Philia escrita por Mileh Diamond


Capítulo 1
1962


Notas iniciais do capítulo

Acho que agora eu inauguro esse ship no fandom BR...Yay?
Sejam bonzinhos com a autora e imaginem movimentos bonitos de balé em cada palavra francesa, ou pesquisem no youtube, idk. Foi difícil pra porta aqui escrever ;;

Boa leitura!



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Maio de 1962

 

Lilia Vasilievna Baranovskaya tem 14 anos e é uma estudante da Academia de Balé Bolshoi. Isso deveria ser suficiente para descrevê-la. Porque se você conhece um pouco sobre dança, sabe que os estudantes do Bolshoi não fazem muito além de pensar em balé. Pelo menos, os bons alunos são assim.

 

Lilia era uma boa aluna. Uma das mais aplicadas da instituição. Sua criação tem certa importância nisso. Filha do Comandante Vasiliy Baranovsky, a única menina numa prole de quatro crianças, Lilia sempre esteve inserida num meio disciplinado. Ela acredita que só foi salva de ir lutar no front por nascer mulher. Mas seu pai viu em sua aptidão pra dança a chance de torná-la o soldado que seus irmãos já seriam.

 

E aqui está ela, a caminho de um rinque de patinação.

 

Estranho, não? Não deveria ela passar o dia em salas espelhadas repetindo posições e saltos até seus dedos sangrarem? Não de acordo com seu professor, Danseur Vadim Gerasimov, que ela, agora, acompanhava num táxi pra fazer sei lá o quê na CSKA.

 

— Quando foi a última vez que você saiu do dormitório, Linya? - Vadim perguntou com um sorriso. - É bom ter um pouco de ar puro uma vez ou outra.

 

— Eu tenho que fazer o dever de casa. - ela disse num suspiro, mas não tinha força no seu argumento. Ela já tinha terminado a maior parte da lição.

 

— Suas notas são excelentes, eu mesmo perguntei à Sra. Kuroleva. Pode passar um dia fora do cronograma. - ele fez um sinal de descaso. - Além disso, é bom você assistir a uma aula fora da Academia. Assim pode ver a realidade que terá se quiser ser professora depois que se aposentar.

 

— E por que só eu vim? - ela franziu o cenho.

 

— Porque você, Lilia, é séria o suficiente para aproveitar uma aula diferente e não ficar suspirando por patinadores aleatórios. - ele riu. - Mas não te julgarei se isso acontecer. Eu mesmo já matei muitas aulas para assistir às meninas da CSKA.

 

Lilia mentalmente revirou os olhos. Ela não tinha tempo para aquilo. Balé era coisa séria, necessitava de sacrifícios. Se bem que ficar sem fazer papel de boba apaixonada não era bem um sacrifício.

 

— Isso, - Vadim segurou a porta para ela sair assim que o táxi parou - e o fato de que Andrei Matveiyevich só precisava de mais uma menina para completar aula.

 

Ah, ótimo. Era quase como ser parte do corpo de baile. Só estava lá para ocupar espaço.

 

Ela tentou disfarçar a irritação no suspiro enquanto saía do carro e olhava para o espaço a sua frente. Uma grande estrutura de cimento acinzentado, uma porta dupla de vidro, algumas plantas para decoração. Bem diferente do Bolshoi.

 

Ela não prestou atenção à recepção. Com sorte só viria ali umas três vezes para o projeto de Vadim e depois, nunca mais. Ela poderia voltar à sua rotina séria, com bailarinos sérios.

 

A primeira coisa que ela sentiu foi o frio.

 

Em comparação com o calor do lado de fora, aquele rinque parecia parado em janeiro. A superfície branca riscada com figuras circulares parecia vinda de um conto de fadas de inverno. Inconscientemente, ela imaginou como seria uma apresentação de Quebra-Nozes sobre o gelo. O trabalho de pé obviamente não seria o mesmo que na dança, mas a magia de uma noite de Natal seria preservada.

 

Ao seu lado, Vadim recebia com cumprimentos animados um homem da mesma faixa etária. Provavelmente o Andrei de que ele tanto falava.

 

— Andrik, essa é a aluna de que falei. - Vadim disse a empurrando levemente pelos ombros. - Linya, esse é o meu amigo, treinador Andrei Pudovkin.

 

— Um prazer conhecê-la, camarada Baranovskaya. Obrigado por me ajudar hoje. - o treinador sorriu enquanto apertava sua mão. - É tão pequena. Tem certeza de que já tem 14, Vadik?

 

— Ah, ela vai crescer. Como todos os bailarinos e patinadores o fazem.

 

— O temido estirão. Não se preocupe, Baranovskaya. O tempo só é inimigo daqueles que não têm ampla visão. - Andrei disse com o sorriso gentil de quem já tivera aquela conversa centenas de vezes. - E hoje, seu tamanho facilitará o meu trabalho e também o dos garotos. Estou com uma falta de moças para treinar os novos pares que só será suprida em duas semanas. Acha que pode fazer isso pra mim?

 

Se ela podia ficar quieta enquanto algum patinador qualquer jogava ela pro ar como uma boneca de pano? É, ela podia sim, porque era uma moça obediente e já estava ali de qualquer maneira.

 

— Sim, senhor. - ela assentiu.

 

— Perfeito. O vestiário é à direita, não tem como errar. A aula começará em meia hora. - ele apontou a direção. - E não seja tímida, patinadores são muito menos assustadores que bailarinos.

 

Ela se força a sorrir para a piada, mesmo que não tenha sido tão engraçada assim.

 

Só uma tarde. Ela ficaria bem.


 

 

Ela não ficaria bem.

 

Ao entrar na sala de dança, Lilia foi consumida por uma ansiedade que só perdia para aquela dos exames finais. Havia um total de oito garotos e sete garotas ali, ela supôs que seria a oitava necessária. Ela não tinha uma grande insegurança com idade, suas aulas de pas de deux eram com garotos de dezesseis. Mas aqueles eram estranhos e uma boa parte parecia já ter alcançado os 18. Era como se ela estivesse prestes a ser julgada num teste de admissão. Ela ainda tinha pesadelos com as lembranças do dela, quando ela tinha dez anos.

 

Lilia pensou que poderia fazer seus alongamentos em paz e ficar quieta até a aula começar. Leia-se: pensou.

 

No meio de sua abertura, uma garota de curtos cachos cor de mel veio falar com ela animadamente:

 

— Oi! Você é a garota do Bolshoi, né?

 

Acho que eu sou, ela queria dizer, pois estava na cara que todo mundo ali já se conhecia e ela era a estranha. Mas ela era educada e não foi criada num celeiro, como dizia sua mãe.

 

— Sou eu. - ela respondeu num murmúrio, enquanto se curvava sobre a perna para segurar o pé já calçado com a sapatilha.

 

— Eu sabia! Achamos que você seria mais velha, pra falar a verdade. - ela deu de ombros. - Sou Irina Vlasovna.

 

— Lilia Vasilievna. - ela respondeu voltando a ficar sentada, de pernas cruzadas.

 

— Nós tínhamos uma Lilia até o ano passado! Ela era uma graça, você também é. - Irina sorriu. - Oh, isso pode ficar engraçado. Nabiyev, venha aqui!

 

Um garoto conversando num grupinho virou-se para as duas e caminhou até a dupla. A franja arredondada castanha caía sobre os olhos e Lilia imaginou se ele realmente enxergava alguma coisa.

 

— O quê? - ele disse aparentemente olhando para Irina.

 

— Temos uma nova Lilia aqui! Agora você não morre mais de saudade. - ela disse com um sorriso que dizia que aquela história era muito longa para uma primeira conversa.

 

O garoto fez um "tsk" com a boca e só não foi embora por educação, pelo visto.

 

— Dimitri Nabiyev. - ele disse estendendo a mão para Lilia. - Ignore Irina, ela é louca.

 

— Ei, essa é a primeira impressão de mim que você quer passar?!

 

— Ela já vai ter uma impressão horrível quando Andrei criticar os seus cotovelos pela quinta vez no balé.

 

Aquilo fez Lilia sorrir. De fato, se estivesse na Academia, uma só bronca sobre cotovelos baixos faria o estudante se corrigir imediatamente. Cinco vezes seria vergonhoso e a pessoa sofreria com piadas durante um bom tempo.

 

Dimitri e Irina aparentemente não se importavam com Lilia não falando muito. Eles faziam perguntas e ela respondia normalmente, mas eles ficaram confortáveis contando histórias sobre cada um na sala. Em dez minutos de conversa ela descobriu que Efimiya Koziminskaya já rasgou um pôster de Stalin à luz do dia, Anatoly Ganshin podia falar coreano mesmo nunca tendo pisado além dos Urais, Lev Batalov era daltônico e a lista continuava.

 

Ela só não descobriu nada sobre o garoto de semblante sério que repetia passos meticulosos na frente do espelho, parecendo mais concentrado do que todos. Quem sabe fosse um ensaio?

 

Andrei e Vadim entraram na sala e os patinadores se apressaram para se alinharem perto das barras, meninos em uma e meninas em outra. Lilia só observou  a configuração aparentemente tradicional por um segundo antes de agir, colocando-se no fim da fila feminina.

 

— Boa tarde, crianças. Nessa aula, como eu avisei a vocês, teremos a presença de um amigo meu do Bolshoi para me auxiliar enquanto a Srta. Kupskaya tira umas férias. - ele deu um passo para o lado, encorajando o bailarino a continuar. - Vadik, por favor.

 

— Obrigado, Andrei. Bom, jovens, meu nome é Vadim Gerasimov e eu ensino balé e dança de salão. Por enquanto, vamos nos atentar ao balé. Seu treinador me disse que essa era uma aula especial para os pares, mas que por questões logísticas faltava uma menina. Por isso, eu trouxe minha aluna para completar a turma. Lilia, diga "oi".

 

E de repente todos estavam olhando pra ela como se ela fosse fazer uma acrobacia e parar com o dedo indicador segurando todo seu peso no chão. Muito obrigada, Sr. Gerasimov.

 

— Oi. - ela disse numa voz quase inaudível, mas o suficiente para todos responderem  coro:

 

— Oi, Lilia.

 

Sinistro. Será que recebiam visitas frequentemente?

 

— Vamos começar com o balé na barra normalmente, depois trabalhamos com os pares. - Andrei disse colocando um vinil no gramofone no canto da sala. Nada de pianos ao vivo aqui. - Não me envergonhem na frente dos convidados.

 

A primeira hora não foi muito diferente do que ela estava acostumada. Muitos jetés, frappés, jambes e ecartés, com alguns arabesques e penchés que mostraram a Lilia que os patinadores tinham aberturas muito boas. A quem queria enganar, eles eram muito bons. Balé deveria ser muito importante para o esporte se eles levavam a sério assim. Aliás, quando foi a última vez que ela assistiu a uma apresentação de patinação? Provavelmente quando ainda brincava de boneca em Ekaterinburgo, seus pais a levando para ver alguma exibição de pares no Natal, com Lilenka se perguntando porque aquela bailarina do gelo não usava tutu.

 

A aula não passou sem algumas pequenas críticas aqui e acolá, nem Lilia foi poupada.

 

— Ganshin, está muito devagar.

 

— Nabiyev, se chama grand jeté por um motivo. Dobre esses joelhos.

 

— Baranovskaya, você pode levantar essa perna mais alto que eu sei.

 

— Se não perdeu nada no chão, levante essa cabeça, Batalov.

 

— Lagutina, não me faça corrigir esses cotovelos de novo.

 

De certa forma, era bom ouvir nomes diferentes, numa sala diferente. Depois de um tempo, até os erros de suas colegas se tornavam rotineiros e entediantes. A atmosfera ali também era outra, mais leve. No final, não seria exatamente o balé a colocá-los no pódio.

 

Finalmente, após o fim da primeira parte e dez minutos de pausa para água, alongamentos e, no caso de Lilia, a troca por sapatilhas de ponta, os dois professores chamaram os alunos para o centro da sala.

— Muito bem, agora é a parte legal da aula. - Vadim sorriu juntando as mãos. - Ouvi dizer que a grande maioria daqui já tem anos de experiência com pares, então não ficarei só no básico. Também não falarei sobre os movimentos específicos da patinação artística, pois esses Andrei explica muito melhor que eu. Mas se vocês conseguirem os fundamentos do balé, conseguem fazer qualquer coisa no gelo. E suas apresentações de gala ficam muito mais bonitas. - ele sinalizou com a mão para os lugares marcados. - Vamos, cada um com seu par, meninas na frente.

E aqui temos um tradicional momento constrangedor em que Lilia não sabe quem seria o seu par (ela supôs que tinha um), então apenas fica parada vendo os outros tomarem suas posições, aparentemente já habituados uns com os outros.

— Lilia, você fica com Feltsman. - Vadim a guiou pelos ombros até um rapaz, igualmente empurrado por Andrei.

Ela percebe que é o garoto do espelho que viu antes. Ele era alto, pelo menos uns 25 centímetros a mais que ela. Traços um tanto grosseiros, mesmo parecendo jovem. 18, talvez? O cabelo castanho e liso às vezes era puxado para trás para não cair nos olhos. Junte a isso uma expressão de quem preferia estar em qualquer outro lugar que não fosse ali.

É, não fazia o tipo dela.

 

— Yasha competiu por quatro anos nos pares, saiu e agora quero colocá-lo novamente, então ele é tão novo nisso quanto você. - Andrei comentou. - Mas isso não significa que ele não tem experiência. Esses braços aqui conseguem levantar coisas bem mais pesadas que bailarinas.

— Treinador. - Feltsman disse quase entre dentes.

 

— Ora, Yakov, deixe eu falar bem no meu produto. Agora, seja um cavalheiro e cumprimente a moça.

 

Yakov ainda parecia muito próximo de cometer um crime contra o próprio técnico, mas no fim suspirou e pela primeira vez olhou devidamente para sua parceira.

 

Olhos castanhos. Lilia sempre preferiu azul.

 

— Yakov Eliseevich. - ele disse estendendo a mão. - Prazer em conhecê-la, Lilia...?

 

— Vasilievna. - ela respondeu com o cumprimento.

E insira aqui um silêncio constrangedor que foi interrompido pela risada do professor de dança.

— Mas estão tão tímidos. Isso vai acabar logo, aulas de pas de deux precisam de conversa. Afinal, são sobre comunicação e confiança.

Olha só, se não são coisas em que Lilia é péssima.

 

Os dois foram para seus lugares e Vadim disse novamente:

 

— Acredito que sua professora treinaria um levantamento sobre a cabeça hoje. Estou certo? - a maioria dos alunos respondeu positivamente. - Então, faremos isso. Mas antes, um aquecimento seguido de exercícios básicos. Ninguém performa um Pássaro Azul antes de treinar sissones.

 

Hora do usual estranhamento com pares novos. Feltsman não era Pyotr Bublik, o garoto com quem dançava na escola, então ainda não sabia o quanto podia confiar nele. Quanto de peso poderia apoiar sobre ele? Será que seria gentil? E se ele nem soubesse o básico de um pas de deux? Ugh, as coisas em que seu professor a metia.

 

Para sua surpresa, porém, Yakov sabia mais do que aparentava. Assim que ela se colocou nas pontas, as mãos do patinador seguraram sua cintura de forma firme, mas não menos cuidadosa. No exercício de pêndulo, ele quase não tremeu enquanto levava Lilia da esquerda para a direita lentamente (o que totalmente aconteceu na primeira aula com Bublik). Até os sissones eram bons, tirando a parte em que a mão dele escorregou na collant e Lilia quase caiu, ouvindo um quieto "desculpe" logo depois. Em seguida eles treinaram levantamentos simples com apenas uma rotação, algo relevante apenas para patinadores, mas que até bailarinos podiam fazer. Não era de todo ruim, porém era mais chato que as aulas da escola. Talvez porque ela mal usou a ponta das sapatilhas.

 

Numa pequena pausa, Yakov a surpreendeu com uma tentativa de conversa:

 

— Fazia tempo que eu não dançava com alguém en pointe. - ele disse apontando as sapatilhas. - Irina era a minha parceira. Conseguiu as pontas com doze anos, mas abandonou o balé pela patinação.

 

Lilia arqueou as sobrancelhas, um pouco surpresa pela história. Irina estava com o tal Ganshin agora. Imaginava por que eles se separaram.

 

— Posso te ajudar com as piruetas? - ele perguntou com um sorriso pequeno. - Estou me sentindo um pouco nostálgico.

 

Ela pendeu a cabeça pro lado, avaliando as opções. Ela mal tinha feito trabalho com ponta o dia inteiro. Valia a oportunidade.

 

Ela assentiu.

 

— Três passos e girar em dedans? - ela perguntou e Yakov acenou com a cabeça.

 

Os dois se posicionaram de forma que podiam ver seus reflexos no espelho. Lilia andou os três passos combinados, parou e girou numa pirueta, os braços formando um arco a sua frente, sendo apoiada pelo patinador.

 

Ela rodou uma, duas, três e quatro... Mas Yakov não parou e ela continuou em cinco, seis, sete...

 

— Ei! - ela franziu o cenho enquanto seu mundo continuava girando.

 

— Desculpe, mas é muito legal fazer isso. - ele disse aparentemente se divertido com a cena, mãos nunca parando de girá-la. - Parece uma caixinha de música, daquelas com bailarinas.

 

Lilia parou com a graça segurando seu ombro, o que o fez soltá-la e encarar uma bailarina ligeiramente tonta e irritada.

 

— Você é infantil. - ela disse com as mãos na cintura. A própria imagem da seriedade com sua franja de criança penteada numa onda sobre a testa.

 

— Tem idade pra falar isso? - ele perguntou sorrindo de lado. Ela decidiu que já odiava aquele sorriso.

 

— Fiz 14 em abril. - ela disse arrebitando levemente o nariz.

 

— E eu faço 17 em junho. Acho que não devia estar levando bronca de alguém que ainda usa o lenço vermelho dos Pioneiros. - ele retirou o cabelo do rosto mais uma vez. - Mas tudo bem. Vou deixar passar porque eu gostei das piruetas.

 

A menina semicerrou os olhos. Quanta petulância para um garoto só! Por que ela sempre arranjava os mais estranhos para ficar perto dela?

 

— Vamos continuar, pessoal. - Andrei disse terminando o intervalo.

 

E lá vamos nós de novo, com nossos pares debochados que nos fazem de pião de corda.

 

Vadim, inconscientemente, conseguiu deixar o clima mais estranho ainda ao anunciar que eles treinariam a "posição de avião" antes de tentar os devidos levantamentos na próxima aula.

 

E agora Lilia, de braços abertos e costas arqueadas como um pássaro, era segura pelos quadris por um patinador idiota deitado num colchonete. O mesmo idiota que a girou mais do que devia e agora podia fazê-la cair.

 

Mereço, ela pensou se concentrando para manter a forma.

— Você não fala muito. - Yakov comentou com a voz um pouco afetada pelo esforço.

 

— É mais fácil pra mim e pra você se eu ficar quieta. - ela disse sem tirar os olhos de um ponto fixo na parede.

 

— Trata seus parceiros no Bolshoi com essa frieza, também?

 

— Eles não me giram sem o meu consentimento. - ela disse baixando o olhar, mesmo que isso não a possibilitasse ver o rosto dele.

 

Ele a baixou devagar, sinalizando para que descesse da posição extenuante e assim ela o fez, sentando-se no chão enquanto Yakov fazia o mesmo. Será que conseguiram completar três minutos antes de cansarem? Algumas duplas pararam antes.

 

— Desculpe pelas piruetas. - ele disse sincero. - Era uma brincadeira. Bailarinas brincam, não?

 

— Algumas. - ela admitiu encolhendo os ombros. - Não sou uma delas.

 

Yakov a olhou como se ela fosse um quebra-cabeça com nível de dificuldade máximo. Mas que ele resolveria mesmo assim.

 

— Se vamos ser parceiros pelas próximas aulas, precisamos saber o mínimo um sobre o outro. Assim evitamos esses problemas. Vamos começar do zero. - ele estendeu a mão. - Olá, meu nome é Yakov. Patino desde os cinco anos. Faço balé desde os seis. Treino aqui desde os 13, mas sou de Leningrado. Não quero mais trabalhar com pares, mas meu treinador quer me fazer voltar porque eles recebem mais recursos que os individuais. - ele fez uma careta para a última parte. - Sua vez.

 

Então ela estava certa quanto a ele não querer estar ali tanto quanto ela. Pelo menos isso eles tinham em comum.

 

Sentindo os cantos da boca se curvarem levemente, ela segurou a mão que já a suportara de um punhado de formas naquele dia.

 

— Olá, meu nome é Lilia. Faço balé desde que tinha quatro. Estudo no Bolshoi desde os dez, mas sou de Ekaterinburgo. Meu professor acha que eu deveria sair mais, agora estou aqui. Quero ser Aurora em A Bela Adormecida, mas pra isso eu tenho que treinar até ser a melhor. Sem brincar. - ela disse com certa ênfase na última parte, esperando que ele entendesse a indireta.

 

— Hum. Mas nós fazemos piadas aqui o tempo todo e isso não nos impede de ser os melhores. Somos muito sérios com o nosso trabalho.

 

— Nunca falei que vocês não são sérios. - ela franziu o cenho. - Só estou acostumada com uma postura diferente.

 

— Com menos sorrisos? - ele pendeu a cabeça para o lado.

 

— ...Talvez. - ela respondeu desviando o olhar para um fiapo solto em sua saia. Estava precisando de uma nova. - Você não estava sorrindo muito no início da aula, também.

 

— Queria estar patinando. Preciso melhorar minha apresentação e ganhar uma medalha. - ele disse com um suspiro derrotado. - Mas preciso do balé pra isso. Então cá estou.

 

— Não se preocupe, vai acabar logo. - ela disse normalmente, mas Feltsman interpretou como uma tentativa de piada.

 

E riu.

 

Lilia ainda odiava aquele sorriso.

 

— Ok, então, Lilia Vasilievna. Espero que aproveite a experiência na CSKA. - ele disse quase ao mesmo tempo em que uma garota caía no chão e reclamava de ter perdido o útero por descaso de seu parceiro. - Nós somos sérios, eu juro.

 

Ela acabou sorrindo para aquilo.

 

— Tudo bem. - ela disse se levantando e se preparando para mais uma rodada como um avião. - Acredito em você.

 

Duas semanas, não? Ela podia suportar aquela companhia.

 

 

 

 

 

Depois da aula, Vadim decidiu que ainda queria conversar com Andrei por horas afim, o que deu a Lilia a oportunidade de fazer nada. Ou melhor, nada de útil.

 

Ela se viu encostada ao muro do rinque observando Feltsman desenhando figuras no gelo. Era quase terapêutico ver as formas sendo cravadas minuciosamente na superfície polida. E Yakov parecia fazer aquilo por horas.

— Se quer saber alguma coisa, pergunte. - ele disse assim que abandonou sua última obra para buscar uma garrafa d'água na entrada do rinque.

 

— Não deveria estar treinando ao invés de desenhar no gelo? - ela perguntou genuinamente curiosa.

 

O mais velho riu.

 

— Eu estou treinando. São figuras compulsórias. São tão importantes quanto as apresentações.

 

— Oh. - ela sentiu o rosto queimar. - Eu... não sabia. Nunca vi isso na TV.

 

— Porque não aparece. É muito chato ficar assistindo. As pessoas querem música. - ele deu de ombros.

— Eu acho bonito. - ela admitiu. - Pode fazer a figura que quiser?

— No passado, os patinadores desenhavam padrões em papel para depois passar para o gelo. Quem fazia o mais bonito, vencia. Hoje há figuras pré-determinadas que são avaliadas. Isso aí, - ele apontou a última - é um "change loop". Me custou o bronze no último Campeonato Soviético.

 

— E agora você quer torná-lo perfeito. - ela advinhou.

— Duh. - ele revirou os olhos. - Acho que é a minha parte favorita da patinação, apesar do tédio. Ter uma coisa para se concentrar é reconfortante. Poder parar, se desligar de tudo e focar em apenas uma tarefa. Não dá pra fazer isso nos programas.

— Como as posições no balé. - ela disse em voz baixa, mais para si mesma. Ela também gostava de padrões, uma rotina a ser seguida. Poder se apresentar era bom, mas às vezes só queremos ter o sentimento de ter tudo sob controle. A ordem das posições dava isso.

— É, acho que sim. - ele disse também se apoiando contra o muro, suas obrigações aparentemente ignoradas. - Então, balé. A única coisa mais mortal que patinação.

— Não é tudo isso que falam. - ela disse com o cenho franzido. - Mas só ficam aqueles que realmente amam o que fazem.

— Aqueles que amam ter os pés quebrados, os joelhos machucados, a música clássica enjoativa... - ele enumerou contando nos dedos.

— Nossa, parece um especialista. - ela cruzou os braços - Nomeie quatro balés diferentes.

 

— Quatro? Tá. Dom Quixote, Quebra-Nozes, Bela Adormecida e... Hum... Ah, aquele em que a menina morre. - ele estalou os dedos tentando se lembrar.

 

— Quero nomes. - ela disse segurando um sorriso.

 

— A que morre por desilusão amorosa!

 

— Muito específico, impressionante. - ela disse sorrindo por completo.

 

— A garota que é um pato!

 

— Cisne! - ela disse já cansada daquela afronta ao balé. - Você nem tentou parecer esperto, o nome é "Lago dos Cisnes".

 

— Grande coisa. Todas morrem no final. - ele resmungou. - Por que alguém se apaixona por um cisne? Já parou pra pensar que isso é muito estranho?

 

— Você usa facas nos pés. - ela rebateu.

 

— E você calça sapatos de madeira para quebrá-los depois.

Aquilo a fez rir. Pelo visto, qualquer um que mexe com dança é um pouco louco.

— Então não somos normais. Você com seus desenhos no gelo e eu com as minhas heroínas mortas. - ela pendeu a cabeça para o lado, um pouco do sorriso ainda nos lábios.

— Nunca disse que ser normal é bom. - ele sorriu de lado, como se a ideia de sair dos padrões fosse uma vitória pra ele. Que criatura peculiar era Yakov Feltsman.

— Lilia, vamos. - Vadim apareceu já pronto para ir embora. - Diga "adeus" ao Sr. Feltsman.

Yakov fez uma careta com o "Senhor", mas voltou ao normal para falar com a garota:

— Você virá de novo?

 

— Sim, eu ganho nota. - ela deu de ombros.

 

Lilia. - Vadim quase ralhou entre dentes.

 

— Ok, então. - o garoto disse achando graça da sinceridade da mais nova. - Até a próxima, Lilia Vasilievna.

 

— Até, Yakov Eliseevich. - ela disse com um leve aceno da mão, seguindo seu professor para fora do rinque, com a sensação de que voltaria ali mais do que realmente necessário.

 

— Fez um amigo? - Vadim perguntou enquanto andavam até o ponto de ônibus.

 

Amigo? ela pensou com o cenho franzido. Se conheceram hoje, podia chamá-lo de amigo?

 

— Ele é estranho. - ela respondeu ao final.

 

— Andrei me descreveu Yakov enquanto conversávamos. Ele me lembrou muito uma certa pessoa. - ele disse com um riso baixo.

 

— Quem?

 

— Acho que você vai descobrir depois, Linya. - ele mandou uma piscadela e Lilia só ficou mais confusa ainda.

 

De qualquer forma, fazia tempo que ela não conversava com alguém de fora da escola. Era interessante ter alguém com uma visão diferente e ao mesmo tempo tão parecida com a dela. Balé e patinação eram como duas estradas a se cruzarem: em algum momento serão o mesmo, mas os destinos são completamente diferentes.

 

É, talvez esse projeto não fosse tão ruim assim.



 

Pelas próximas duas semanas, às terças, quintas e sábados, Lilia acompanharia Vadim para as aulas de balé dos patinadores. Era tão séria quanto as do Bolshoi, mas não tinha a mesma pressão. Era um ambiente mais leve. Eles a incluíam na conversa e ela falava. Parecia algo tão extraterrestre pra ela, acostumada a se fechar em seu próprio mundo e só sair quando era obrigada. Era boa a sensação. Ter amigos era bom.

 

Mesmo quando eles pareciam bonecos de madeira.

 

— Vocês ganham nota por isso? - ela perguntou com uma sobrancelha arqueada enquanto observava Dimitri terminar sua apresentação ao som de Rachmanioff.

 

— Nossa, essa doeu até em mim. - Yakov disse da entrada do rinque, ao lado da menina. - Dima, até os amadores podem ver que o seu flip está uma vergonha.

 

— Faz melhor então, babaca. - o outro resmungou enquanto saía da pista.

 

— Vou fazer mesmo, com licença. - Yakov disse retirando os protetores dos patins e entrando no gelo.

 

— Não tinha nada de errado com os saltos. - Lilia disse a Dimitri. - Mas... parecia tudo muito duro. Você mal mexia os braços. - ela disse imitando a forma em cruz que o patinador manteve no programa inteiro.

 

Piscando algumas vezes antes de entender, ele exclamou um "Ah!" em compreensão antes de rir.

 

— Todos os patinadores são assim, Lilka. É a postura padrão. - Dimitri apontou para Yakov no gelo. - Preste atenção no Yasha.

 

Dimitri trocou o disco e começou a tocar a música para o programa de Yakov. Ela não sabia o nome, mas apostaria em Bach.

 

E, de fato, Yakov também parecia um boneco de madeira.

 

Mas ele ainda conseguia colocar um pouco de suavidade nos movimentos, uma certa leveza nos braços após finalizar um salto. Ainda seria muito melhor se eles pudessem se mover como bailarinos.

 

— Por que vocês não movimentam mais os braços? - ela perguntou. - As meninas fazem assim.

 

— Por isso são meninas. - Dimitri respondeu como se fosse óbvio. - Se enchermos de firulas, perdemos a masculinidade do programa.

 

Lilia, que lidava todos os dias com meninos que contavam histórias emocionantes e comoventes com seus corpos e não deixavam de ser menos "homens", achava aquilo uma tremenda palhaçada.

 

Yakov terminou a performance e foi logo ouvir os comentários. Dimitri teceu críticas sobre os spins e um lutz fora do tempo, mas admitiu que o flip era melhor. Lilia apenas observou ligeiramente contrariada.

 

— Prefiro balé. - ela disse quando questionada. - Os meninos são mais expressivos. É mais bonito de assistir.

 

— Sei. Tudo acaba voltando pro balé pra você. - Yakov pareceu pensar sobre algo e franziu as sobrancelhas. - Você fala sobre o seu balé, mas nunca tentou patinar um programa completo. Ou já?

 

— Claro que não. - ela fez uma careta. Ela nunca tinha entrado num rinque antes daquelas aulas. - Eu não sei patinar.

 

— Mas eu sei balé. - ele contra-argumentou. - Conheço o meu domínio e o seu. Por isso, tenho o direito de falar que o que você faz é coisa de gente louca, de vez em quando. Você está em desvantagem, Baranovskaya. Como pode falar de algo que nunca experimentou?

 

— Eu não preciso falar, eu estou vendo. - ela apontou os olhos para frisar o que dizia. - Não tem sentimento, não aproveita a música, não...

 

— Dimitri. - ele a interrompeu sério. - Pegue os patins velhos de Arenskaya no depósito. Acho que o 36 cai bem aqui.

 

Os três ficaram em silêncio, Dimitri e Lilia tentando compreender o que fora dito. Dimitri entendeu rápido, mas ainda não estava muito certo de que devia fazer aquilo.

 

— Tem certeza? - ele perguntou devagar.

 

— Absoluta. Agora, vai. - ele disse saindo do gelo e colocando os protetores, apenas para voltar a encarar a menina friamente.

 

Lilia decidiu que não gostava daquele olhar. Era um olhar de professor e ela já tinha o suficiente daqueles. E não entendia o que estava acontecendo.

 

Dimitri saiu a passos apressados e ela perguntou:

 

— Aonde ele vai?

 

— Pegar uns patins pra você. - ele respondeu dando de ombros.

 

— Pra mim? Mas eu... - ela parou, finalmente entendendo tudo - Não, eu não vou patinar, Yakov. Esquece isso.

 

— Lilia, você ama o que faz. Isso já deixou bem claro. - ele disse calmamente. - Só que não vê que o mundo não gira em torno dos seus pliês e arabesques. E pode acabar ofendendo quem tem uma visão diferente da sua. Eu estou muito confortável sabendo que alguém acha patinação um porre. Mas outros podem ter uma reação diferente. - ele abaixou levemente a cabeça até estar no mesmo nível que ela. - Só pode opinar sabiamente sobre algo depois de saber como funciona. E eu adoraria transformá-la numa patinadora profissional só para provar o meu ponto, mas não temos tempo pra isso. Só vou conseguir dar uma hora de aula.

 

Ela semicerrou os olhos.

 

— Quer que eu retire o que eu disse? Tá bem. Patinação é um esporte tão bonito quanto balé. Pronto. Feliz agora?

 

— Só depois que você estiver patinando. - ele disse ainda com a mesma seriedade.

 

— Yakov, eu não posso patinar. Eu danço, preciso estar em perfeito estado amanhã para continuar com a minha vida. Se eu cair nesse gelo, eu...

 

— Você vai levantar. Do mesmo jeito que você levanta quando um salto dá errado.

 

A tolerância de Lilia já estava em zero.

 

— Quer parar de me tratar igual criança?! - ela disse mais alto do que devia, punhos cerrados ao seu lado para evitar ações exageradas.

 

— Te trato assim porque você é uma criança. - disse um Yakov muito adulto com seus quase 17 anos. - Às vezes até você se esquece disso, não é, Lilia? Mas é verdade. E a parte legal de ser criança é que a gente faz as burradas e os mais velhos não ficam tão bravos, porque já passaram pela mesma coisa. Estou te dando a chance de se redimir e de aprender uma coisa nova. A escolha é sua.

 

Furiosa era pouco para descrever como ela se sentia. O pior era que ela já estava começando a considerar Yakov um cara legal. No final, ele é um idiota como todo mundo.

 

— Se eu disser "não", você me acusa de imaturidade. Se eu disser "sim", estarei aceitando a sua manipulação. - ela riu sem humor. - Que situação ótima você me colocou, Feltsman.

 

— Uau, não sabia que ensinavam sarcasmo no jardim de infância. - ele disse parecendo impressionado. - Eu te convidei pra patinar, Lilia. Se quiser dar um significado profundo pra isso, fique à vontade.

 

Ah, ela queria. Parte dela queria pegar sua bolsa e sair batendo pé daquele rinque para nunca mais voltar. Outra queria tomar os patins da mão de Dimitri - que já tinha chegado e observava a tudo em silêncio - colocá-los e mostrar que sim, ela conseguia andar naquela merda de gelo. Mas e se desse errado? E se tudo que ela conseguisse fosse um joelho ralado e aquele sorriso presunçoso de Yakov caçoando dela? Aquilo seria muito pior que ser chamada de "criança".

 

Mas Lilia sentia que Yakov não era do tipo a rir de quedas alheias, mesmo quando fossem merecidas. Não, ele era o clássico silêncio carregado de um "Eu te avisei" não dito. Esses doem muito mais.

 

Lilia era um soldado. E soldados não fogem à luta.

 

Finalmente quebrando o contato visual, ela se dirigiu ao banco mais próximo, sentando-se para tirar seus gastos mocassins e colocá-los alinhados com a bolsa ao seu lado.

 

— Você tem olhos bons, Feltsman. - ela disse se permitindo um pequeno sorriso desafiador. - Eu realmente calço 36.

 

Yakov suspirou, quase parecendo aliviado, antes de pegar os patins de Dimitri e ajudá-la a calçar.


 

 

De uma coisa Lilia não podia reclamar: Yakov era muito atencioso. Sempre perguntando se os laços estavam muito apertados, se ela tinha alguma dúvida sobre as medidas de segurança ("Jura que não vai esquecer dos joelhos?" "Sim, Feltsman.") e assegurando que só a deixaria sozinha quando tivesse absoluta certeza de que ela conseguia dar mais de dois passos sem cair de cara no chão.

 

Lilia não tem orgulho de admitir que a primeira coisa em que pensou ao pisar no gelo foi em desistir. Era esquisito, seus pés estavam estranhos e ela sentia que podia cair a qualquer segundo. Eles nem tinham dado o primeiro passo.

 

— Tem certeza de que isso é uma boa ideia? - Dimitri perguntou do lado de fora. - Eu não quero perder minha vaga na delegação porque uma bailarina do Bolshoi torceu o pé.

 

Dizer que aquilo deixou Lilia mais nervosa foi um eufemismo.

 

— Tá escrito "Sasha Gorski" na minha testa, Nabiyev? - Yakov perguntou irritado olhando sobre o ombro. - Se não quer ajudar, vaza. Eu me viro aqui.

 

A bailarina concluiu que a história sobre o tal Sasha não tinha acabado bem. Ela perguntaria mais depois, se sobrevivesse. Dimitri continuou ali, apreensivo, provavelmente para garantir que teria mais alguém para ajudar caso o pior acontecesse.

 

— Pode usar o muro como apoio no início. - Yakov disse voltando sua atenção pra ela. - Quando precisar parar, deixe os pés em forma de "v", como uma primeira posição. Ombros, quadris e joelhos têm que estar alinhados.

 

Ela assentiu, olhos presos aos próprios patins enquanto dava passos incertos no gelo. Lá estava ela, patinando sem um pingo da delicadeza e suavidade que queria ver nos outros. Como ela queria voltar no tempo e fazê-la calar a boca.

 

— Seus pés não vão sumir, Lilushka. Pode olhar pra frente. - Yakov disse aparentemente segurando uma risada ao seu lado. - Difícil?

 

— Não. - e daí que meias verdades são mentiras? Ela não estava tão ruim assim.

 

— Se é assim, eu vou até o outro lado do rinque e te esperar lá...

 

— Não! - ela segurou o braço dele antes que pudesse se mover. - Não brinque com isso, Yakov. Senão eu piso em você com esses patins.

 

— Quanto amor. Aqui, me dê as suas mãos. - ele disse parando a frente dela. - Vou te levar pra longe do muro.

 

— Mas eu gosto do muro. - ela disse quase fazendo bico.

 

— Eu, não. Minha mãe é de Berlim. Muros são um assunto delicado em casa. - se aquilo era pra ser uma piada, foi horrível. - Você confia em mim?

 

Ela queria dizer "não" só por birra, mas ela confiava. Yakov, com aquele jeito meio bruto e sério, era o mais próximo de um amigo que ela fizera desde que saiu de Ekaterinburgo. E amigos servem para confiar mesmo quando você não confia em si mesmo.

Ela respirou fundo antes de soltar o muro e segurar uma das mãos do rapaz, sendo seguida pela outra logo depois.

 

— Isso, está indo muito bem. - Yakov disse se movimentando quase à mesma velocidade da menina. - Eintlein.

 

— Oi? - ela piscou em confusão. - Isso é alemão?

 

— Sim. "Patinho". Você não é nenhum cisne no gelo, mas um pato está de bom tamanho. - ele riu. - Acho que mais umas aulas e já posso te ensinar um salto waltz. É o suficiente pra ser o meu par a tempo das Nacionais.

 

— Ha ha. Muito engraçado. - ela disse dividida entre fazer caretas para a ideia e se manter de pé. - Seu novo par ficaria com ciúmes.

 

— Ah, não te falei? Andrei desistiu de me colocar nos pares. Continuo no individual, livre como um ianque. - ele soltou uma das mãos quando percebeu que ela ganhara estabilidade. - Mas se um dia desistir do Bolshoi antes de eu chegar aos 30, a proposta ainda está de pé.

— Por que essa obsessão em me fazer patinar, Yakov? - ela perguntou com um sorriso ao ver que as chances de cair naquele gelo eram mínimas, agora.

 

— Não sei. Só acho que seria mais fácil treinar levantamentos com você, pequena desse jeito.

 

— Eu vou crescer. - ela disse convicta. - Não posso crescer tanto, mas eu vou crescer. Quem sabe eu fique mais alta que você.

 

— Ah, isso seria uma afronta. Só por causa disso você vai sair desse rinque sozinha, agora. - ele disse soltando a última mão e deslizando para longe. - Te vejo do outro lado, Lilushka. Não se esqueça dos joelhos.

 

Yakov!






 

Julho de 1962

 

Lilia ainda se lembra quando Yakov veio procurá-la na escola pela primeira vez.

 

Ela estava ocupada costurando uma de suas sapatilhas de ponta quando uma de suas colegas de quarto, Nadya, veio correndo com um sorriso triplamente besta no rosto:

 

— Um menino veio ver a Linya!

 

As outras duas meninas no quarto quase entraram em combustão pela notícia, como se a visita fosse pra elas. Lilia achava que elas, assim como metade da ala feminina da Compania, eram exageradas e que deveriam cuidar de suas vidas.

 

Mas após a terceira ou quarta visita e a confirmação de que Lilia e o "patinador pouco atraente" realmente não estavam namorando, as fofocas pararam e a bailarina pôde receber garotos em paz.

 

A instituição era rigorosa com a segurança dos alunos, principalmente das meninas, então Lilia só tinha permissão para sentar com Yakov em um dos bancos ao redor da Academia enquanto as inspetoras os vigiavam à distância. De qualquer forma, não é como se eles fossem se beijar assim que elas virassem as costas (Eca.).

 

O problema eram as tralhas que Yakov trazia.

 

— Seu animal, ainda vai ser preso com todo esse lixo. - ela disse com uma careta enquanto descascava uma das tangerinas trazidas pelo amigo. Nada de chocolates. Ela tinha que manter o peso.

 

Yakov tinha o péssimo hábito de comprar quinquilharias estrangeiras no mercado negro. Sua última obsessão é conseguir uma câmera de nome difícil de qualidade muito superior à nacional. O problema é que ele tinha que envolver Lilia nos esquemas, também.

 

— Esperarei sua visita na cadeia, então. É justo, pois estou fazendo o mesmo por você. - ele disse apontando o prédio atrás deles e pegando um livro na mochila. - Aqui, pra você treinar o seu francês. Só tive que pintar a capa para não causar problemas.

 

Ela folheou o livro, sujando um pouco as páginas com o suco da tangerina, e quase engasgou ao ler o título.

 

Robinson Crusoé? - ela sussurrou alarmada. - Yasha, isso é ilegal, você pode matar nós dois assim!

 

— Por ler um livro? - ele sorriu de lado. - Você é mais esperta que isso, Lilushka. É só agir como se não estivesse fazendo nada de errado.

 

— Papai me mataria se soubesse... - ela disse baixando os olhos para o livro.

 

— E você não vai contar pra ele porque você não é burra. - ele disse o óbvio. - Meu amigo disse que pode conseguir "Lolita", também. Mas nenhum de nós fala inglês, então acho que seria chato.

 

— Lolita? Aquela em que a garota se apaixona pelo padrasto? - ela fez mais uma careta.

 

— Essa mesma. Dizem que lançaram um filme baseado no livro no Oeste. - ele roubou uma de suas tangerinas. - Podíamos ir ao cinema qualquer dia desses. Irina pergunta muito de você.

 

— Gentileza dela. Mas por que só você vem me visitar? - Lilia disse retirando a franja dos olhos. Ugh, esse ano aquilo teria um fim.

 

— Porque eu fujo dos treinos. - ele respondeu simplesmente. - Fica chato às vezes. E eu ainda não consegui meu triple axel.

 

Ela rolou os olhos.

 

— Se você não fugisse, quem sabe fizesse melhor.

 

— E deixar você sozinha nessa prisão? Que amigo lixo eu seria. - ele franziu as sobrancelhas para a sacola de papel já vazia no colo da menina. - Caramba, você come rápido. Estão te alimentando direito nesse lugar, Lilia?

 

— Estão, Yakov. É você que não traz lanches suficientes. - ela escondeu um sorriso enquanto limpava as mãos no papel pardo. - Na próxima, quero maçãs.

 

— Estamos exigentes, não? - ele sorriu maleficamente. - Talvez eu deva trazer uns cheburekis super gordurosos e tão estufados com carne que qualquer movimento brusco os faça explodir.

 

— Eu nunca poderia comer um desses. - a mais nova disse quase melancólica. - Eu viraria um balão.

 

— E sorvete! Está um calor dos infernos, eu tenho que trazer sorvete. Docinhos, refrescantes e cheios de calorias.

 

— Yakov, isso é cruel! - ela disse tapando os ouvidos e virando-se para o outro lado. Aquela conversa estava lhe dando água na boca.

 

— Lilushka~. - ele teve a audácia de se levantar e ficar bem a frente dela, assim ela não tinha como fugir. - E que tal chocolates?

 

Lilia já se irritara com aquele sadismo, de forma que sua vingança foi pegar o proibido exemplar de Robinson Crusoé e bater com ele repetidas vezes no patinador, recebendo muitos "Ais" risonhos no caminho.

 

— Volta aqui, não terminei de quebrar a sua cara. - ela disse séria enquanto se levantava para caçar o desertor.

 

Na próxima visita, Yakov trouxe maçãs suficientes para alimentar um exército.




 

 

Dezembro de 1962

 

Na primeira vez em que Lilia se apresentou para uma grande plateia, Yakov não estava lá para assistir.

 

Ele estava no Campeonato Soviético, defendendo sua vaga para competições internacionais. Ela entendia e não estava brava, até porque seu papel de dois minutos na Dança dos Mirlitons até empalidecia comparado a uma competição nacional.

 

Mas na segunda vez em que se apresentou na semana, ele veio junto com Irina, Dimitri e Efimiya. E eles pareciam tão impressionados com a apresentação que ela ficou sem palavras diante de tantos elogios. E as flores. Lilia nunca tinha ganhado flores. Quando Efimiya lhe entregou um buquê de lírios nos bastidores, ela quase pensou que ia chorar.

 

— Você estava linda, Lilka. - Irina assegurou com um sorriso. - Acho que Dimitri chorou.

 

— Entrou um cisco no meu olho, só isso. - o patinador resmungou. - Agora, Lilka, pergunte como nós fomos no Campeonato.

 

— Foram bem? - ela perguntou curiosa. Eles pareciam bem relaxados com o assunto.

 

— Dima me derrubou. - Efimiya suspirou.

 

— Eu errei um Lutz. - Irina sorriu sem-graça. - E Yakov ganhou a prata.

 

— Prata! - ela sorriu animada. - Yasha, isso é ótimo! Meus parabéns.

 

— Podia ter sido um ouro. - ele disse soando um pouco decepcionado. - Se eu não tivesse desequilibrado no axel, eu ficaria em primeiro.

 

— Olha que babaca. Lilka, diga pra ele o quanto está sendo ridículo.

 

Ah, ela diria.

 

Lilia deixou o buquê de lado e cruzou os braços, expressão séria. Era até engraçado considerando que ela estava vestida dos pés à cabeça em tons pasteis e glitter, como uma boneca feita de doces. Uma boneca muito brava.

 

— Yakov, tem centenas de patinadores se rasgando para ter um quinto do talento que você tem. Prata é um bom resultado.

 

— Mas podia ser ouro. - ele retrucou.

 

— Agora você vai ter que esperar. - ela pendeu a cabeça pro lado, um sorriso desafiador nos lábios. - E afinal, o que é um ouro nesse Campeonato perto do ouro que você vai ganhar nas Olimpíadas?

 

Ele estava pronto para dizer algo, mas depois parou incerto sobre o que ouviu:

 

— Olimpíadas?

 

— Ela tem razão. - Efimiya se pronunciou. - Chernyshev se aposentará esse ano. Depois dele, você só tem que brigar com os caras de Leningrado por uma vaga nas internacionais. Você vai acabar nas Olimpíadas, Feltsman. Lá pode vingar o seu ouro.

 

Os outros patinadores concordaram e Yakov parecia um tanto atordoado com a ideia. Olimpíadas. Poder viajar para outro país e representar a União Soviética inteira. Parecia tão absurdo, mas tão maravilhoso ao mesmo tempo.

 

— Você... acha mesmo que eu tenho esse potencial? - ele perguntou sério.

 

Nem tinha por que ele confiar tanto na opinião dela. O que ela sabia sobre patinação além dos nomes dos movimentos e que saltos waltz eram a única coisa que ela conseguiria fazer nessa encarnação (com muitas quedas teimosas, aliás)? Mas ela sabia que Yakov era capaz. Porque quando ela falou sobre o medo que tinha de estragar tudo no palco, ele disse que não há pessoa melhor para enfrentar seus medos do que você mesmo. Ela confiava nele. E confiava no que era capaz.

 

— Se eu mentisse, não seria sua amiga. - ela disse dando de ombros.

 

O mais velho acabou sorrindo e desviando o olhar, um traço de rubor nas bochechas por estar sendo encorajado por uma menina de catorze anos. A mesma menina que ele convidou para patinar meses atrás e a cada dia se tornava mais como a irmã que ele nunca teve.

 

Yakov nunca se orgulhou tanto de ter convidado uma menina para patinar.

 

— Eu vou ganhar aquela medalha olímpica, Lilushka. - ele prometeu. - E, quem sabe um dia, eu consiga te levar nas Olimpíadas com a gente.

 

— Sei. - ela balançou a cabeça. - E fazer o quê lá?

 

— Distrair Yakov já ajuda muito. - Efimiya resmungou. - Ele é um porre em competições. "Vocês falam alto demais.", "Vocês se lembraram dos protetores?", "Vocês pegaram o casaco?". Teve uma hora que Batalov respondeu "Sim, mãe." e ele nem notou.

 

Alguém precisa ser a mente responsável dessa equipe. - Yakov reclamou.

 

— Você parece um velho, Yasha. - Irina fez um bico. - Desse jeito, vai ficar careca muito cedo. Terá que usar um chapéu.

 

— Cala a boca, Irina.

 

Por mais estranhos que eles fossem, Lilia gostava da ideia de uma viagem em grupo. Principalmente aquele grupo.



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Notas finais do capítulo

#PrimeiroPasDeDeuxDepoisWhatsApp #CanYouSpinMeRightRound #RiseOfTheStraights

Algumas informações sobre o capítulo e a história em geral:
??” A CSKA (Centro de Esportes do Exército) era um clube soviético patrocinado pelas forças armadas e incluía vários esportes, desde hóquei a futebol. Alguns patinadores soviéticos treinaram na Arena da CSKA, apesar da maioria treinar na Spartak (outro clube associado a sindicatos) de Leningrado. Os pares realmente eram mais favorecidos por mostrarem o trabalho em equipe, símbolo do socialismo, enquanto os patinadores individuais passaram um bom tempo à sombra de norte-americanos ou canadenses.
??” Eu sou 90% licença poética sobre o Bolshoi nessa fic, desde a disciplina (em alguns momentos vocês vão se perguntar quando raios a Lilia vai estudar se ela passa o tempo inteiro naquele rinque) até as obras encenadas. Finge que tá bonito.
??” Robinson Crusoé, assim como outros obras ocidentais, eram proibidas na União Soviética pelo teor subversivo que ia contra o regime. Isso não significa que as pessoas não davam um jeitinho de pôr a mão na muamba.

Vou falar pra vocês, que vergonha alheia foi esse capítulo. "He was a punk, she did ballet" feelings de 2013 me atacaram demaaaais. Eu não sei nada de dança e esse capítulo foi uma das coisas mais difíceis que eu já escrevi. Mas só melhora a partir daqui :v
Se você gostou da história, diga o que achou! Precisamos de mais fãs desse ship ♥♥
E se você é uma Nat King que está lendo isso antes do devido aniversário... Que feio, Nat, abrindo presente antes da hora :B (te amo e espero muito que tenha gostado)

Até a próxima!!
XOXO



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