Memórias na Chuva

Ele pisou no solo macio, estranhando aquela situação. Ele não deveria estar ali, e nem queria. Maldita seja a deusa das águas, Janna, que lhe condenou a possuir uma forma humana para aprender a ser humilde. Porra, quem se importa? Ele era o rei do mar. O que diabos ele aprenderia com humanos? Meros mortais idiotas. O vento balançava seus longos cabelos brancos e aquilo lhe deixava mais aborrecido do que já estava.

Deu mais alguns passos no meio da floresta. Seus olhos azuis procurando por algo que ele não sabia exatamente o que era. Algumas pétalas de cerejeira passaram por ele, e Talon fixou seu olhar nelas, seguindo-as. Tinha experimentado apenas algumas horas no mundo humano e já poderia dizer que detestava o sol. E todo o resto. Seu oceano era algo muito superior a aquilo tudo. Sentia sua pele pálida arder por ficar muito tempo andando sem a proteção das árvores na grande floresta, mas tentou ignorar a sensação e continuou seguindo as pétalas. Abriu alguns arbustos imensos com suas mãos enquanto sua espada permanecia na bainha. Se algum humano imundo tentasse lhe atacar, ele não hesitaria por um segundo sequer.

Sentiu um aroma delicado passar por si, e as pétalas de cerejeira planavam sobre o pequeno lago, que se situava no centro da floresta. As pequenas pétalas pareciam fazer uma espécie de dança que capturou os olhos azul céu de Talon que fitava intrigado, enquanto se sentava na grama para observar aquele espetáculo.

— Ah. - Crispou os lábios quando a figura de uma mulher surgiu em sua frente. Ela flutuava sobre a água, seus longos cabelos em um tom preto arroxeado  que ele não conseguia distinguir balançavam suavemente e seus olhos azuis lhe julgavam silenciosamente. Uma espada flutuava ao seu lado e Talon sabia muito bem quem ela era.

— Janna. - Saudou a mulher silenciosa que fitava-lhe curiosamente. Ela permaneceu quieta, apenas abriu um sorriso amigável e eles ficaram longos minutos em uma conversa apenas com seus olhares.

Talon odiava todo mundo. Isso era fato. Todos eram inferiores a ele. Qualquer célula viva existente naquele universo devia lhe homenagear e reverenciar. Afinal, ser o rei do mar não era simples. A única pessoa que ele reconhecia como igual era Janna. Aquela mulher era intrigante por si só, não apenas por ter um poder enorme ou ser uma deusa. Se ele fosse sincero consigo mesmo, queria odiá-la. Queria odiar Janna por lhe fazer passar pelo que estava passando. Mas ele não conseguia. Existia algo ali e ele se negava a aceitar isso.  O que exatamente existia?

Talon não queria saber.

— Quando vou poder voltar ao meu mar? É inútil fazer isso, Janna. Eu não sou como eles. - Comentou, levemente irritado enquanto a mulher sentava-se cuidadosamente ao seu lado, ignorando a terra em seu delicado traje rosa.

— Apenas você pode me dar essa resposta. Viva como um humano, viaje como um humano. Verás que tais criaturas são muito mais do que pensa. Quando fizer isso, deixarei que retorne. - A deusa passava suas mãos pelos cabelos brancos do rapaz, curiosa com a forma humana que ele possuía.

Talon arqueou sua sobrancelha enquanto fitava Janna com o canto de seus olhos. Ficou se questionando porque porras estava aceitando o toque de alguém, mas acabou deixando que a mulher continuasse o que estava fazendo.

— Gostou da minha forma? - Ele mordeu os lábios, virando-se para encarar a deusa que corou e ficou no mesmo tom de seu vestido.

— É diferente te ver em uma forma que não seja um dragão. - Disse, gentilmente, tentando ignorar o calor em suas bochechas.

— Não tenho certeza se ser comparado com um humano me deixa feliz. - Respondeu, seco.

Janna segurou a mão de Talon que estava próxima a ela, na grama, e ele se assustou com o toque. A mão da mulher era quente. Confortavelmente quente. — Pois você deveria ficar feliz. Foi um elogio. Acho que é desta forma que os humanos chamam.

Olhos azuis fitando outros olhos azuis. Silêncio e calor. Aquilo resumiu a presença de Janna com ele. Ele gostava da presença dela. Mais do que deveria. Mas se levantou rapidamente, tomando distância dela que parecia ter uma leve tristeza no olhar.

— Você é um rei, mas em terras humanas, lembra-te que és mortal. Peço que tome cuidado, meu querido.. amigo. - Janna perdeu a fala no momento em que lhe chamou de amigo. Oh, bem. Deusas não podiam se relacionar com ninguém. Esse era o destino que o universo havia lhe traçado, e Talon sabia muito bem daquilo.

Talvez fosse exatamente por saber disso que preferia manter distância da mulher de longos cabelos arroxeados. Mas como ele poderia manter distância se ela estava sempre ali com ele? A água também pertencia à ela. E ele pertencia ao mar. Como diabos Talon conseguiria ignorar a existência de Janna?

O homem engoliu em seco enquanto encarava Janna e dava alguns passos para fora da clareira onde estavam. No momento em que se afastava dela e andava sem rumo, uma leve chuva começou a cair e molhar tudo que por ali existia, inclusive ele.

Quando as suaves gotas da chuva tocaram seu rosto, ele conseguiu ouvir a delicada voz da Deusa ressoar por ele: — Não esqueças que sempre estarei a te proteger.

Ele fechou os olhos, enquanto levantava seu rosto para o céu cinza, aceitando a água que caía sobre si. Aquilo era o mais próximo que ele e Janna poderiam ser.

Se eu fosse a chuva,
  eu poderia me conectar com o  coração de alguém,
  assim como ela pode unir
  os eternos separados, terra e céu?

Bleach, Volume 3