Antes do nascer do sol. escrita por calivillas


Capítulo 3
Mariana – o reencontro




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Dezembro de 2017. O começo do plantão na emergência do hospital Sant’Ângelo estava excepcionalmente calmo, naquela noite, isso era bem raro, havia aparecido apenas algumas suturas de cortes em acidentes domésticos, um bêbado, um ataque de ansiedade e outros casos fáceis de resolver, por isso, que o tempo passava lentamente.

Deveria ser quase meia-noite e ainda faltavam mais sete horas de trabalho, por isso Mariana preferia os dias agitados, em que as horas voam, sem que percebesse. Mas, a tranquilidade acabou, quando uma ambulância chegou, trazendo o primeiro caso com alguma gravidade daquela noite e, junto com ele, o passado que não queria recordar.

— Quem ó médico responsável? — um dos paramédicos, que empurrava a maca emergência a dentro, perguntou a enfermeira, eu sai correndo na sua direção.

— Quem está aqui agora é a doutora Mariana — ela respondeu, quando eu me aproximei, colocando as luvas.

— O que temos aqui? — perguntei, ajudando os passar o paciente para a maca do hospital e começou a examinar

— Homem, 28 anos, seu quadro é estável, ele não corre risco de morte iminente. Tentou suicídio por enforcamento, o irmão chegou em casa mais cedo porque ele não atendia o telefone, parece que o paciente sofre de depressão, assim conseguiu impedi-lo. Sinais vitais estáveis, pupilas reativas, reflexos preservados. Colocamos um colar cervical com prevenção e soro fisiológico para manter uma veia e oxigênio nasal.

— Ótimo. Vamos verificar as condições dele e enviá-lo para o RX para avaliar uma possível lesão da coluna — respondo.

— Agora é com vocês — um dos paramédicos disse, já empurrando a sua maca de volta para ambulância.

— Obrigada.

— Boa noite e bom trabalho — Alguém fala, mas não presto atenção, volto-me para o homem pálido e com barba de dois dias, bem na minha frente. Há algo nele muito familiar.

— Senhor, qual é o seu nome? — pergunto, com o coração acelerando.

— Joaquim — ele geme baixo.

— Joaquim — murmuro, sem poder acreditar, deve ser só coincidência, preciso me concentrar, tenho que fazer o meu trabalho. — Consegue sentir as pernas.

— Sim — sua voz é quase um sussurro,

— Mexa os pés — ordeno, ele obedece.

— Aperte a minha mão — coloco minha mão sobre a dele, percebo a leve pressão. — Bom.

Depois de algum tempo, a maca com Joaquim está sendo levada para o setor de radiologia, então, desabo na banqueta mais próxima, arranco as luvas e as jogo na lixeira ao lado, passo a mão na testa, afastando alguns fios de cabelo do meu rosto.

— A família do paciente está aí fora. Você está bem, Mariana? — Simone, uma outra residente, se aproxima, preocupada com minha aparência.

— Eu não estou me sentido muito bem. Poderia falar com eles dizer que o quadro é estável, que estamos fazendo outros exames. Preciso de um pouco de ar.

— Claro. Descanse um pouco. Vá tomar um café. Eu falo com eles.

Mas, não consigo descansar, minha cabeça dá voltas, como o carro naquela fatídica noite. Não podia ficar parada, enquanto, Joaquim estava logo ali, na outra sala, precisava vê-lo mais uma vez.

Não! Tenho que colocar a cabeça no lugar, não sou mais aquela menina de 17 anos apaixonada por um colega de escola. Sou uma mulher, uma médica responsável! Já se passou tanto tempo, o que a vida fez de nós? Ele tentou se matar! Preciso vê-lo, outra vez!

Vou direto ao setor de radiologia, vejo que os exames dele, estão bons, não há nenhum sinal de lesão.

O maqueiro o está levando de volta a emergência, emparelho com ele.

— Joaquim, seus exames estão bons — digo, com uma dissimulada animação.

— Quem é você?

— Sou a médica que lhe atendeu — Sei que ele não me reconheceu, o que me deu um certo alívio, prefiro que não saiba que me reencontrou, principalmente, em uma situação dessas.

— Mariana, falei com a família do paciente, eles estão querendo saber quando poderão transferi-lo para uma clínica de psiquiátrica, porque estão com medo que ele tente, outra vez, se suicidar. Parece que a madeira onde havia se prendido o cinto se quebrou com o peso dele. Ele teve sorte — Simone me repassa a conversa que teve.

— Sorte?! Será melhor que ele fique aqui essa noite, em observação, apesar de não encontrar nada nos exames dele.

O plantão voltou a sua incomum calmaria, as pessoas dormitavam pelo canto ou conversavam em voz baixa. Não consigo descansar, repasso a cena daquela noite, nós dentro do carro, eu de olhos fechados, cabeça jogada para trás, sonhava, Joaquim dirigindo bem na minha frente, ouvindo Lídia cantar, o barulho do motor nas ruas silenciosa e, de repente, o impacto, o estrondo, nós sendo sacudidos com violência, ao carro girando, girando, os gritos e a dor, desmaie. Tenho uma vaga lembrança das mãos sobre o meu corpo, em acordar em um quarto de hospital com uma perna quebrada e sem o baço, e nenhuma ideia do que havia acontecido com os meus amigos.

 Vou até o box onde Joaquim está, com os olhos fechados, já sem o colar cervical, sua expressão mais tranquila, lembrando o garoto pela qual era apaixonada, sento-me na cadeira ao seu lado, encarando o seu perfil. Ele mudou, mas ainda guarda um pouco do menino da minha juventude.

— Não vou tentar mais nenhuma besteira, pode se ocupar com dos seus outros pacientes— ele fala, com a voz rouca, de olhos ainda fechado, percebendo a minha presença.

— Não estou preocupada com isso, só não tenho outros pacientes por aqui, hoje. Como você está?

— Eu estou bem — Ele abre os olhos e se volta para mim, eu fico parada, mal pisco, no fundo, quero que me reconheça, que se recorde de mim. Será que mudei tanto assim? Não lembro a garota de cabelos compridos e indomáveis, o rosto redondo da juventude?

No entanto, eu me lembro muito bem dele, dos seus olhos sonhadores, do seu sorriso fácil por quem me apaixonei.

— Por que fez isso, Joaquim? — perguntou, com a voz suave, ao amigo, ao meu amor do passado.

— Por quê? Você não me entenderia — sua voz estava baixa, saía rasgada.

— Tente.

— Não consigo me livrar dos fantasmas, eles me assombram noite após noite, por anos. Nunca terei paz.

— E morrer é resposta?

— Assim, poderei olhar os meus fantasmas cara a cara, pedi perdão.

— Eu também tenho os meus fantasmas, mas não sei se quero encontrá-los cara a cara, não agora — Dei um sorriso triste, pois era exatamente isso que estava acontecendo nesse momento, estava diante de um dos meus fantasmas, talvez, aquele que mais me assombrava, o que mais temia.

— Eu mesmo criei o meu fantasma, sou um assassino — a voz de Joaquim era só um murmúrio.

Mariana sabia do que ele falava, pois estava lá, Joaquim carregava todo aquele fardo pesado da culpa por quase dez anos, quem sabe, ela também, por isso tenha se tornado médica.

— Não, você não é um assassino, Joaquim. Você não teve culpa do que aconteceu, naquela noite.

— Como pode saber disso?

— Eu, simplesmente, sei.


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