Philia escrita por Mileh Diamond


Capítulo 3
1964


Notas iniciais do capítulo

Aqui fazemos valer a tag de Comédia com o meu senso de humor ruim :vv Mas também tem angst porque o que é fanfic minha sem angst, né?
Boa leitura!!



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Fevereiro de 1964

 

Em quase dois anos de amizade, Lilia nunca vira Yakov competir.

 

Justo nesses dois anos, as competições foram fora de Moscou e o governo ainda não se preocupava em televisionar os eventos. Hóquei? Com certeza. Patinação artística? Talvez no próximo ano. Não é como se ela conseguisse assistir nos horários em que passariam, de qualquer forma.

 

Mas eram as Olimpíadas, agora.

 

Yakov conseguiu, após um ouro sofrido no Campeonato Soviético, a vaga para ir a Innsbruck, na Áustria. Eles comemoraram com limonada, bolo, pirozhki e outras guloseimas que patinadores e bailarinos não deveriam provar em dias comuns. Mas era uma ocasião especial.

Ela já vira treinos e uma apresentação para o público no Ano Novo, mas nunca competições. Ela perdera o programa curto por causa das aulas, mas sabia que ele ficou em quinto no ranking geral. Ele ainda podia competir pelo pódio, apesar do ouro ser um sonho quase impossível.

 

Por sorte, hoje era sábado e dia do programa longo. Ela abriu mão de escolher o canal de TV na próxima semana para escolher agora, no refeitório. Havia vários interessados na patinação artística, mas apenas ela realmente tinha alguém por quem torcer.

 

A transmissão em preto e branco mostrava algumas imagens da cidade austríaca enquanto um comentarista falava sobre os últimos eventos. Ela realmente não queria saber quem ganhou a competição de ski alpino ou se a seleção americana de hóquei tinha chance de ir para as finais. Ela só queria a patinação.

 

— Agora mesmo, no estádio de Olympiahalle, a competição masculina de patinação artística terá seu início! Após a segunda parte das figuras compulsórias, o alemão Hans Vohrer continua em primeiro lugar, seguido do francês Jean-Paul Rémy e o canadense Scott Jackson. Nossos representantes Yakov Feltsman e Vladmir Urbansky no momento estão em quinto e nono lugar, respectivamente.

 

— Qual deles é o seu namorado, Lilka? - Elena, da turma A, perguntou ao seu lado.

 

— Yakov Feltsman. E ele não é meu namorado. - ela respondeu sem tirar os olhos da TV.

 

— Ele é bom?

 

— Duh, ele está nas Olimpíadas, Elena. - outra garota se meteu. - Se ele fosse ruim, não passaria nem perto do aeroporto. E Lilia não andaria com gente sem talento.

 

— Shh. Vai começar.  - Daniyal Altin, seu mais novo par de pas, disse também concentrado no programa. Ele parecia gostar de patinação, sendo que esse foi o primeiro assunto sobre o qual eles conseguiram uma conversa de verdade quando se conheceram.

 

Imagens do programa curto de cada patinador repassavam na tela. Ela tinha que admitir, o alemão em primeiro lugar tinha um programa mais interessante, com saltos mais altos e mais spins. Mas ela gostava do estilo de Yakov. Ele conseguia colocar um pouco mais de dança na patinação, não apenas deslizar pelo gelo disciplinadamente e colocar saltos aleatórios a qualquer momento. Yakov sentia a música. E ela viu essa habilidade sendo aprimorada desde o fatídico dia em que chamou-o, juntamente com Dimitri, de boneco de madeira.

 

Que engraçado. Yasha era praticamente um quebra-nozes. Um boneco que por causa dos sonhos de uma menina (a petulância de Lilia, no caso) virara um príncipe no final. Ela sentia orgulho disso.

 

Também esperava que fosse o suficiente para que ele conquistasse, no mínimo, o bronze.

 

Eles não mostraram o reconhecimento de gelo, optando por exibir informações sobre os participantes, com especial foco em Yakov e o outro patinador de Leningrado.

 

— Yakov Eliseevich Feltsman, de 18 anos, competiu nos pares na categoria juvenil entre 1955 e 1959, com a patinadora Irina Lagutina, atual parceira de Anatoly Ganshin. Os dois não se classificaram para os Jogos.

Competindo na categoria individual desde os 14 anos, Feltsman têm feito um nome para si com um estilo diferenciado de outros patinadores russos. O teor artístico de seus programas é visto como incoerente com a disciplina e seriedade militar do Clube Central de Esportes do Exército, popularmente conhecido como CSKA, mas seu treinador Andrei Pudovkin diz que "a disciplina não significa um abandono da beleza."

 

— Até que ele é bonitinho. - Elena disse de novo. - Por que vocês não namoram?

 

— Porque eu não quero. - Lilia disse como se fosse óbvio. E era óbvio.

 

— Então ele quer e você, não?

 

— Não. Ninguém quer nada. - ela respondeu já um pouquinho irritada com as sugestões.

 

— Mas se ele pedir, você aceita?

 

— Não, Elena, não vou. - ela disse se virando para a mesma. - Podemos assistir agora?

 

A garota não parecia satisfeita, mas decidiu que poderia perturbar a colega outra hora, então assentiu.

 

As primeiras apresentações não foram nada de especiais para Lilia, considerando seu amador conhecimento das técnicas. Interpretações medíocres, giros lentos, algumas quedas. Ela só prestou um pouco de atenção ao patinador japonês que usou Tchaikovsky. O resto não valia a memória.

 

E agora, representando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a promessa de apenas 18 anos: Yakov Feltsman!

 

Lilia arrumou a postura na cadeira, prestando toda a atenção na TV agora. Daniyal lhe passou três balas de caramelo ainda embrulhadas e ela agradeceu baixo. Se não tivesse algo para mastigar, suas unhas podiam pagar o pato. Ela comia muito quando ficava ansiosa.

 

A câmera foca em Yakov ainda conversando com Andrei na beirada do rinque. Terno preto, gravata borboleta, cabelo penteado com gel. Ele estava tão elegante, nem para entrar no Bolshoi ele ficava daquele jeito. Mas pra variar, aquilo estava sendo exibido para o mundo inteiro. Ele tinha que parecer um pouco melhor.

 

O diálogo terminou e logo Yakov se dirigiu ao centro do gelo sendo acompanhado pelas palmas educadas dos espectadores austríacos. Não é como se muitos russos tivessem a chance de viajar para o exterior e torcer pelos seus compatriotas.

 

Feltsman irá patinar ao som do Allegro Maestoso de Alexander Glazunov.

 

O patinador firma-se em sua posição inicial, braços ao lado do corpo, patins alinhados, como um soldado pronto para entrar no gelo. Sua expressão era séria, também. O que o russo teria a oferecer para o público? Uma apresentação para demonstrar a dureza e disciplina comunista? Salto após salto calculado meticulosamente vindo de um atleta que via o esporte como mera profissão e razão de estar ali vivo? Eram essas as ideias que passavam pela mente dos estrangeiros ao assistirem os esportistas da União.

 

E, no entanto, com o sinal dado para iniciar o programa, Yakov gira sobre o pé esquerdo e para com o calcanhar, lâmina não encostando o gelo por inteiro. Com as palmas abertas como um garoto que foi pego fazendo algo errado, ele olha para a plateia e dá aquele sorriso. O que Lilia odiava do fundo de seu ser, porque significava que ele estava prestes a desafiar algo ou alguém de uma forma estúpida.

 

A mensagem era clara: russos sorriem também. E eles não fazem só isso.

 

Feltsman fazia jus ao apelido da sinfonia de "Heróica". A energia e ao mesmo tempo leveza que ele colocava em cada momento da coreografia, em consonância com o aspecto altivo da música, mostravam um herói que já tivera muitas vitórias e desafiava o público a questioná-las.

 

— O primeiro double axel! Aterrissagem perfeita!

 

Cada salto bem executado vinha com Lilia expirando aliviada e Yakov na tela sorrindo como se fosse fácil. Exibido, ela pensou. Mas ele de fato fazia tudo parecer mais fácil, desde os impulsos às finalizações, passando pelas transições suaves. Parecia até que ele estava se divertindo ao exibir tudo que ele podia fazer. Olha como é fácil, parecia dizer. Nós comunistas podemos conseguir tudo facilmente através do trabalho.

 

Camel spin! Olha a consistência dos giros, nem Vohrer pode fazer isso!

 

Lilia tem boas memórias dos ensaios de spins. Meninos competindo para ver quem conseguia girar mais rápido e por mais tempo, apenas para Yakov ganhar com seu impecável scratch spin. Lembrava-a de quando se conheceram e ele a girou sem parar como uma boneca. Exceto que ele ia muito mais rápido e decidia quando teria um fim.

 

A apresentação estava indo muito bem até agora. Yakov realmente podia conseguir um bronze. Ela já até o imaginava chegando todo cheio de si, exibindo o círculo metálico para quem quisesse ver e falando sobre tudo que tinha visto na Áustria, inclusive as namoradas. Ele parecia encontrar uma nova em cada país de língua germânica que visitava, provavelmente porque era a única língua que ele falava além do russo. Yakov odiava inglês.

 

O sonho foi desfeito com a imagem do patinador desequilibrando e caindo no gelo.

 

Um "Ai!" quase coletivo assolou o refeitório, mas foi sentido muito mais por Lilia, que agora amassava as embalagens de bala como se elas pudessem consertar a nota de seu amigo.

 

Oh, não, ele caiu! Seria um perfeito triple lutz! Ninguém conseguiu completar esse salto em competições desde Praga, em 1962, com Jim Austen.

 

Não era o axel que Yakov tinha como nêmesis, mas o lutz quase tão difícil quanto. Ela já o viu caindo e completando aquele salto dezenas de vezes, três rotações perfeitas no ar, mas pelo visto não estava consistente o bastante para os Jogos. Pior que isso, ele demorou um segundo a mais do que deveria para se levantar e prejudicou um pouco o ritmo da música. Sua expressão não era das melhores e ele mal podia manter seu tradicional sorriso à mostra.

 

A partir daí, nada foi como antes. Um toque no gelo após um double loop, os waltz mais mecânicos do que antes, sequência de passos que perdeu um pouco do ar orgulhoso que sustentava anteriormente. Apenas os spins mantiveram a qualidade, o programa sendo finalizado com seu conhecido scratch que ganhava velocidades absurdas antes de parar completamente.

 

Yakov não foi o herói prometido, mas foi aplaudido mesmo assim, numa emoção até maior que a do início do programa. Mas ele não parecia feliz. Lilia não podia culpá-lo.

 

As notas chegaram e ela sinceramente esperava algo pior. 5.7. Analisando o conjunto por inteiro, as falhas não pareceram tão grandes aos olhos dos juízes. Não que isso melhorasse o humor dos envolvidos.

 

— Ele perdeu a concentração. - Daniyal disse o óbvio ao seu lado. - É mais resiliente que muitos dos patinadores que apareceram, mas não o bastante para seguir em frente. Foi um dia ruim.

 

— É uma pena. - Elena disse parecendo sincera. - Ele estava indo tão bem. Lilia, você terá que animá-lo agora! Um beijo deve resolver!

 

Ela resolveu ignorar o comentário. Conhecendo Yakov como ela conhecia, agora ele seria uma bolha de raiva e autodepreciação por não ter feito algo melhor. Eles já deveriam estar em Moscou em três dias. Será que ele demoraria para vir vê-la? Ou nem se importaria em aparecer?

 

Ao final da competição inteira, Yakov ficou em quarto, e aquilo pareceu piorar tudo. Porque significava que, se ele tivesse sido um pouco melhor, ele teria levado o bronze. Ela mal podia imaginar como ele estava se sentindo agora.

 

Lilia esperava que ele ficasse bem.


 

 

 

Os três dias se passaram. Depois quatro e cinco. Uma semana e nada de Yakov. Lilia concluiu que ele precisava de um tempo para si, talvez ela fizesse o mesmo em situação semelhante.

 

Uma semana e meia. Agora ela já estava preocupada. Será que ele não viera por causa do frio? Isso nunca foi uma desculpa antes. Yakov apareceria com uma garrafa de chá quente e ela convenceria as inspetoras a deixá-lo entrar e evitar uma hipotermia. Mas no momento, nem isso ocorria.

 

Quando a segunda semana foi completada e ela já estava voltando a odiar o nome Yakov Feltsman, seu nome foi chamado na entrada do dormitório, como acontecia quando recebia o patinador.

 

— É um menino diferente.~ - a garota que veio avisar cantarolou. - Lilia Vasilievna está variando o catálogo.

 

Um menino diferente? Então não era Yakov? Essas e outras perguntas rondavam sua cabeça enquanto ela pegava seu casaco e se preparava para receber o tal visitante. Estava nevando lá fora. Seja lá quem for, deve ter um interesse muito grande nela para sair nesse tempo congelante.

 

De fato, não era Yakov. Demorou para reconhecê-lo com a roupa pesada e a ushanka quase cobrindo os olhos, mas quando ele acenou timidamente, ela soube de quem se tratava.

 

— Hey, Lilka. - Dimitri cruzou os braços para se proteger mais contra o frio. Dizem que os estrangeiros nunca se acostumam devidamente ao frio russo. - Lamento ter te tirado do seu quarto quentinho. Eu queria estar no meu, também.

 

— Onde está Yakov? - ela foi direto ao ponto. Nabiyev nunca foi um a visitá-la diretamente no internato, essa tarefa era especialmente de Yasha.

 

— É, foi por isso que eu vim. - ele pareceu mais sério enquanto escolhia as palavras. - Suponho que você saiba sobre as Olimpíadas.

 

— Eu assisti. - ela disse com pesar e os dois admitiram, naquele silêncio, que a performance não foi boa. E que sabiam o quanto aquilo significava para o patinador.

 

— Andrei nos dá alguns dias para nos recuperar de derrotas assim. Mas eles nunca duram uma semana. - Dimitri balançou a cabeça com o cenho franzido. - Yakov não está bem. Evita o gelo, passa mais tempo na academia ou com aquele saco de areia dele. Quando finalmente vai patinar, é para repetir aquele triple lutz até sair machucado. É como se estivesse se punindo pelo que houve em Innsbruck.

 

Ele fez uma pausa, olhando para a garota e esperando que ela entendesse onde queria chegar.

 

— Ele não aceita ajuda. Eu tentei falar com ele, Ganshin também. Ele dispensou até Irina e eles se conhecem desde crianças. Não acho que iria tão longe, mas temos medo de ele acabar largando tudo.

 

Lilia estremeceu com a última parte, quase sentindo um calafrio. Inseguranças perante falhas faziam coisas horríveis com as pessoas. Ela mesma já teve episódios bem complicados quando começou a estudar no Bolshoi, mas desistir nunca foi uma opção. Por que se não houvesse balé, o que ela faria? Era como um vácuo em sua existência.

 

Para Yakov, não era assim. Ele tinha mais em sua vida. Começara a faculdade de Educação Física, já pensava em ser treinador depois que a carreira acabasse. Mas era muito cedo para pensar nisso. Foi apenas uma falha. Ele tinha tanto tempo ainda.

 

— Ele nem veio me ver. - ela disse não escondendo seu ressentimento.

 

— Porque está com vergonha. - Nabiyev tratou de explicar. - Não quer admitir uma derrota para uma pessoa especial. Ele te considera muito, Lilia. É como uma irmãzinha que ele não pode xingar. - ele arriscou um sorriso. - Ele te ouviria, muito mais do que está fazendo conosco. Por isso, eu peço a sua ajuda para tirá-lo daquela situação.

 

Lilia piscou, um pouco alarmada.

 

— O que eu vou fazer?

 

— Apenas fale com Yakov. Diga o quão idiota está sendo por se fechar no mundo dele desse jeito. Ele é muito mais forte que isso, só não consegue ver. - ele suspirou ao final, fitando-a com expectativa. - O que me diz?

 

Lilia ainda guardava certo ressentimento. Ora, se ele precisava de ajuda, deveria procurar! Mas ela sabia que não era tão fácil assim. Nem todos tinham a habilidade dela de engolir os escorregões do destino e levantar partindo logo pra outra. Alguns levam mais tempo que outros.

 

Yakov era seu amigo. E nós ajudamos amigos.

 

— Só deixa eu pegar um casaco mais grosso. - ela avisou antes de voltar para dentro a passos rápidos.


 

 

O caminho até o rinque foi de pouca conversa. Eles pegaram o ônibus e Dimitri ficou falando sobre como Yakov foi o único patinador da CSKA de Moscou a ir para as Olimpíadas. O resto dos representantes eram de Leningrado e uma menina de Kiev. Eles ainda tinham o Mundial e o Campeonato Europeu pela frente, então um episódio depressivo estava fora de cogitação.

 

Aquilo deveria ser motivo suficiente para animar Yakov. Ora, de dezenas de patinadores daquele rinque (e um dos mais respeitados da União), ele foi o único a conseguir destaque. E quarto lugar era um resultado bom, apesar de tudo, quando se compete com pessoas do mundo inteiro.

 

Quando eles chegaram ao rinque, Dimitri a acompanhou até o prédio adjacente.

 

— É onde ficam os dormitórios e a academia. - ele explicou. - Se Yakov não se moveu desde que eu saí, ele ainda deve estar lutando boxe.

 

— Ele luta boxe? - ela franziu as sobrancelhas.

 

— É um hobby. Ele pode explicar melhor quando vocês conversarem. - ele apontou para o final do corredor onde seguiam. - É a última porta à esquerda. Se estiver vazia, vamos procurá-lo nos quartos.

 

— Você não vem comigo? - ela arqueou uma sobrancelha.

 

— Ele provavelmente vai me trucidar por ter te trazido aqui. - o patinador admitiu sem graça. - Mas não se preocupe. Ele nunca faria nada com um rostinho bonito como o seu.

 

— Sei. - ela retirou as luvas, guardando-as na bolsa de mão. Estava bem mais quente ali dentro do que lá fora. - Deseje-me sorte.

 

— Se isso se resolver, teremos uma foto sua no refeitório com as inscrições "Santa Lilia acredita em você." - ele prometeu com uma piada.

 

— Sempre dramáticos. - ela murmurou enquanto seguia até a mencionada porta.

 

Ela ainda parou por um momento antes de girar a maçaneta. O quão difícil estavam as coisas para Yakov? Será que ela realmente tinha a capacidade para ajudar? Se os outros que o conheciam há mais tempo que ela tiveram problemas, o que ela podia fazer como a menina que só saía com ele uma vez ou outra?

 

Foco, Lilia, ela disse em sua mente. Ficar pensando não ajuda em nada.

 

Com um último fôlego por coragem, ela abriu a porta.

A primeira coisa que ela ouviu ao entrar na sala foram os socos.

 

Impactos de pele contra couro que se faziam mais altos que os suspiros cansados de seu praticante. Duas de esquerda, uma de direita, esquiva. Olhos semicerrados que olhavam para o saco de areia como se fosse seu pior inimigo. Talvez fosse, no momento. E ele estava sem camisa.

 

— Oi. - ela falou fechando a porta atrás de si. Aparentemente ela não seria notada a menos que falasse.

 

Yakov foi despertado de seu transe silencioso de fúria e pareceu surpreso em vê-la ali. A surpresa logo virou indiferença com uma gota de irritação.

 

— Bater na porta seria interessante. Eu poderia estar mais inapropriado que isso. - ele disse abandonando o saco de areia para ir até um dos bancos e pegar uma camiseta dobrada. O lugar tinha outros aparelhos de ginásticas espalhados, mas ele parecia ser o único a usá-los recentemente.

 

A garota revirou os olhos.

 

— Eu tenho três irmãos mais velhos, Yakov. Não há nada num homem que eu não tenha visto. - ela disse mantendo-se parada no mesmo ponto, as mãos cruzadas atrás de si. - Você nunca me disse que lutava.

 

— É mais pra defesa. Tive uns problemas com uns antissemitas quando vim pra capital, aí comecei a aprender isso. - ele falou voltando ao seu lugar após colocar a roupa. - Também é útil quando me sinto... Contrariado.

 

Mais um soco. Lilia fechou os olhos, respirando fundo. Homens.

Yakov não usava luvas. Ele tinha apenas bandagens nas mãos. Bandagens que estavam começando a se tingir de vermelho nas articulações dos dedos...

 

— Está se machucando a cada soco que dá nessa coisa. - ela disse séria se aproximando. - Pare.

 

— Eu falei pra aqueles idiotas não te chamarem. - ele resmungou em voz baixa, ignorando-a completamente. - Eu tô bem, Lilia. Não sei o que Dimitri te disse pra te fazer vir aqui, mas foi exagero. Pode voltar pro seu balé. - ele terminou pronto para socar aquilo mais uma vez, mas foi parado por dedos finos segurando seu pulso.

 

— Eu me preocupo com você, idiota. - ela disse no mesmo tom que ele usou. - Quando vai sair dessa fossa e voltar a treinar? Você ainda é um patinador.

 

— Um patinador que tinha a chance de ganhar uma droga de medalha e desperdiçou! - ele jogou as mãos pro alto, andando pela sala. - Você lê o jornal de esportes? É impressionante quantas palavras com "d" existem pra descrever uma vergonha. - ele riu sem humor. - "Decepcionante", "Desapontador", "Deprimente." Dá pra escrever um livro, até.

 

— São vermes que vivem da desgraça alheia, Yakov. Não pode dar atenção a eles. - ela disse puxando-o para se sentar. Quanto mais longe daquele saco de areia, melhor.

 

Eles ficaram em silêncio por mais um tempo. A raiva do rapaz lentamente era substituída por outro sentimento: tristeza. Ele estava decepcionado consigo mesmo. Lilia não podia culpá-lo.

 

— Você assistiu? - ele perguntou arriscando olhar pra ela.

 

— Sim. - ela respondeu com um pequeno sorriso. - Você é outra pessoa de terno. Até parece responsável.

 

Aquilo o fez sorrir, pela primeira vez verdadeira do dia. Quem sabe da semana. Mas logo a face desolada voltou e ele franziu o cenho.

 

— Eu podia ter ganhado o bronze. Até a prata, eu acho. Se... Se eu não tivesse errado a droga do lutz, eu teria mantido a postura. Mas só desandou depois que eu caí. - ele cerrou os punhos em frustração.

 

— Se isso, se aquilo... Mas não foi. - Lilia disse na forma mais suave que conseguia, mas sem perder a firmeza. - Acabou. Detonar um objeto inanimado com socos não vai consertar as coisas. Mas você pode voltar a treinar. O Campeonato Europeu é mês que vem.

 

— Talvez eles nem me escalem pra participar. Por que fariam? Eu estraguei a "superioridade soviética" deles. - até ele tinha nojo ao falar a última parte, mas ainda tinha dor em sua voz.

 

— Você está sendo pessimista. - ela disse a verdade. - Você lembra daquele dia lá no gelo, há quase dois anos, em que você disse que se eu caísse, teria que levantar depois?

 

Ele riu um pouco com a memória.

 

— Lembro. Você era uma menina teimosa.

 

— E você está sendo um agora. - ela rebateu segurando seu ombro. - Você tem 18 anos, Yakov. Faça as contas. 18 mais 4 dá...? 22. Você terá 22 anos nos próximos Jogos. Estará no auge da sua carreira se cuidar de si. Não é o fim do mundo.

 

Ele ficou calado por mais um momento, os olhos castanhos fitando algum ponto perdido no tempo. Foi apenas aí que ela reparou nas olheiras. Não tinha dormido bem durante esses dias? Os olhos estavam um pouco inchados, também.

 

Quanto Yakov já havia chorado?

 

Após o que pareceu uma eternidade, ele disse num murmúrio:

 

— Eu queria... te dar o ouro de 62. - soou como uma confissão envergonhada. Ele mal olhava pra ela. - Aquele que você disse que eu ganharia depois da prata do Campeonato.

 

Ela arregalou os olhos em entendimento, o rosto logo se avermelhando com a memória. Yasha se lembrava daquilo? De uma Lilia menor, vestida de Mirliton, dando uma bronca nele por estar triste com uma medalha? Ela nunca pensou que seria levada a sério. Foi coisa do momento, mas ele tomou como uma meta para si e agora sentia que estava em dívida com a amiga. Oh, Yakov...

 

Lilia era péssima com abraços, de forma que ela se resumiu a segurar a mão do mais velho e fazê-lo encará-la, sem chances de fuga.

 

— Eu não quero uma medalha manchada de sangue, Yasha. - ela disse como num segredo, mesmo que estivessem os dois sozinhos naquela sala. - Trabalhe, se esforce, treine... Mas se tiver que se destruir por isso, pare. Eu não quero te ver se machucando.

 

Lilia às vezes se esquecia, mas Yakov só tinha 18 anos. Parecia muita coisa pra ela, que ainda tinha 15, mas no final, fazia pouca diferença. Ele ainda tinha medos, teimosias e sonhos como qualquer adolescente de sua idade. Ele tinha fraquezas. Uma em especial que tentou esconder ao não buscar ajuda com ela, mas agora estava bem à mostra. Ele não gostava de decepcionar. Yakov tinha os olhos um pouco úmidos agora, mas acabou sorrindo triste.

 

— Você guarda sabedoria demais para uma pirralha. - ele disse apertando sua mão. - Desculpe ter sido um idiota. Desculpe ter te deixado preocupada.

— Estou acostumada com idiotas. - ela sorriu também, apoiando levemente a cabeça no ombro do garoto. - Não foi dessa vez que você ganhou o ouro. Acho que você terá que me aguentar até essa medalha olímpica chegar.

 

Ele riu, com um pouco mais de energia que antes.

 

— Mais quatro anos? Quem sabe você cresce até lá. - ele pareceu se lembrar de algo e seus olhos brilharam. - Lilia, sabe o que eu provei em Innsbruck?

 

— O quê? - ela perguntou curiosa.

 

— Coca-Cola.

 

Aquela era novidade. Eles apenas ouviam histórias dos que viajavam para o exterior e tomavam a famosa bebida americana. Agora provar por si só era uma experiência completamente diferente.

 

— Sério? E como é? - ela encorajou animada, feliz pela conversa ter tomado um rumo mais positivo.

 

Ele fez uma careta.

 

— É... diferente. Parece xarope, só que com gás e sem gosto de morte.

 

A menina fechou a cara, um tanto frustrada. E ela pensando que era uma dádiva dos deuses capitalistas ou coisa assim.

 

— Os ianques se vangloriam por tomar xarope? - ela disse achando graça.

 

— É o que parece. - ele deu de ombros. Eles ainda estavam de mãos dadas. - Agora, eu preciso provar um hambúrguer.

 

— Parece que você só sai do país pra comer. - ela acusou o empurrando sem força no ombro.

 

— Está com inveja porque eu provei croissants tradicionais em Paris e você, não.

 

— Cala a boca.

Não foi dito naquela hora, nem na seguinte ou naquela semana, mas Yakov desejava que Lilia soubesse o grande "Obrigado" que ele queria dizer, mas ignorou para não estragar o momento.

Um dia ele diria. E pagaria por tudo que a jovem bailarina fizera por ele.






 

 

Agosto de 1964

 

— Quem é a morena?

 

A pergunta veio de Savin Burkov, patinador de Omsk de 18 anos que passaria aquela temporada em Moscou porque o rinque de sua cidade natal precisava de reformas. Ele já estava ali há dois dias e Yakov decidiu que não tinha nada contra o garoto.

 

Ele, Savin e Lev estavam fazendo uma pausa dos treinos perto do bebedouro. E a pergunta de Savin veio acompanhada de um dedo apontando um grupinho sentado na arquibancada.

 

Não tinha como errar quem era a tal morena. Lilia estava sentada com Irina, Daler Bandishoev da dança do gelo e o bailarino cazaque que Yakov ainda não memorizou o nome. Provavelmente era Altin.

 

— É a Lilia. - Yakov respondeu normalmente, voltando a tomar sua água.

 

— Ela é patinadora? - Savin perguntou. - Nunca vi ela aqui.

 

— Ela estuda no Bolshoi. Ás vezes recebemos alguns bailarinos de lá pra terem aulas com a gente. Linya já é praticamente de casa. - Batalov deu de ombros.

 

— Ela é bonita. - Savin sorriu. - Sabe se tem namorado?

 

Yakov olhou para o garoto de lado. Lev, o maldito, percebeu a ação e riu, respondendo:

 

— Não que a gente saiba. Lilia vive para o balé. Ela não tem nenhum garoto na cabeça. - ele arqueou uma sobrancelha para Yakov. - Ou será que tem, Yasha?

 

— Não faço a mínima ideia, Levochka. - ele disse quase destilando veneno com o diminutivo. Ah, Batalov, não brinque com fogo. Todos sabiam dos problemas que as brincadeiras sobre Lilia causavam.

 

Savin não percebeu a troca de farpas silenciosa e começou a ajeitar o cabelo e a roupa, pronto para a ação.

 

— Se é assim, estou desimpedido. - ele mandou uma piscadela para Yakov. - Me desejem sorte, camaradas.

 

E com toda a facilidade do mundo, ele foi falar com Lilia.

 

— Não acredito que ele tá indo falar com ela assim. - Feltsman disse incrédulo. - Ele só a viu agora.

 

— Com ciúmes, Yakov? - Lev provocou. - Com medo de que o novato estrague a linda e completamente platônica amizade de vocês?

 

— Não estou com ciúmes. - ele disse com o cenho franzido. - Mas é a Lilia.

 

Os dois assistiram à cena daquela distância mesmo. Parecia um filme mudo, no qual as expressões dos personagens eram a única pista do que estava acontecendo. Savin chega à arquibancada e interrompe provavelmente mais uma história de Daler sobre suas galinhas no Tajiquistão. Ele começa a falar com Lilia e ela mantém uma face neutra sobre qualquer que seja a besteira que ele está falando. Ela dá de ombros e responde alguma coisa que lhe foi perguntada. Mais um segundo de neutralidade.

 

Então Lilia começa a rir.

 

Mas não aquela risada comum e quieta. Era a risada. Escandalosa, exagerada, com tanto ar puxado que poderia ser confundida com uma gaivota com crise de asma. Em algum momento ela tentou tampar a boca para parar, mas toda vez que olhava de novo para Savin, ela recomeçava.

 

— Ah, essa eu quero ouvir. - Lev disse começando a andar na direção do evento. Yakov apenas seguiu.

 

Savin deu meia volta constrangido e foi embora, esbarrando nos dois patinadores no caminho. Ele parecia corado e frustrado.

 

— O que Savin disse? - Lev perguntou curioso. Ele tinha a alma de uma comadre fofoqueira.

 

Lilia estava vermelha e com lágrimas nos olhos. Era a primeira vez que Yakov a via chorando. Pelo menos, não era um choro de tristeza.

 

— Ele... Ele disse que... - Lilia não conseguia. Não quando lembrava do sorriso idiota do tal Burkov e dele fazendo a maldita pergunta.

 

Ela começou a rir de novo. Aquilo era tão errado, mas tão engraçado ao mesmo tempo.

 

— Foi a pior cantada da história. - Bandishoev disse sério. - Eu não acredito que saí do meu país pra ouvir aquilo. Russos me decepcionam a cada dia.

 

— Mas o que ele falou? - até Yakov estava curioso.

 

Para a surpresa de todos, foi Altin que respondeu:

 

— Ele perguntou se Lilia era comunista. - ele franziu o cenho, como se não tivesse certeza de que tinha entendido. - Ela disse que sim. Então ele disse: "Dá pra ver. Porque você me deixou vermelho."

 

Oh, não.

 

Não.

 

— Puta merda. - Lev colocou a mão na testa pela vergonha alheia. - Isso é pior que ruim, é o cúmulo do péssimo.

 

— Ele... Ele deve ter ficado triste. - Lilia disse com a voz fraca, um pouquinho de culpa no resto de sorriso. - Eu não devia ter rido.

 

— Com uma cantada daquelas, estou impressionada de você não ter chorado de tristeza, Linya. - Irina disse colocando a mão em seu ombro. - Ele não era homem pra você.

 

— Ele deve me odiar agora - Lilia disse soando preocupada. - Por que nunca o vi aqui antes?

 

— Ele chegou essa semana para passar a temporada. - Yakov explicou. - Veio de Omsk.

 

— Ótimo, estraguei o intercâmbio do garoto. - ela disse limpando as últimas lágrimas do rosto. - Eu vou pedir desculpas quando eu o vir de novo.

 

— Mas achou ele atraente, Lilka? - Lev perguntou movimentando as sobrancelhas sugestivamente.

 

— Não. - ela disse movimentando a cabeça com uma careta. - Não faz o meu tipo.

 

Por algum motivo, aquilo deixou Yakov aliviado. Lev apenas lhe deu uma cotovelada que não foi percebida pelo grupo.

 

— Espera, então você tem um tipo?! - Irina perguntou com um brilho nos olhos. - Menina, me conta tudo, eu vou arranjar um bom partido pra você. Assim você não fica à perigo dessas coisas que aparecem.

 

— Eu não quero namorar ninguém. - a bailarina resmungou.

 

— Mas e Lev Yuriyevich da turma C? - Altin disse piscando confuso. - Vocês estavam juntos na semana passada.

 

Irina soltou um grito fino e Lilia parecia pronta para matar um cazaque.

 

— Danik, calado.

 

É, pelo visto Lilushka não era tão avessa a relacionamentos assim.

 

Não que Yakov se importasse.


 

 

 

 

 

 

Outubro de 1964

 

1964 foi o ano dos intercambistas, pelo visto.

 

Eles receberam naquele mês um cara da Estônia, Lennart Vares. Iria para Leningrado no ano seguinte, sendo a estadia em Moscou um momento de adaptação. Ele não falava muito, ainda inseguro por estar num lugar onde o russo era obrigatório a toda hora. Mas eles fariam aquilo mudar.

 

Era mais uma das aulas de balé especiais em que Lilia participava. E porque as coisas estranhas só acontecem quando ela estava presente, eles tiveram que presenciar aquilo.

 

— Hey, Lennart, é verdade que na Estônia vocês fazem uma corrida carregando noivas? - Dimitri perguntou durante um intervalo sem professores presentes.

 

O estoniano piscou algumas vezes, surpreso pela pergunta, mas acabou dando de ombros.

 

— É mais na fronteira com a Finlândia, mas sim. Chamam de enkonkanto.

— Que coisa doida. - Dimitri riu. - E qual o melhor estilo para carregar uma noiva?

 

Lennart coçou a nuca constrangido.

 

— Depende da dupla. A forma estoniana manda carregar a mulher pelas pernas sobre os ombros, com ela segurando o tronco do parceiro.

 

— Que horror. - Lilia disse com uma careta enquanto abria sua garrafa d'água.

— Na Bielorrússia somos mais práticos. - Ilya Korbut disse se levantando da rodinha e indo até onde sua irmã Lukerya estava conversando com outra menina.

 

Sem nem avisar, Ilya a pegou pela cintura e a jogou sobre um ombro como um saco de batatas, arrancando gritos e muitos xingamentos em sua língua materna.

 

— Se reclamarem demais, nós jogamos aos porcos. - ele comentou com toda a naturalidade, como se não tivesse uma dançarina do gelo se esperneando em seus braços.

 

— Que falta de classe. - Anatoly disse com um sorriso. - Irina, por favor.

 

A dupla se levantou e se encaminhou até um canto mais vazio da sala. Após alguns cochichos, Irina deu um pequeno impulso sendo segurada pelas mãos do parceiro e colocada acima da cabeça, as pernas em um split. Um levantamento padrão. Cinco giros e você conseguiria uma nota boa no gelo. A garota voltou ao chão e algumas palmas foram ouvidas pela sala.

 

— Que pobreza. - Dimitri se levantou também. - Tanushka, venha aqui.

 

Tanya era uma coisinha pequena de 13 anos que também seria colocada nos pares ano que vem. Seu treinamento se revezava entre Dimitri e Batalov até ela conseguir um par fixo. Ela estava sozinha com seus alongamentos até Dimitri aparecer ao seu lado e dizer algo em voz baixa que a fez rir, mas assentiu.

 

Seja o que fosse que fariam, aquela diferença de altura e peso com certeza seria desleal. Era uma perfeita dupla de "um patinador e meio", mais uma das sacadas soviéticas para conseguirem notas melhores na parte técnica. Crianças eram muito mais fáceis de levantar do que mulheres adultas.

 

Tanya e Dimitri pararam a alguns metros de distância um do outro. O rapaz fez um sinal de positivo com a mão e logo a menina deu uma pequena corrida com um salto em sua direção. Dimitri a segurou e a jogou no ar, fazendo-a dar três giros antes de voltar aos seus braços. Era um triple twist. Ninguém passou dos doubles até hoje nas competições.

 

— De novo! - uma Tanya de cabelo bagunçado disse sorridente assim que voltou ao chão.

 

— Totmianina nem tem tamanho pra ser chamada de noiva. - Yakov reclamou. - Isso foi trapaça.

 

— Faz melhor então, Yasha. - Dimitri disse cruzando os braços.

 

Yakov olhou para Lilia e os dois tiveram aquela conversa silenciosa que seus amigos já apelidaram como "Discussão para conquistar o mundo". Aqueles dois eram perigosos juntos. E quando Lilia sorria, significava muito perigo.

— Com prazer. - Yakov disse se levantando sendo seguido por sua parceira de crimes.

— Eles vão encenar Le Corsaire inteirinho para provar que são os fodas entre os pares. - Irina disse atrás da mão para Ganshin.

A poucos metros dali, Lilia perguntava em voz baixa:

 

— Certo, o que você quer fazer?

 

— Um shoulder sit parece bom pra mim. - ele respondeu se lembrando do levantamento relativamente simples que Lilia havia mostrado no início do ano, acompanhada de Altin.

— Não treinamos aquele desde março. - ela torceu o nariz. - Tem certeza de que lembra?

— Eu não tenho uma memória de peixe. Segurar, levantar, colocar sobre o ombro. Qualquer idiota consegue. - ele sorriu de lado.

Ela pareceu pensativa por um momento, mas logo assentiu.

— Se você me derrubar, Lev Yuryevich virá tomar satisfações. - ela ameaçou.

Ha ha. Como se o namorado de nariz empinado de Lilia tivesse chance contra ele num mano a mano.

 

Os dois se separam em uma distância de talvez oito metros. Eles se encaram por um segundo, mas parece uma eternidade entre pares de longa data. Era um contrato, um voto de confiança. Ela tornaria o movimento mais fácil e ele não a deixaria cair. Pares funcionavam assim.

Lilia sorri enquanto assume a posição para o crescendo de O Quebra Nozes. Pelo menos uma vez ela pôde dizer que era a Fada Açucarada.

 

A pequena corrida na ponta dos pés não tinha toda a delicadeza do palco, mas estamos falando de Lilia Baranovskaya, a rainha do perfeccionismo. Ela também é a única que consegue saltar com um impulso normalmente dado por pontas em sapatilhas comuns. Com esse mesmo impulso Yakov a segurou pela cintura e a ergueu até a altura de sua cabeça. No meio do caminho, ele se deu conta com um pingo de pânico que precisava de mais força do que pensava.

 

Ela cresceu, ele pensou enquanto a colocava sobre o ombro direito, delicada como um floco de açúcar. Há sete meses eu fazia isso com a maior facilidade, agora eu quase perco o equilíbrio.

 

Se a garota percebeu a pequena crise do parceiro, não deixou transparecer. Pelo contrário, parecia muito contente em sua posição no topo do mundo tendo Yakov como assento. Ele realmente não queria ver o dia em que ela se interessaria por sapatos de salto. Seria uma peste tripla.

 

— Vocês são tão extras. - Anatoly disse em meio as palmas da turma.

 

— Obrigada. - Lilia disse com um sorriso que em outra vida poderia parecer inocente. - Aqui é bem confortável.


— Lilia, você engordou. - Yakov disse com a voz um pouco afetada pelo esforço, enquanto ainda a mantinha lá em cima.

 

— Não engordei, não. - ela retrucou ofendida, olhando para baixo. - Você que está ficando velho.

 

— Não é você que está carregando 70 quilos de ser humano nos ombros.

 

70?!

 

— Ah, os héteros estão nisso de novo. - Batalov reclamou com um revirar dos olhos. - As duas são lindas, tá? E no final, ninguém mostrou a melhor forma de carregar uma noiva.

Lilia voltou ao chão, fazendo questão de distribuir pequenos tapas no braço do garoto em retaliação. 70 quilos... Que audácia! Ela não podia passar de 60!

 

— Qual é o melhor carregamento de noiva, então? - Yakov disse livrando sua cara dos ataques delicados, mas não menos dolorosos da bailarina.

 

Lev andou até o canto da sala perto dos espelhos, onde havia um pequeno mastro com a bandeira vermelha soviética em sinal de respeito. E como quem não quer nada, retirou a bandeira do lugar e a ergueu mais alto que o próprio mastro fez.

 

— Esse. - ele disse estufando o peito naquele patriotismo questionável. - Pois somos casados com a pátria!

 

Um "Aff" coletivo ressoou pela sala, até Irina declarar em voz alta:

 

— Incesto! - o indicador apontado em tom acusatório fazia valer a sua visão - A Rússia é nossa Mãe!

 

O grupo riu e até Lennart pareceu mais à vontade em meio aos russos. Eles deveriam ter mencionado antes que ninguém ali era normal, então inseguranças eram desnecessárias.

 

— Quem vota a favor de excluir Batalov no almoço pela piada ruim? - Dimitri chamou erguendo a mão, sendo seguido por pelo menos mais dez pessoas, incluindo Yakov. - O veredito está dado. Ninguém vai sentar com você no refeitório, Levochka.

 

— Vão se foder. - o réu disse colocando a bandeira no lugar, mas não havia verdadeira malícia na frase.

 

— Não pense que eu perdoei os 70 quilos. - Lilia disse séria enquanto os outros se preparavam para voltar à aula.

 

— Hey, não é pra ser algo ruim. - ele respondeu sincero. - Eu estava brincando, mas você cresceu mesmo. Já deve ter atingido 1,69, eu acho.

 

Ela fez uma careta voltando a sua posição na barra.

 

— Não deveria estar crescendo tão rápido. Vou acabar com mais de 1,75 desse jeito.

— A culpa não é sua que os garotos do Bolshoi não conseguem carregar nada com mais de 1,65 metro de altura. - ele deu de ombros. - Menos Altin. Ele faz um trabalho bom para um anão.

— Ele é da minha altura. - ela acabou rindo às custas de seu parceiro. - Também está crescendo. Não fale dele.

— Ok, parei. Mas se acostume com isso. E não há nada de errado em ser maior que os meninos. - o patinador fez uma pausa, consertando logo depois. - Mas evite usar salto alto perto de mim. Seria constrangedor.

E com o jeito que Lilia sorriu enquanto se alongava, Feltsman soube que ela contava os dias para pôr as mãos num Scarpin de 15 centímetros.

Ah, crianças.


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Notas finais do capítulo

Eu posso falar que o ciúme do Yakov é só coisa de amigo mesmo, mas vai me dizer que isso não tá igualzinho fanfic de One Direction que todo mundo lia em 2013? Que saudade ;;

Hora da trívia~~
— Enkonkanto existe mesmo. Eu só não sei por quê.

E esse foi o capítulo de hoje!!

Até a próxima!

XOXO



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