha para ser Kitri?

 

Ela sentiu braços a tirando dali, provavelmente porque estava atrapalhando outros que queriam ver a lista. Fizeram-na se sentar, colocaram um copo de água em sua mão, mas a água começou a espirrar um pouco pra fora. Estava tremendo?

 

— Lilia. - uma voz masculina ressoou abafada em seus ouvidos. - Lilia, consegue me ouvir?

 

Seus olhos subiram para o dono da voz. Era Daniyal, com seus usuais e sérios olhos castanhos, agora tingidos de preocupação.

 

— Você está bem?

 

Ela estava? Não sabia dizer. Ela não sabia de nada agora. Ela sabia que não seria Kitri. As palavras com "D" que Yakov disse anos atrás voltaram. Decepcionante, desapontador, deprimente. Lilia era todas aquelas e mais algumas.

Por não ter tido uma resposta, Daniyal usou o tratamento de choque:

 

— Quer que eu chame Yakov?

 

Aquele nome foi o suficiente para ela se recompor.

 

A garota respirou fundo (aparentemente ela tinha parado) e esfregou os olhos levemente marejados. Nem morta que ela deixaria Yakov vê-la assim. Que cena constrangedora seria depois dela dizer que "nada derrubava Lilia Baranovskaya".

 

— Não, Danik. Mas obrigada. - ela conseguiu dizer antes de beber a água. Pouco a pouco ela estava se acalmando.

 

Havia mais alguém com ela, agora que notara. Uma menina com feições asiáticas que ela vira algumas vezes pelos corredores, mas com a qual nunca falou. Seus olhos tinham um misto de compaixão e irritação.

 

— Não se sinta mal por ter tido uma crise. Eu também fiquei a um passo de chutar aquela parede quando li os papeis. - ela disse e pareceu se lembrar de uma coisa. - Não nos conhecemos. Eu sou Domna. Mas a partir de agora todo mundo vai me chamar de "Cavalo."

 

Ah, então era ela.

 

— Você não foi a única em choque, Lilia. Ninguém se conforma com Ostroumova ter conseguido Kitri. - Altin assegurou e depois continuou em voz baixa. - Estão dizendo que foi comprado.

 

— Comprado? - ela ecoou no mesmo tom.

 

— Claro que foi. Aquela garota tem a leveza de um alce, não serve nem pra fundo de cena. Matveyeva deveria ser Kitri. - Domna resmungou, suavizando logo depois. - Desculpe se você queria ser ela também. Mas a minha amiga quase se matou pra esse papel com uma dieta maluca. Quando ela leu que perdeu pra aquela garota, ela desmaiou. Tá na enfermaria agora. E a bacana fica lá sorrindo como se fosse justo.

 

Cada palavra era como uma faca adentrando em seu peito. Como aquilo podia acontecer justo com ela? As cobras não podiam esperar só um ano para agirem? Ela sabia que aquela forma de pensar era errada, mas ela tinha trabalhado tanto para conseguir algo melhor, assim como outras fizeram. Ser roubada assim machucava muito.

 

— Vadim sabe disso? - ela perguntou franzindo o cenho.

 

— Sabe, mas está de mãos atadas. Tem gente poderosa envolvida nesse esquema. - Daniyal deu de ombros. - Ele gosta muito de você, Lilia. Se pudesse, te daria Kitri. Mas ele já deve ter trabalhado muito para te colocar num solo importante.

 

— Verdade. - foi a vez de Domna falar. - Sabe quem acabou no corpo de baile porque não é a favorita de ninguém? Darya Stepanova.

 

Lilia arregalou os olhos.

 

— Mas ela tem os saltos mais altos da turma. Como a deixaram de fora?

 

A garota abriu os braços como se dissesse "Bem vinda ao Bolshoi".

 

— Política. Acho que só não deram o papel de Cavalo pra ela por pena, porque né. - ela suspirou, porém logo seu olhar se tornou determinado. - Mas quer saber? Eu tô bem. Se esses merdas querem um cavalo corcunda, então eu vou dar o melhor cavalo corcunda da história. Qual papel você pegou?

 

— A Czarina. - ela disse fazendo uma careta para o seu papel.

 

— Olha só, seremos colegas de cena! Todo mundo sabe que a Czarina é até mais importante que os protagonistas. É tipo uma Fada Açucarada com menos patrocínio. - Domna sorriu. - Você vai subir naquele palco e mostrar por que você deveria ter sido Kitri. É a sua formatura, ninguém pode tirar isso de você.

 

Pouco a pouco, ela foi entendendo. De fato, não adiantava se rebelar, havia coisas maiores em jogo. Mas ela ainda podia provar do que era capaz. As coisas não saíram como planejado, mas não era o fim. Ela só tinha 18. Tinha muito o que dançar ainda.

 

 

Foi isso que ela disse a Yakov na próxima vez em que se encontraram, no rinque.

 

Era tão nostálgico. Os dois sozinhos, ele de um lado do muro e ela de outro, conversando sobre balé. Quatro anos passavam tão rápido. E pensar que logo ela não seria mais uma simples estudante.

 

— Eu lamento muito que você tenha sido vítima dessa injustiça, Lilia. - Yakov falou após ela ter explicado sua situação. - Mas estou orgulhoso por não ter desistido. Eu estava preocupado com você se decepcionando.

 

— Você se preocupa demais. - ela disse enquanto o vinil de Trinus finalizava mais uma canção no gramofone. Yakov não mentiu quando disse que gostava muito da ópera.

O rapaz a olhou com os olhos em frestas de quem estava disposto a listar inúmeras razões para se preocupar, mas resolveu fazer uma pergunta no lugar disso:

— Lembra quando eu fiquei mal pelo fiasco de 64 e você disse que ficaria tudo bem?

 

Aquilo resgatava memórias quase esquecidas por Lilia. Ela se lembrava do frio. E das mãos machucadas do amigo que descontava sua raiva num pobre saco de areia.

— Lembro. - ela disse com um sorriso ao recordar a cena. - Foi uma conversa difícil.

— Eu te devo muito por ter me dado aquela dura, Lilia. Por isso, agora, eu vou te dar uma também. - ele arrumou a postura e a encarou com olhos determinados, apenas uma sombra de sorriso nos lábios. - Essa formatura pode significar muito pra você, mas não será nada quando você estiver brilhando de verdade no Bolshoi. Eu quero ver você se tornando prima ballerina, Lilia.

 

— Prima ballerina? - ela disse rindo. - Sério isso?

 

— Acha que eu estou exagerando? Como ousa subestimar a minha Lilushka? - ele disse cruzando os braços.

 

— Ah, agora eu sou sua? - ela disse repetindo o gesto com sobrancelhas arqueadas. - Essa nem eu sabia.

— Então fique sabendo. Minha pequena e graciosa patinha que vai pisar naqueles filhos da puta quando for a principal dançarina do Bolshoi. - ele disse com coragem o suficiente para fazer o ligeiro rubor nas bochechas passar despercebido. - E eu vou assistir da primeira fila.

— Se é assim, não vejo escolha. - ela deu de ombros e estendeu a mão, propondo o trato. - Vou me tornar prima ballerina. E você vai me dar uma medalha olímpica. Combinado?

 

— Combinado. - ele disse apertando a mão estendida. - Agora vá pegar seus patins no depósito. Sinto falta de ter você no gelo.

 

Ela suspirou entediada, mas começou a andar naquela direção. Ela bem que poderia arranjar uns patins só para ela, ao invés de usar os de segunda mão.

— Mas é tão chato, Yasha. - ela disse prolongando o "tão" como uma criança mimada. - Só patinar e girar e fazer aquelas figuras que só você gosta...

— Se quiser que eu te jogue pra cima é só falar. - ele disse sem hesitar. - Te mando mais alto que o Yuri Gagarin.

 

— Hoje, não.

Talvez num dia em que ela perdesse o senso de ridículo e a noção de perigo, poderia pensar a respeito. Até lá, apenas uma ideia a levava às nuvens.

 

Prima ballerina Lilia Baranovskaya.

 

Ela gostava de como aquilo soava.





 

 

Dezembro de 1966

 

É impressionante como apenas um dia conclui tudo que você construiu ao longo dos anos.

Era hoje a formatura. Após oito anos vagando pelos corredores e salas espelhadas da Academia, Lilia não consegue acreditar que acabou. Tantas histórias, tantas danças, tantos pliés e relevés perdidos e  recuperados... Foi difícil dizer adeus. Ela admite que chorou um pouco ao ver suas colegas de quarto fofoqueiras arrumando as malas para nunca mais voltar. Pelo menos, não para os dormitórios.

Os ensaios de O Cavalinho Corcunda não foram tão ruins quanto ela pensava. Daniyal continuava sendo o melhor par para ela, Domna (ou Donika, como Altin chamava) era uma moça amigável quando não estava reclamando da coreografia idiota que lhe deram, as outras bailarinas não estavam se roendo de inveja (provavelmente porque todos ali já se conformaram em encenar uma peça infantil)... Tudo correu bem nos últimos meses.

Ainda assim, caretas não eram evitadas quando se ouvia o abafado som de Dom Quixote vindo de outra sala.

De qualquer forma, estava tudo no passado agora e era hora do grande show. Seus pais e Yegor vieram de Ekaterinburgo para vê-la. Provavelmente ficaria muito caro trazer toda a família. Yakov deveria estar ali também, em algum lugar.

 

O seu ato seria o último da apresentação inteira, numa hora em que todos já queriam ir embora e comemorar a graduação em casa. Agrafina receberia os aplausos enérgicos por Kitri. Ela, palmas educadas e as sinceras congratulações de seus familiares e amigos.

 

Ótimo. Dê a ela tempo livre e ela começa a se autoflagelar.

 

Pela quinquagésima vez naquela hora, ela estava procurando alguma coisa de errado na fantasia. O vestido branco com brocados em pérola e dourado pálido tinha o tutu clássico com um pouco mais de tule para aumentar o efeito de leveza nos saltos e giros. E que giros, vale a pena dizer.

 

Ela deixou para colocar o adereço de cabeça por último, para evitar acidentes. Um kokoshnik é uma espécie de chapéu russo com a forma de uma coroa amarrado com uma fita atrás da cabeça. Dessa vez, os estilistas valorizaram bastante a característica de coroa, criando um acessório brilhante e feito de agulhas, como se os próprios raios de luz estivessem coroando a jovem princesa. Seu cabelo estava preso e com uma longa trança falsa grampeada às suas costas. Sinceramente, só aquilo estragava um pouco seu sonho.

 

(Mas Agrafina usou batom o suficiente para lembrar uma bruxa, então ela estava satisfeita.)

 

— Baranovskaya, apresse-se! Os pássaros de fogo já vão acabar a primeira parte! - a voz de Madame Zlobina ressoou aguda pelos bastidores atrás dela.

 

Oh, Deus. Seu tempo estava acabando.

Ela se levantou da cadeira do camarim, olhando para o espelho uma última vez, respirando fundo e fechando os olhos. Assim que ela os abrisse, ela não seria mais Lilia. Ela seria a Czarina.

 

— Baranovskaya!

 

Ela abriu os olhos e demorou meio segundo para fazer seus pés a levarem até os bastidores próximos ao palco.

De onde estava, ela via as meninas com seus vestidos emplumados com branco e alaranjado. Vadim estava ao seu lado. Ele devia estar dizendo alguma coisa, quem sabe um "boa sorte", mas ela só ouvia zumbidos. Estava agradecida de qualquer maneira.

A música parou, os pássaros congelaram  como estátuas no palco, esperando sua rainha chegar. Ela não os deixaria esperando por muito tempo.

 

Com um último empurrão leve de seu professor, ela andou a passos largos até o centro, parando com as mãos sobrepostas à frente do corpo, a cabeça levemente inclinada e um sorriso para a plateia que aplaudia.

 

Casa cheia. Ela podia se acostumar com aquilo.

 

A música recomeçou e ela se entregou de corpo e alma para a personagem. Shchedrin nem de longe conseguia tomar o lugar de Tchaikovsky em sua lista de compositores comoventes, mas ela entendia o ar melancólico e até sombrio da sinfonia.

Afinal, quem era a Czarina? Uma jovem nobre que vivia isolada numa ilha ou montanha tendo como única companhia os pássaros de fogo, até ser "sequestrada" por Ivan, o tolo, e seu cavalinho corcunda com poderes mágicos.

Como toda nobre, ela andava com altivez e confiança, podendo seus poucos sorrisos serem interpretados como deboche. A ilha é tudo que ela conhece, tudo que ela comanda. Está feliz ali.

 

Será mesmo?

 

A verdade não admitida é que ela está sozinha. Não tem ninguém novo para dançar com ela além das aves mitológicas. Ninguém para quem ela possa exibir os perfeitos grand jetés e equilibrados fouettés.

 

Sim, os fouettés. 32 giros quase ininterruptos feitos no lugar. Durante os ensaios, Lilia se perguntou o porquê de giros tão difíceis num balé para crianças. A resposta foi que os giros eram para ela, não para a Czarina.

E ela amava aquilo.

Um, dois, três, quatro, cinco. O mundo rodando como se ela estivesse num carrossel acelerado.

Seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze. Ela era a única da turma que podia fazer aquilo sem vacilar logo depois. Mas ela conhecia alguém melhor.

 

Treze, catorze, quinze, dezesseis, dezessete. A imagem de Yakov ganhando velocidade num scratch spin ao ponto de ele parecer apenas um vulto no gelo, parando repentinamente e disfarçando o quão tonto estava com um sorriso de lado.

Dezoito, dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro. Lilia perde a concentração sobre seu papel e acaba sorrindo também. Pela memória ou pelo orgulho? Difícil dizer. Agora ela era uma Czarina feliz que momentaneamente se esqueceu da solidão.

 

Vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito. Ela ouviu dizer que eliminaram os 30 fouettés de Kitri da apresentação de Ostroumova. Se não estivesse ocupada tendo uma crise nervosa, ela pararia para assistir e julgar sua rival.

Vinte e nove, trinta, trinta e um. Lilia entende finalmente por que lhe deram os fouettés numa coreografia aparentemente menos importante. Agrafina não conseguiria em sua posição privilegiada porque não treinou para isso. Mas ela treinou. Treinou tanto que se tornou a melhor no assunto.

Foram certos giros que a fizeram amiga de Yakov, afinal.

 

Trinta e dois giros. A Czarina para com um pé para trás, os braços abertos com o ponto alto da música e um sorriso que dizia "É por isso que eu sou a melhor."

 

A plateia parecia ansiosa para bater palmas, só que a cena ainda não chegara ao fim. A jovem princesa dança mais um pouco entre seus companheiros emplumados, exibindo o quanto era talentosa e cheia de vida para quem quisesse assistir. Como conseguia fazer os giros chaines depois daquela sequência quase insana? Devia se sentir um liquidificador americano.

 

Finalmente, cansada de ser a estrela, ela para, tendo como apoio seus amigos, os pássaros, ficando todos acalmados enquanto a música chegava ao fim e era substituída por palmas.

 

Lilia, ou melhor, a Czarina, não teve tempo para apreciar as saudações, pois logo um som estranho fez todas as criaturas em cena se acovardarem. Um estranho!

 

(Nos ensaios, a ordem de Vadim era para as bailarinas "correrem como se estivessem distribuindo meia-calças na Praça Vermelha." Virou uma zona de guerra e ele teve de acrescentar "com delicadeza.")

 

Os pássaros começam a fugir, voando de um lado para o outro e se desvencilhando dos braços desastrados do rapaz. A Czarina não entende o que está acontecendo, mas não pode fugir voando como seus amigos.

 

Ela se assusta com um cavalo que surgiu do nada (Que fantasia ridícula deram para Donika) e congela de medo ao sentir algo puxando seu cabelo, escondendo o rosto nas mãos.

Dedos hesitantes a convidam a ver o invasor e ela é recebida com o sorriso alegre de um camponês (Daniyal só exibia aquele sorriso em atuações ou para meninas que lhe pediam carona, pelo visto) que se curva em reverência e começa a tocar flauta para ela. Aqui começava o pas de deux.

É também o momento em que percebemos algo sobre a princesa. Por trás da aparência fria e arrogante, ela ainda era uma criança, forçada a amadurecer pela solidão daquela ilha. Agora que tinha Ivan ao seu lado, ela sorria e brincava. Estava contente com o novo amigo a ponto de dançar com ele, mesmo sendo tão desengonçado e diferente da mesma.

Quando Daniyal a ergue num sissone, ela percebe, lá no alto, que Lilia e a Czarina eram a mesma pessoa. E Yakov era Ivan.

Antes de se conhecerem, Lilia vivia para o balé e não percebia que estar sozinha podia machucar. Ela, em sua ilha de regras e rotinas e dança, se diferenciava muito das meninas de sua idade porque estava ocupada demais tentando ser a bailarina perfeita, esquecendo-se de si mesma.

Então veio Yakov, com sua própria obsessão e um pulso ligeiramente menos firme que o dela. Ele mostrou, junto com os outros patinadores da CSKA, que ter amigos não era uma perda de tempo, que pedir ajuda não é sinal de fraqueza e que crescer não tem que ser um caminho tortuoso se você estiver acompanhado. Amigos servem para te apoiar quando estiver certo e ensinar, quando errado. Mostram a você o caminho que por algum motivo foi esquecido.

 

Amizade era um tipo de amor. Lilia era muito grata por tê-lo conhecido.

 

A dança chega ao fim com o cavalo adormecendo a Czarina para levá-la até o castelo do rei. Lilia ainda estava de olhos fechados quando os aplausos ensurdecedores começaram a ser abafados pelas cortinas que desceram.

 

— Lilia, você foi ótima. - Daniyal disse sorrindo enquanto a ajudava a se levantar. - Obrigado por me dar a honra de ser seu parceiro.

— Danik, não me faça borrar a maquiagem agora. - ela brincou enquanto eles saíam do meio do palco para trocarem o cenário.

— Eu queria tanto que aquela vaca estivesse te assistindo. - Domna disse com um sorriso vitorioso. - Assim ela aprenderia a levantar uma plateia de forma justa.

 

— As palmas eram pra vocês também. - ela tentou remediar.

 

— Mas nós não fizemos duas velhinhas chorarem. - a garota rebateu, tentando parecer séria em sua roupa equina e falhando miseravelmente. - Aceite isso, Baranovskaya. Você foi maravilhosa. Colha os louros de sua vitória.

A bailarina piscou algumas vezes, levemente atordoada. Colher os louros...?

 

Ela podia pensar nisso depois. Agora tinha que esperar a apresentação acabar por completo para poder agradecer e ver seus pais. Será que eles gostaram? Fazia tanto tempo desde que viram uma apresentação sua, culpa da distância. E o que diria Yakov?

Ah, Yakov. Ela sentia especial falta dele agora. Precisava de um abraço depois desse balé.

 

Os vinte minutos finais passaram voando nos bastidores e logo os solistas foram ao palco um a um para receber as ovações. Primeiro as moças da cena do fundo do mar: o Espírito D'Água e as Pérolas. Depois, vinham os casais de camponeses da introdução. Agora devia ser Lilia, mas Vadim a segurou e mandou Domna ir na frente.

 

— Você vai por último, Linya, junto com Daniyal. - ele disse com um sorriso.

 

— Mas só ele é o protagonista. - ela disse franzindo as sobrancelhas.

 

— E você é a prima ballerina. - ele disse sorrindo ainda mais, segurando seus ombros. - Você merece cada palma, assovio e buquê que receber hoje, Lilia. Dançarinas como você só aparecem uma vez a cada cem anos. Elas nascem para fazer história. A sua só está começando, querida.

Quando viram, o centro já estava vazio, pronto para receber as duas estrelas principais. Altin segurou sua mão e perguntou:

 

— Vamos? Ou quer deixar seus fãs esperando?

Ela sorriu e sinalizou para que começassem a andar.

 

Assim que os holofotes a iluminaram, os aplausos aumentaram em dobro, ou o triplo. Pessoas se levantaram e continuaram a bater palmas. Houve assovios, muitos deles. Ela acredita que ouviu um "Brava!", até mesmo um "Bravissima!", em algum lugar.

 

E eram para ela. Todo aquele alarde em apreciação era para ela.

 

Lilia quase se esqueceu de fazer a reverência diante de tantas sensações. Parecia um sonho. Um sonho do qual ela não queria acordar.

 

Você vai subir naquele palco e mostrar por que você deveria ter sido Kitri.

Ela subiu. Ela mostrou. Agora, ela estava colhendo os louros.

No final, ela gostou muito mais de ser uma princesa solitária do que uma espanhola apaixonada.




 

Os minutos seguintes às palmas passaram como um borrão. Seus professores lhe parabenizaram, alguém lhe entregou um buquê de rosas, Daniyal a puxou para uma foto que seu irmão mais velho de Almaty tirou, Madame Kuroleva a puxou para uma foto com as outras solistas (Agrafina também), ela apertou a mão de pelo menos vinte pessoas diferentes, trocou aquela roupa chamativa por algo mais socialmente aceitável, negou um pedido de namoro do próprio Dom Quixote (será que ele era de sua turma?)...

 

Tudo isso antes de encontrar ao menos uma face familiar.

 

Não foi difícil identificar seu pai na multidão de espectadores. Principalmente quando ele parece ter saído direto de uma reunião da alta cúpula do Exército Vermelho, com várias medalhas adornando  seu uniforme militar de gala. Ao seu lado estavam sua mãe e Yegor, vestidos de forma menos extravagante, mas não menos apropriados.

 

— Lilenka. - Vasiliy disse com um sorriso pequeno, mas que significava muito para alguém que quase nunca sorri. - Achei que teria que organizar uma força-tarefa para te encontrar.

 

Lilia riu.

 

— Um soldado sempre volta à base quando sua missão é concluída. - ela disse contribuindo para a piada interna de uma família de soldados.

 

Um a um, eles se revezaram em enchê-la de beijos, abraços e elogios, sendo que Yegor foi sincero sobre a trança falsa da fantasia ser falsa demais. Ele levou um pequeno puxão de orelha da mãe por causa disso.

 

— Você estava linda, minha flor. A bailarina mais graciosa da noite, sem dúvida. - Kristina disse enquanto acariciava o rosto da filha com olhos marejados. - Parece que foi ontem que te levamos para fazer a prova de admissão do Bolshoi. Era tão pequena. Nem tinha perdido todos os dentes de leite.

 

— Mamãe, por favor, alguém pode ouvir. - Lilia olhou ao redor envergonhada. Com sorte, todos estavam ocupados em suas próprias conversas para notar aquele diálogo constrangedor.

 

— Esse alguém é o seu namorado que está a 15 metros atrás de nós, apenas esperando para ter um momento a sós com você? - Yegor perguntou com aquele olhar idiota que só os irmãos mais velhos sabem mandar.

 

Ela olhou sobre o ombro da mãe (a única na casa com menos de 1,70 metro de altura agora) e, de fato, lá estava Yakov, de terno e com sua inseparável mochila de encrencas, parecendo esperar um ônibus no meio do teatro.

 

— Ele não é meu namorado. - ela disse pela milionésima vez naquela vida.

 

— Mas deveria ser. - Vasiliy disse soando contrariado, como se já tivesse tido aquela conversa mais cedo no dia.

 

Kristina ignorou o que foi dito pelo marido e voltou-se para a filha.

— Encontrem-nos na saída assim que terminarem de conversar. Levaremos vocês para jantar no hotel. - ela assegurou com um sorriso gentil. - Tentem não perder muito tempo.

— É, não demorem com os beijos platônicos de vocês. - Yegor disse segurando uma risada, mas se aqueles dois não acabassem noivos antes de ele morrer, ele ficaria muito bravo. Feltsman era o melhor cunhado que alguém poderia pedir.

 

— Mãe, olha o Yegor! - a garota reclamou. Ela nunca teria paz naquela família? Quando tivesse oportunidade, apresentaria um namorado de verdade e calaria a boca de todos.

Após se cansarem de incomodá-la, sua família se dirigiu à saída. No caminho encontraram Yakov, que pareceu ficar com a postura muito mais ereta quando viu Vasiliy. Considerando o aperto de mão amigável, seu pai não tocou na palavra "noivado" em nenhuma vez. Yasha ainda voltou parecendo que tinha saído de um programa livre olímpico: como se sua honra dependesse de sua performance.

 

— O que foi que ele disse? - Lilia perguntou assim que o outro estava próximo o suficiente.

— Disse que torceria por mim no Campeonato Europeu e me convidou para passar o Ano Novo em Ekaterinburgo com vocês. - ele soava descrente nas próprias palavras.

 

— Uau. - ela disse surpresa. - Ele deve ter um altar secreto com a sua foto em casa. Teremos que checar o sótão.

 

— Isso até ele descobrir as músicas que eu ouço. - ele deu de ombros, mas pareceu inquieto com algo. - Tem algum lugar menos cheio pra gente conversar?

 

Ela arqueou uma sobrancelha, ansiedade crescendo em seu estômago. Que tipo de conversa casual precisava de um lugar mais quieto?

 

— Vamos pros bastidores, deve estar vazio lá agora. - ela disse sinalizando para seguí-la.

 

— Parabéns pela apresentação, aliás. - ele disse andando ao seu lado. - Eu filmei.

 

Lilia olhou para a mochila. Como não adivinhou antes?

 

— Não revistaram você?

 

— Eu paguei por fora para o guarda. - ele confessou. - Mas valeu a pena. Agora podemos rever o furacão Lilia sempre que quisermos.

 

— Eu ri bem no meio da sequência. Não sei se quero me lembrar desse erro pelo resto da minha vida.

 

— Espero que tenha sido uma piada muito boa.

 

— ...Foi sim. - ela disse com um sorriso que Yakov nunca saberia que era às suas custas.

 

Eles chegaram ao corredor dos camarins, onde apenas alguns funcionários da limpeza passavam de vez em quando, assim como alguns professores. Quieto o suficiente.

 

— Pode começar. - ela disse juntando as mãos atrás das costas, esperando.

 

— Bom, eu só queria te entregar seu presente de formatura. - ele disse coçando a nunca e olhando para alguma mancha na parede, um pouco nervoso.

 

— Presente? - ela arqueou as sobrancelhas, sentindo-se culpada. - Yakov, não precisava disso...

 

— Claro que precisava, eu te dei um chaveiro no seu aniversário de 18. - ele resmungou, provavelmente bravo consigo mesmo, enquanto revirava a bolsa à procura de algo.

 

— Um chaveiro importado japonês com a imagem de um lírio e que toca música. - ela frisou. - Se isso não é um presente legal, eu não sei o que...

Ela calou a boca quando ele mostrou uma caixinha de joias aveludada.

 

— Oh. - foi tudo que ela conseguiu dizer.

 

Yakov, para seu mérito, parecia mais vermelho a cada segundo.

 

— É, eu imaginei algo assim. - ele disse em voz baixa.

 

Merda. Ela pensou em pânico. Ele vai me pedir em casamento. Merda, merda, merda...

 

E agora? Como ela rejeitava um pedido sem ficar estranho depois? Puxa vida, Yakov, justo agora em que ela teve uma epifania sobre o valor da amizade e tudo mais, você resolve pedi-la em casamento! Ou seria só namoro? Feltsman era extra o suficiente para comprar um anel apenas por estarem namorando. Que homem complicado!

Lilia estava pronta para dizer um doloroso e sonoro "Não" quando ele abriu a caixa.

 

E não era um anel.

 

A primeira coisa que ela viu foi o pingente. Uma pedra polida e esverdeada (turquesa?) num molde metálico e prateado, com detalhes que a lembravam a arte barroca que vira em livros. Tudo isso formava a peça arredondada com o diâmetro de uma moeda, ligada a uma corrente também prateada, com a espessura um pouco maior que um palito de dentes. Lilia nunca tivera nada parecido.

 

— O pingente eu consegui com o meu tio. E a corrente eu comprei. - ele disse tirando o colar cuidadosamente da caixa. - Gostou?

 

Se ela gostou?

 

Ela tinha perguntas mais importantes para fazer, como qual emprego na máfia ele tinha aceitado para poder comprar aquilo; ou qual esposa de senador ele tinha assaltado. Ela também queria socá-lo por quase matá-la do coração com aquele alarme falso. Mas ela acabou dizendo a primeira e menos inteligente coisa que veio a sua mente:

 

— Eu pensei que você ia pedir a minha mão. - ela confessou com a voz fraca, ainda se recuperando do pequeno choque.

 

Yakov conseguiu ficar ainda mais vermelho.

 

— Não! Eu nunca... Q-Quer dizer, nós não... Droga, você quer que eu peça?!

 

Não! - ela respondeu na voz mais fina  e desesperada que possuía.

 

A resposta pareceu acalmar um pouco o patinador, mas não por completo.

 

— Bom. Isso soa bom. Porque eu não quero te pedir em namoro, muito menos em casamento, nem agora, nem depois... Não que você não seja digna disso, você é a garota mais incrível que eu já conheci, eu só... - ele parou de falar, balançou a cabeça e levantou o olhar frustrado. - Posso começar de novo?

Ela assentiu devagar, mesmo que sua mente ainda estivesse processando com dificuldade tudo que ouvia.

 

— Estou te dando isso porque você merece. Não só por ter chegado até aqui e superado centenas de obstáculos que muitos não teriam forças pra superar, mas por ser a pessoa a me ajudar com meus próprios obstáculos. Pode parecer exagero, mas você significa muito pra mim, Lilia. Eu não seria o mesmo hoje se não tivesse conhecido aquela pirralha teimosa no rinque anos atrás. - ele sorriu sem graça. - Agora você vai aceitar o meu presente?

 

Depois de um discurso daqueles, ela seria idiota de não aceitar.

 

A bailarina tocou a joia com cuidado, como se qualquer movimento fosse quebrá-la. Era mais leve do que parecia. Ela suspeitava que não tinha roupas boas o suficiente para usar com aquilo.

 

— É lindo. - ela disse tocando a fria superfície da pedra com o polegar. - Deve ter custado uma fortuna, Yakov.

 

Ele deu de ombros.

 

— Eu não gosto de falar sobre números, mas se te deixa feliz, eu gastaria o dobro se fosse para a minha esposa.

 

— Capitalista. - ela disse virando o pingente nas mãos e percebendo uma coisa no verso liso.

 

Havia palavras entalhadas no metal. Ela demorou um pouco para identificar a mensagem por causa do alfabeto latino, mas ela entendeu assim que juntou as letras.

 

Stammi Vicino.

"Fique comigo."

Era uma das músicas de Trinus. A mais emocionada delas, aliás. A favorita de Yakov, até onde ela sabia.

 

— Yakov? - ela mandou um olhar questionador enquanto apontava o pingente.

 

— Eu... pedi pra gravarem isso aí. - ele admitiu constrangido. - É só que... Você se formou hoje, sabe? E isso significa que está pronta para trabalhar em qualquer lugar que quiser, que conhecerá pessoas de todos os tipos. Provavelmente vai se casar e ter uma família. Eu vou fazer o mesmo. As chances de nos afastarmos são altas, mas eu não quero isso. Você é a minha melhor amiga, Lilia. Se possível, eu quero estar ao seu lado em todos os momentos, bons e ruins, até ficarmos velhos e ranzinzas, contando histórias do Bolshoi e da CSKA para os nossos netos. - ele riu um pouco, mas havia seriedade no seu olhar para o que disse a seguir. - Então, fique perto de mim, ok?

 

Muitos e muitos anos após aquele evento, Lilia admitiria que nunca ninguém fez uma declaração tão bonita quanto aquela para ela. Continuaria, por muito tempo, a ser uma das suas melhores memórias daquela época.

Que babaca, ela pensou com os olhos marejados. Me fazendo chorar na minha formatura.

Lilia não disse nada, apenas jogou os braços ao redor do mais velho num abraço apertado, sendo correspondido logo depois. Houve um tempo em que ela tinha que ficar na ponta dos pés para fazer isso. Que bom que as coisas mudam.

— Como se eu conseguisse me livrar de você. - ela disse com o rosto apoiado no ombro do patinador. - Eu te amo, Yasha. Platonicamente.

 

Ele riu, afastando-se um pouco para olhá-la   nos olhos.

— Também te amo, eintlein. - ele segurou sua mão, a que não estava com a corrente. - Amigos?

— Só se for para sempre. - ela brincou.

Yakov olhou para a bailarina como se quisesse prometer muito mais que um "para sempre". O que ele fez, porém, foi aproximar seu rosto lentamente, dando à outra a chance de parar aquilo se desejasse.

Lilia não parou. Ao invés disso, ela fechou os olhos e pressionou os lábios levemente para esperar o beijo que viria. Foi mais um encostar prolongado, um encontro tímido, um toque suave que em nada se comparava aos beijos que ela dividiu com outros bailarinos e que Yakov teve com suas ficantes internacionais. Não tinha a chama ou o calor, mas tinha a confiança. E isso ela não trocaria por nada.

Yakov se afastou com bochechas coradas e aquele sorriso zombeteiro de sempre. O mesmo sorriso que dançou com ela quando tinha 14 anos. O mesmo que trouxe presentes e a ensinou a patinar. O mesmo que acenou pra ela num estádio cheio depois que ela gritou um "boa sorte" para todos ouvirem. Era um de seus sorrisos favoritos. E com sorte, era o mesmo que ficaria ao seu lado nos anos que viriam.

— Para todo o sempre, Lilushka.


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Notas finais do capítulo

Eu, tangenciando o limite da amizade colorida: nOsSA, OLHA COMO ELES SÃO SÓ AMIGOS, QUE COISA MAIS PURA E INOCENTE, ESSE SHIP NEM É CANON #NãoFoiBeijo2018 #SddsTretasDeYoI2016

Algumas informações extras que foram omitidas da história e uma trívia esperta~~
— Eu tenho muita pena de quem tem que interpretar o Cavalo em o Cavalinho Corcunda. Não só parece um papel difícil com movimentos não usuais no balé, o bailarino/bailarina ainda tem que usar uma fantasia koo ;A; #PrayForDonika1966
— Os chaveiros mencionados são da Sankyo e eram modinha nos anos 50.
— Yakov deu um par de patins novos para Lilia no Natal de 1966.
— Agrafina desertou para a América pouco depois da formatura, dando espaço para outras meninas serem julgadas de forma mais justa, incluindo Lilia.
— Daniyal Altin ficou apenas mais um ano como solista do Bolshoi, escolhendo voltar para Almaty e ganhar a vida ensinando dança. O gosto por patinação e motos ele passou para o sobrinho neto, Otabek.
Anos mais tarde, num certo curso de verão, Lilia ficaria ligeiramente contrariada pelo pequeno Altin não ter o mesmo talento para balé quanto Daniyal.

Bem, esse é o fim da história. A interpretação do que acontecerá depois disso deixo por conta de vocês, leitores. Obrigada se você leu até aqui ♥
E a você, Nat, não vou encher de mais açúcar isso aqui, porque a diabetes já matou muita gente esse mês, mas quero que saiba que tudo o que foi escrito aqui foi uma forma de mostrar o quão grata que eu sou por te ter como amiga. Te adoro ヽ(=^・ω・^=)丿

Até a próxima aventura, pessoal!

XOXO



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