Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 8
Wicked or weakness.


Notas iniciais do capítulo

Oi bebês! Tudo bem? Esse capítulo tá bem atrasado, né, desculpinhas. As coisas andam muito corridas e eu tô um pouco incerta com o rumo da história. Não tenho certeza se as coisas estão fazendo sentido pra vocês ou se ainda fazem pra mim ou se faz sentido no geral etc etc. Enfim. Eu vou esperar essa semana passar (com esperança a crise tb) e aí vou ver o que faço a respeito dessa historinha. De qualquer forma, segue mais esse capítulo falando um pouco sobre certas relações afetivas e babados decorrentes. O título vem do primeiro trechinho de HUMBLE., do Kendrick Lamar, porque me parece que essa frase reflete muito bem as questões que me surgem quando eu penso sobre os personagens. O avisinho de Trigger Warning vai ser normalzinho porque não tem nada muito gráfico. Boa leitura!
*Trigger Warning* O capítulo contém menções a assassinato, assédio, conteúdo sexual, estupro e violência.



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No outro dia, Cato acordou primeiro.

Para começar a narrar todas as coisas que aconteceram naquele dia, é necessário entender que nem ele sabia como tinha conseguido passar por aquela noite. Aparentemente, todo o conteúdo reprimido por sua mente tinha voltado em uma noite só. E todo pequeno delito, cada pequeno pecado, tudo estava de volta naquela noite.

Cato permaneceu preso naquele tipo de sono pesado que seu corpo te submete às vezes, ignorante a quaisquer problemas que seu suposto sono de descanso esteja te causando. Ele não acordou sequer uma vez, mas, em certas ocasiões, ficava parado naquela linha entre estar acordado ou não, consciente ou não. E em um desses momentos, ele podia jurar que tinha se ouvido rezar para morrer de uma vez. Rezar para um Deus que ele não acreditava e não conhecia, mas que havia ouvido falarem a respeito.

Ele não podia dormir, porque tudo que havia de ruim no mundo o assombrava. Ele não podia viver, porque tudo que havia de ruim no mundo se encaixava perfeitamente na sua vida real.

Então Cato rezou por uns segundos. Eram palavras emboladas, repetidas, palavras que suplicavam por alguma coisa boa demais pra ele. Ele não tinha entendido exatamente o que estava dizendo, mas quase pareceu que ia funcionar.

Cato se surpreendeu quanto notou que ainda estava vivo pela manhã. Suor banhava sua pele e todos os cortes ardiam como se fossem novos e ele estava consciente de cada pequeno roxo espalhado por seu corpo.

E, como quase sempre, havia o calor de um corpo que não deveria mais ficar perto do seu.

Não fica olhando, ele pensou, depois do quinto minuto passado lá, deitado de lado, observando as expressões no rosto dela. Ninguém que tinha uma cara como aquela devia ir pra arena nenhuma. Ninguém com aquela compleição pequena devia ter os braços marcados. Ninguém que tivesse aquelas bochechas coradas devia ter o rosto se contorcendo de dor.

Porra.

Clove ainda estava presa no mesmo tipo de sono perturbado quando ele saiu do banho, se remexendo contra os lençóis amarrotados. Cato tratou de sair do quarto, decidindo não a acordar. Ficar presa em um pesadelo que não fosse real às vezes podia ser melhor (Clove chorava mais quando estava acordada).

Depois, ele passou algum tempo limpando a bagunça que tinha feito na casa e comeu alguma coisa. E, enquanto isso, Cato ouvia as palavras do presidente ecoarem na sua cabeça infinitas vezes. Snow fechou a boca e Cato pôde se ver com clareza lá dentro de novo. A arena seria especial para cada um dos tributos e teria um castigo muito peculiar para cada um dos crimes cometidos.

E havia seu pai e Clove e sua mãe sendo morta enquanto ele estava na Academia e sua traição e todas as pessoas da Patrus que estavam conspirando na casa da penúltima rua e Gaia com seu uniforme e Teo existindo e Clove de novo e de novo rondando em sua cabeça como uma toxina cujo efeito durava demais.

Cato jogou fora um vaso com cravos que estranhamente tinham sido poupados de sua descarga do dia anterior.

Burro seria ele se não conseguisse fazer as contas sobre suas chances. Tudo que ele sabia era que ainda sentia um pouco de vontade de rir quando lembrava daquilo.

Que seja, velho, Cato pensou, porque não seria mesmo um desperdício usar a criaçãozinha deles só uma vez? Ele merecia mais, merecia quantas arenas a Capital fosse capaz de criar. Ele estava sempre pronto, sempre devia estar.

Como Clove ainda estava dormindo e provavelmente precisava mais de sono que ele, o garoto imaginou que seria apropriado trocar umas palavras com seus irmãos depois do anúncio, só para não passar em branco e lembrá-los da sua existência. A Academia devia estar decepcionada, claro, porque seria mais um ano sem poder lançar quem quer que fosse a estrela que estava planejada para entreter a Capital. Talvez alguém de dezoito houvesse tido que desistir dos Jogos e se contentar em ser um Pacificador.

Forçar esse tipo de raciocínio de volta pra sua cabeça fazia Cato querer rir ainda mais. Mas porque ele tinha uma obrigação, seu rosto se tornou pedra e seus passos firmes.

Ele atravessou a Patrus e todos os olhos estavam nele, de novo, obviamente. O Distrito 2 amava seu Vitoriosos. Eles eram deuses, a ponte sagrada entre humanidade e divindade. O anúncio era a razão das expressões tristes. Nas montanhas, ninguém queria abrir mão dos seus Vitoriosos. Nas vilas mais ricas, talvez, eles estariam animados, esperando um combate de titãs do qual apenas um, o Deus entre os deuses, pudesse emergir. A chance perfeita para elevar o orgulho do distrito, reafirmar sua glória.

Na Academia, uns quatro ou cinco rostos sorridentes o cumprimentaram. As crianças ricas, obviamente. Os outros alunos estavam muito ressentidos por suas chances roubadas ou muito tristes por perderem seus Vitoriosos.

Ele bateu na porta do escritório de Brutus e esperou, observando uma luta entre duas meninas. Se Clove fosse uma delas, aquilo já estaria acabado. Era até divertido de assistir, vê-la puxando todas as armas de trás das costas, chegando toda pequenininha com todas aquelas sardinhas delicadas e pulando em pessoas que nem um gato selvagem em segundos.

Era divertido de assistir. O tipo de passado naquela sentença era aquele tipo que não devia ressurgir.   

— Entra.

— Oi – o “senhor” quase escapou antes. Brutus estava sentado na sua grande cadeira de couro como sempre, lendo papéis como se raciocinasse bem, parecendo perfeitamente deslocado, como um gigante tomando chá em uma casa de bonecas.

— Cato! Meu preferido está de volta – ele era todo cheio de maneirismo e gestos que sugeriam abraços ou coisas parecidas, mas Cato se limitou a sorrir e sacudir sua mão por cima da mesa.

— Como vai?

— Eu vou bem, eu vou muito bem. Com aquela novidade de ontem, hein? Eu estou ótimo.

Enquanto se sentava, Cato pensou que seria inútil esperar uma ironia dele. Aquilo ali era ele mesmo, animado de verdade com a chance de matar mais umas pessoas. Sorrindo e tudo.

Mas quem ligava, não é? Sorte do Brutus.

— Bom saber. Eu estava esperando que...

— E você, como vai? – ele o interrompeu, cruzando os braços e se reclinando ainda mais na cadeira, claramente desafiando os limites dela.

— Eu vou bem – Cato cruzou seus braços também, erguendo as sobrancelhas.

— Você sumiu. Wade falou que você apareceu por aqui um dia desses e eu nem acreditei. O que te trouxe aqui? Não, deixa eu adivinhar. Clove.

Cato costumava ser muito bom em ser o garoto de ouro. Ele sabia muito bem o que as pessoas queriam ouvir e o que elas queriam que ele fizesse. Não dava para dizer que agora ele não sabia, porque esse tipo de conhecimento não se perde; ele só não queria mais ser o garoto de ouro, não sabia mais como fingir sê-lo. Brutus estava atrás de um sorriso, de algum reconhecimento da posição privilegiada que ele tinha o conhecendo tão bem. Ele se limitou a dar de ombros, o que aparentemente foi suficiente, já que o homem soltou uma gargalhada digna de um momento em que Caesar Flickerman houvesse sido superado.

— Já pensou se a coisa de não mandar parceiros para a mesma edição não existisse? Já pensou na merda que seria? Você e ela, hein. Quem ia sair?

— Eu não faço ideia – Cato tentou responder honestamente, incomodado, mas a afirmação que deixou seus lábios não era exatamente verdade. Ele sabia o que iria acontecer, ele tinha visto a cena em seus sonhos algumas vezes. Clove, com seus olhos brilhantes, suas bochechas rosadas e uma mão direita que cravaria uma faca nas costas dele, iria cair ao seu lado no segundo seguinte, dizendo que sentia muito. Ele, em seus últimos momentos, ainda preso na suavidade dela, iria dizer que a perdoava e assombrá-la pelo resto de sua vida. Ela se casaria e teria um menino de cabelos escuros, um que se ia se parecer muito com ela. A Capital deixaria eles em paz. Ele ainda estaria lá.

— Você sabe, você sabe – Brutus continuou na sua brincadeira, afundado numa camaradagem que só atingia ele. Faltava ele bater as mãos na mesa. – Seria você, assume logo.  

Clove ia gostar de saber daquilo.

— Mas pelo amor de Deus, a Kentwell é... você sabe, ela é ótima, mas é pequenininha. Se você fosse um pouco mais rápido e só – ele fez com as mãos um gesto de aperto – conseguisse pegar ela... Crec. Adeus, Clove.

— Adeus, Clove – ele repetiu, sacudindo a cabeça. Era tudo muito absurdo, de um jeito cômico para ele. Ele se deu ao luxo de rir um pouco. – Com certeza.

Ia ser perfeito. Ele e ela numa arena. Adeus, Clove. Adeus, Cato, também, com sorte. Adeus, Snow e adeus, pessoas da Capital e adeus, revoltinhas fuleiras. Perfeito.

Nesses momentos, quando sua mente vagava muito e só encontrava saída numa morte iminente, o Massacre até que parecia a solução ideal, o resgate perfeito. Se não fosse pelo ódio que ele sentia por ter sido destruído daquele jeito quase jocoso e o seu conhecimento de que Clove precisava sobreviver, precisava passar mais uns anos viva, seria sua mão se levantando para se voluntariar.

Era a saída perfeita. Se Clove não existisse. E mesmo naquelas horas, naqueles momentos em que ele reparava que ela estragava tudo, que ela ficava no caminho de toda e qualquer realização, ele ainda assim não conseguia odiar ela de verdade.

— Toda vida vocês com aquelas gracinhas. Eu estava comentando com a Enobaria um dia desse, o desperdício que aquilo não era.

Cato limitou sua resposta a uma leve franzida nas sobrancelhas, a um leve aperto nos seus olhos. Brutus gostava muito de viajar pelo passado. Um que era confortável enquanto presente, mas que queimava suas entranhas ao ser relembrado.

— Mas no fim, a gente conseguiu nosso time dos sonhos de volta, não é? Todos os dois inteirinhos. Treinei vocês bem, não?

— Sim. Muito bem – o homem estava procurando reconhecimento, algum material extra para se gabar a respeito e Cato decidiu agraciá-lo com um pouquinho que fosse, para ver se agilizava as coisas. – Muito bem mesmo. Eu venci, Clove venceu, nós conseguimos o bicampeonato... Foi ótimo.

— Wade devia ganhar um crédito também, mas você sabe... – Brutus ergueu as sobrancelhas e torceu os lábios, insinuando conteúdos implícitos sobre a conduta muito bem conhecida de Wade. Wade, que havia caído perfeitamente na conversa suave de Clove, delirado com a situação inversa acontecendo, ficado obcecado com uma garota de quinze anos.

— Eu sei. – Foi tudo que Cato disse, coçando o nariz e olhando para baixo. Ele sentiu tudo que costumava sentir quando aquele tempo era o único tempo e as mãos de Wade estavam sempre muito perto de Clove e seu sorriso polido.

— Mas Clove sobreviveu, no final. Ele nunca encostou nela, foda-se essa porra, ela está vivinha! – Ele decidiu mudar o tom da conversa, como se nada daquilo mais importasse. – Nada aconteceu. Para quê remoer agora, não é?

Cato ficou cansado daquela falação toda, com raiva de nunca mais poderia acompanhar aquelas linhas de raciocínio com a naturalidade de antes. E se ele teria que lidar com Brutus por muito tempo, pra quê prolongar cada encontro?

— Sim. Eu estava esperando que desse pra eu dar uma palavrinha com meus irmãos. Acha que dá pra descolar isso pra mim?

— Claro, claro – o homem se levantou imediatamente e abriu a porta, com dificuldades em se espremer rumo à saída naquela sala pequena para ele. – Já volto com seus pirralhos. A gente se vê por aí, certo? Esses meses vão ser agitados.

— Aham, claro. A gente se vê – seu tom era um pouquinho debochado.

Cato finalmente soltou o ar e relaxou os ombros. Brutus era uma presença estranha, histérica. O jeito que o seu sorriso constante contrastava contra seus olhos de pedra era algo a se prestar atenção. Fora isso, Cato também regredia aos dez anos perto de Vitoriosos, às vezes. Admiração e um leve temor eram tudo que ele se lembrava de sentir. E Brutus tinha sido seu Vitorioso designado. Ele tinha muitas lembranças, ele nem sabia como se comportar agora que não tinha que tratar Brutus como um deus e agora que Brutus não o tratava mais como um animal. O mais velho se saía muito bem, mas, pra ele, eles dois brincando de amigos enquanto suas costas continuavam marcadas – porque as marcas do chicote eram permanentes agora – parecia ridículo.

Ele estava dando ares daquela desesperança irônica que você atinge quando repara que nada mais tem conserto e só o que te resta é rir quando a porta foi aberta de novo.

Gaia não falou uma palavra enquanto se sentou ao seu lado. Teo meramente acenou com a cabeça.

— Bom saber que você está sendo bem educada, Gaia – Cato disse, olhos grudados na sua irmã, toda pequena de uniforme de treino e rabo de cavalo. Quando ela a via de verdade, quando ele se dava conta que era real, ele queria mais que tudo que nada daquilo jamais houvesse existido. Ele queria correr, tacar fogo na Academia, decidir que o Distrito 2 não devia existir mais.

Cato mal conseguia olhar pra Gaia. Fazia seu peito se apertar daquele jeito estranho.

E se ele morresse e eles descobrissem sobre os pedreiros no Gladiador e aquela expressão no rosto de Gaia ficasse ainda pior? O que seria feito?

— Oi, Cato – ela respondeu do seu jeito levemente rude, cruzando os braços como ele.

— Oi, Gaia. Como vocês estão?

Gaia virou sua cadeira de frente para a dele. Teo ficou atrás dela.

Cato sempre se sentia muito estranho naquela posição, do lado oposto dos seus irmãos, sendo a nova autoridade a que eles tinham que responder; sem saber como exercer essa autoridade, sem saber como ser irmão deles.

Era tudo muito mecânico, tenso. Eles não sabiam fazer de outro jeito.

— Bem – Teo respondeu, acenando novamente com a cabeça. – Você?

— Bom. Indo – ele deu de ombros. O silêncio preencheu a sala mais uma vez. Cato se mexeu na cadeira, inquieto, coçando o nariz. Ele precisava desentalar. Coçando o olho vagamente, ele pronunciou lentamente: – Vocês viram o anúncio ontem.

— Você vai pros Jogos de novo? – Gaia perguntou de imediato, em um tom de repreensão, porque como se atrevia ele a ir pros Jogos duas vezes? Se ela achava aquilo ruim porque pessoas iriam morrer e talvez ele também ou porque ele iria roubar a grande chance de alguém de finalmente honrar o distrito, Cato nem quis saber. 

— Talvez. Mas eu não sei – Cato só pôde dar de ombros, tentando abaixar um pouco mais o rosto para estudar melhor as expressões faciais dela. Ela arregalou os olhos como um meio de demonstrar seu pouco interesse.

— Mas você quer ir? – Teo perguntou, se encostando contra a parede, agora completando os três de braços cruzados.

Cato sacudiu a cabeça em uma negativa silenciosa. Inexpressiva. Teo sacudiu a cabeça afirmativamente, também em silêncio.

— E a Clove? Ela vai? – Gaia voltou, em seu mesmo tom intransigente.

— Não.

— Por que você sabe que ela não vai, mas não sabe se você vai?

— Porque... – é o que eu estou falando e pronto, Cato queria dizer. Ele empurrou a bochecha com a língua. – Eu não sei se ela não vai, Gaia.

— Ah.

— Só vai acontecer daqui a uns meses, de qualquer jeito, mas...

— Ela está namorando um cara da Capital. 

A temperatura na sala despencou rapidamente.

Cato fixou seu olhar em sua irmã mais nova, que era especialmente boa em ser irritante desde que conseguia falar. Ele estava se esforçando muito para focar nela, mas Cato se lembrou da última reportagem que havia visto sobre uma espécie de premiação na Capital. Sua mente retornou à mão de Clove entrelaçada à de Naevio, aos segundos que ela levantou os olhos para o homem e Cato pôde jurar que não havia uma pontinha sequer de desprezo nos olhos dela.

Ela está namorando um cara da Capital. Clove está namorando um cara na Capital. 

Não. Ele não podia entrar em contato com nada daquela natureza. Ele estava machucando ela. Ele ia resolver isso, se conseguisse se manter longe mais um pouco.

É fingimento, ele se forçou a pensar, mais uma vez, pra ver se aquela coisa passava de vez. Não podia ter nenhum tipo de adoração nos olhos dela, não podia haver afeição. Não podia. Certo?

Teo empurrou a cabeça de Gaia para baixo. Ele absorveu bem as compleições infantis e as mãos gordinhas de Gaia antes de responder.

— E daí? – Cato pronunciou, friamente.

— Por que você ainda namora ela se...

— Gaia. Eu nunca namorei a Clove. Cuida da sua vida. Eu vim aqui ver vocês e eu terminei, então podem voltar.

Cato sabia que alguma coisa naquilo tudo estava errada. Mas ele não sabia fazer de outro jeito. Ele já estava de pé, com a mão na maçaneta, quando se lembrou do seu pai berrando até perder a voz porque alguém tinha perdido um par de meias, batendo costas contra paredes porque uma gota de leite tinha respingado na mesa da cozinha. Primeiro, ele ficou com raiva por se comparar com um cara que tinha matado a mãe deles. Ele não tinha nenhuma relação com ele. As ações dele não eram parâmetros para as suas.

Então ele tentou voltar atrás. Com muita pouca graça, ele puxou de novo a cadeira e se sentou de volta de maneira inquieta.

— Isso é coisa minha. Vamos mudar de assunto.

Teo permanecia no canto, assistindo tudo com um leve ar de incredulidade. Ele parecia muito mais com a mãe deles. Cato voltou sua atenção para ele.

— E você, como está? Quem é seu treinador? – ele perguntou subitamente, num leve bombardeio, simplesmente procurando uma saída.

— A Bollina – seu irmão respondeu, ares de estranhamento disfarçados por uma suposta indiferença.

Entre eles todos havia muita desconfiança. Como não? O mais velho era um assassino, o do meio treinava para se tornar um; a mais nova só podia tentar se encaixar.

— Ela é boa – Cato disse, ainda que não soubesse nada acerca da treinadora além de que ela tinha treinado uma de suas ex-namoradas. Fedra costumava ser relativamente boa e a ter muitas marcas nas suas costas. Algumas eram desmerecidas, algumas eram atribuídas à Clove sendo amiga da garota. 

— Ela é.

— Mas ela não tem muita paciência para erros, então não dê motivos para... você sabe. Daqui a pouco o tempo muda e essas coisas realmente coçam, então fica na sua.

— Claro. Eu sempre fico.

Podia ser uma cutucada, mas Cato ignorou. Se Teo quisesse bancar o inteligente, era problema dele, perda dele, porque ninguém no 2 era muito chegado a provocadores. Que não fossem a Clove, pelo menos.

Ele destinou sua atenção a Gaia, que estava o olhando muito atentamente, de certo tentando adivinhar sobre o que eles estavam falando. Mas era melhor que ela descobrisse o mais tarde possível que havia mais coisas que motivavam os alunos da Academia a serem produtivos do que os gritos de seus treinadores.

— E você? Aguentando?

Ela deu de ombros e emitiu um sonzinho despreocupado de “estou levando”.

Mais silêncio. Nada mais ia ser tirado dali. Ele sentiu que havia feito o que tinha que fazer. Dever cumprido.

— Vocês deviam ir. Vão perder muita coisa se a gente ficar aqui batendo papo – Cato finalmente decretou, coçando o nariz mais uma vez, mudando de posição na cadeira.

— Claro. Vamos, Gaia – Teo falou prontamente, se desencostando da parede e empurrando as costas da irmã levemente para que ela se levantasse.

— Tenta não ir para os Jogos de novo porque eu não quero a Clove de babá – a menina falou enquanto andava para a saída, sem nenhum tom em especial, como se nem estivesse se esforçando muito para ser desagradável, apenas sendo sincera. O que talvez fosse o que ela fazia o tempo todo.  

— Você ainda precisa de babá? – Cato riu, franzindo as sobrancelhas e se levantando também.

— Não, mas...

— A Clove não quer ser sua babá, sossega. Ela nem vai estar aqui.

Cato notou a mudança de expressão no rosto de sua irmã. Ela parou de andar, ainda que Teo a esperasse do lado de fora. Confusão franziu seu nariz pequeno. Ele se preparou para mais uma daquelas coisas estranhas de criança.

— Ela vai para a Capital? Mesmo sem voltar pros Jogos?

— Como sempre. Pra que essa cara? Você nem gosta dela.

— Quem vai me olhar se vocês dois morrerem?

Cato e Teo pararam de se mexer na mesma hora. Como se alguma coisa fosse desabar com algum movimento brusco, Cato lentamente desviou os olhos do irmão, evitando ler o que quer que fosse que havia lá.

A fala de Gaia era muito longe de uma pergunta. Era a fala de quem aponta algo óbvio esperando que a pessoa a quem a pergunta foi destinada perceba algo que estupidamente não estava levando em consideração. Levemente arrogante, ela parou e cruzou os braços para o irmão.

Cato ficou parado por uns segundos. Ele odiava aquilo demais. Mas porque ele estava sempre vendo o jeito com o qual Clove parecia não entender muito bem o conceito de sentimentos e o jeito com o qual ela sempre o empurrava pra longe, ele sabia o que precisava fazer.

Cato não queria que mais ninguém se machucasse porque se importava demais com uma menina que tinha olhos muito frios e muita vontade de provocar o caos.

Ele franziu as sobrancelhas e abaixou a voz, colocando toda a ênfase que conseguia sem correr risco de assustar muito sua irmã.

— É eu, o Teo e você. Sem Clove. Ela não vai te olhar sob circunstância nenhuma. Se eu morrer, você vai ficar com o Teo. E acabou.

— Ela me olhou quando você foi pros Jogos – Gaia rebateu, dando de ombros.

— Mas eu estou falando que ela não vai mais te olhar e ponto, Gaia, ela não vai mais te olhar— Cato sibilou. Depois, ele tapou os olhos por um segundo para absorver um pouco da sua irritação. A menina ficou em silêncio, o olhando de um jeito entediado que o lembrava muito de uma outra pessoa. Ele voltou: – Espero que a gente esteja conversado.

Gaia acenou positivamente com a cabeça, revirando os olhos com desdém.

— Fala em voz alta – ele mandou. – Quero ter certeza de que você entendeu tudinho.

— A gente está conversado – Gaia rosnou.

— Bom saber. Agora tchau.

— Tchau. Idiota – ele a ouviu sussurrar enquanto saía. Teo arregalou os olhos enfaticamente para ele, sorrindo com algo muito parecido com deboche.  

Aquilo tudo era de outro mundo.

Cato não queria perder mais tempo ali. Ele não sabia fazer isso, ele não gostava de ensinar nada pra ninguém. Ele não queria nem mais pensar naquilo. Cato bateu a porta do escritório assim que seus irmãos saíram.

— Porra – ele suspirou, correndo as mãos pelo cabelo.

O que a Gaia pensava da vida dela? Quão bem crianças podiam separar as coisas? Que coisas ela devia separar? Cato odiava tudo aquilo. Ele odiava ter que pensar naquelas coisas ridículas porque... Cato deu um soquinho de leve na porta fechada.

Naquele dia, ele sentiu que começar os treinos de novo era questão de primeira necessidade. Se ele não esvaziasse sua mente, ele não tinha certeza do que poderia acontecer.

 E deu até certo. O assunto Gaia não surgiu de novo até o fim da semana seguinte, quando ele estava enrolando bandagens em volta dos pulsos de Clove no quarto de treino dela. Ela tinha acabado de voltar da Capital, uma regalia concedida devido ao anúncio do Massacre e a necessidade que a Capital tinha de ter certeza que suas criações estavam bem preparadas.

— Isso é uma merda. Meus pulsos não doem por conta das facas desde que eu tinha doze anos – Clove comentou, com sua mesma expressão arrogante de sempre, o olhando com algo parecido com raiva.

— As coisas mudam – ele se limitou, não muito feliz também. Cato não ia falar nada sobre aqueles roxos no pulso dela. Ele só ia cobri-los o mais rápido possível.

Clove deixou seu olhar pousado nele por mais alguns segundos, empurrando a bochecha com a língua.

— Nem os pulsos da sua irmã devem doer mais. Claro que não ter um doente apertando eles toda noite ajuda.

— Por que os pulsos da minha irmã iam doer, Clove? – Cato lentamente levantou os olhos pra ela.

Sentindo seu tom levemente ameaçador, Clove deixou um sorriso fraco cruzar suas feições para combinar com suas sobrancelhas erguidas. Ele parou de mexer com as bandagens só para fitá-la.

— Porque ela começou a jogar facas, também, Cato.

Cato se levantou do banco onde eles se sentavam e muito dramaticamente se afastou.

— Que porra é essa? Você... viu ela jogando facas? – ele perguntou, sacudindo a cabeça.

— Um dia, sim.

— Ajeita suas sentenças – o garoto grunhiu.

— Um dia eu vi sua irmã jogando facas e ela me pediu ajuda – Clove sibilou ironicamente, sorrindo. Ela era uma boa mentirosa, mas aquilo não era exatamente uma mentira. Era apenas uma maneira de dar forma a um fato. Era como ela tinha visto, afinal.

Cato mexeu o queixo como se absurdos estivessem sendo falados. Ela riu, flexionando os pulsos para testar seu trabalho.

— Cato, para de drama.

— Isso não dá certo. Você tem que ficar longe dela – ele praticamente a explicou, até pacientemente, cruzando os braços.

— Beleza – ela quase cantarolou. – Anda, vem terminar isso aqui.

— Eu pensei que a Gaia não gostasse de você – Cato retornou, parado no mesmo lugar, parecendo realmente preocupado com aquilo. Clove revirou os olhos e se conformou em tentar entender o porquê.

— Pra quê esse drama todo? Ela não gosta de mim, eu também não sou a maior fã dela, com todo o respeito. Mas ela está lá na Academia mexendo com a minha área, por que eu não ajudaria ela?

— Porque não – Cato disse, sem ser um mestre na arte da comunicação.

— Que seja então, eu não vou ajudar mais – Clove se deu por vencida, jogando as mãos para o alto teatralmente – Melhor?

Cato ainda assim continuava correndo a mão pela testa como se tivesse acabado de ser avisado sobre uma tragédia.

— Você ficou com ela pela porra de um mês inteiro enquanto eu estava nos Jogos...

— Não porque eu quis...

— Seja educada, não me interrompe – ele a cortou. – E aí ela começa a mexer com a mesma coisa que você mexe e você ainda ajuda ela no treino? Ela está ficando insuportável, que nem você. Ela tem sete anos, Clove, ela não separa as coisas.

Clove, que estava pronta para rebater com outro comentário sobre o quão não interessada estava em ser amiguinha da irmã dele, ficou em silêncio após a última fala, intrigada.

— Não separa as coisas...?

— Ela acha que você vai olhar ela se eu morrer – Cato finalmente desentalou, grunhindo, com raiva dela por pressioná-lo a o fazer.

— Ah – com esse ruído, Clove reconheceu o problema.

O problema era: ela não ia olhar a Gaia se ele morresse. Porque ele não ia morrer. Porque ela não sabia “olhar” pessoas. Porque ela era ela.

Cato estava parecendo mais aliviado agora que havia desentalado seu terrível segredo. Clove era quem estava perturbada agora, por alguma coisa que não sabia exatamente explicar.

— E você acha que eu não ia olhar? – foi o que ela disse, um pouquinho destoante do que devia estar pensando.

— Eu acho que eu troquei umas palavras com você ao longo da vida – Cato alegou, voltando a se sentar e puxando os pulsos dela de novo, de forma condescendente. – E você não sabe fazer essas coisas. Nem eu sei, só que eu sou obrigado a fazer.

Por uns segundos, Clove pensou em encerrar a discussão. Foi o que ela pensou que deveria fazer, porque não havia argumentos contra o que ele havia colocado. O que ela queria sendo considerada uma pessoa que “olhava” crianças, de qualquer forma?

— Eu não ia deixar ela morrer – a garota se ouvir dizer, secamente, encarando o perfil dele com uma raiva que por algum motivo queimava em seu olhar.

— Ela não precisa saber disso – Cato respondeu, igualmente seco.

— O quê, você acha que eu ia estragar ela? Transformar ela numa prostituta da Capital? – ela não sabia bem da onde aquilo tinha vindo, mas parecia um sarcasmo afetado, como se ela estivesse além do limite ofendida com as implicações dele. O que não era verdade. Era?

Cato, no entanto, não pareceu surpreso. Ele não pareceu nada, como quase sempre se não estava com raiva.

— Não – após alguns segundos, ele levantou os olhos e sorriu com escárnio, observando sua expressão. – Sim.

Clove soltou um riso sem humor, sacudindo a cabeça. Ele terminou com seus pulsos, ainda sorrindo.  

— Eu não acho isso, Clove. Eu só acho que você tem que ficar longe dela para facilitar tudo – seu tom era despretensioso, vazio. Colocando seus pulsos com cuidado em cima de seu colo, ele se levantou e se espreguiçou, aparentemente já relaxado com a história toda agora que ela estava resolvida.

— Você é o maior filho da puta que já andou na terra.

— Aham. Anda. Ainda tem arco e flecha pra cobrir hoje.

Contudo, Clove era movida por umas forças estranhas. Aquela conversa continuou se esgueirando pela sua mente nos momentos mais estranhos. Toda vez que ela acordava ensopada de suor, seu próximo pensamento depois de se situar na realidade era “Cato acha que eu vou estragar a irmã dele”. Toda vez que ela jogava uma faca e sentia seu pulso latejar como se fosse se abrir bem ali, sua mente sussurrava “ele acha que você não sabe fazer essas coisas”.

Para “facilitar tudo”, ele precisava dela longe, ela pensou, enquanto recebia um beijo no rosto de Naevio e se preparava para ouvir tudo sobre seu dia gloriosamente patético e casualmente ganhar outros hematomas.

Ela estava cansada, ela nunca conseguia dormir e Naevio era uma existência que sufocava a sua. Também, ela odiava Cato porque ele conseguia fazer as coisas mais ridículas ganharem um peso surreal.

No entanto, se ela divagasse muito e explorasse muito profundamente outras formas de raciocinar, Clove conseguia entender que aquela era uma forma de Cato proteger a irmã dele. De qualquer que fosse o Mal.

Então, de volta ao Distrito 2, o observando dormir silenciosamente, muito consciente de que o tempo que passava com ele era cuidadosamente registrado pela Capital, ela traçou, a troco de nada, planos traiçoeiros.

Clove esperou só mais uma semana para passar mais um tempo com Gaia de novo. Quando a menina a fez – repetiu para uma pessoa diferente – uma pergunta estranhamente pessoal, ninguém no mundo inteiro que a visse poderia afirmar que não havia uma quantidade descomedida de malícia em sua resposta.

— Esquece esse homem da Capital. A única pessoa que eu namoro é o seu irmão.


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Notas finais do capítulo

Amigas, também não tem muita coisa pra falar aqui não. Só...... Obrigada por ler. E espero que vocês estejam tendo uma boa semana. E eu realmente não sei o que fazer com esse trem aqui kkkkkkkkkkk. Na moral, muito difícil escrever sobre DoidosTM. Espero que o baile tenha CONDIÇÕES de seguir. Beijooooo ♥



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