lágrimas perdidas na chuva escrita por MeninoSemRazão


Capítulo 1
Queda Para o Alto.


Notas iniciais do capítulo

Segunda fase do UFC Fanfics.
Semi-final.
TEMA:
"Plot-twist".



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Nervosos por sua falta de bom senso e educação, o atiraram ao mundo. Porta a fora, a queda simulava o diabo a cair expulso do paraíso. Lhe negaram mais qualquer outro gole de cerveja, como negariam hóstia a um pagão. Pois aquele ali era um tipinho que para eles, não sabia beber como homem.

Estirado ao chão, seu corpo não projetava sombras visíveis. Uma luz - clandestina ao brilho da lua - alastrava-se sobre a extensão de sua pele e doía em seus olhos, os impedindo de poder contemplar a noite. Sua sombra escondia-se sobre de baixo de suas costas e em determinada hora, como se não fosse parte constituinte de um ser vivo, seu corpo imóvel transmutou-se a fazer parte da paisagem. Seria necessário parar e observar bem para perceber um bêbado estirado ao chão, banhando-se da luz de um poste.

Os homens do bar, ao perceberem a continua presença do rapaz, trataram de encher um balde (utilizado para a faxina do estabelecimento) com água e gelo e saíram porta a fora na intenção de o alvejarem. E assim fizeram. Sentindo o gelado da água fria rasgando sua pele, o bêbado tentou levantar-se em fuga. Mas no meio do caminho, sentado solidificou-se ao chão, pouco antes da virada completa do balde. Para enganar-se a não sentir o frio inevitável, fingiu ser uma estatua. E por um segundo aquela pareceu uma cena consentida. A água escorria pelo rosto erguido do jovem, dando á vista a impressão de presenciar uma cerimônia de batismo.

Seu nome era Lucio. Terminando de praticarem seus sadismos, os homens mantiveram-se parados, esperando que o desgraçado desse um jeito por si só na própria presença indesejável . Cambaleava como se andar fosse uma inteligência que nunca havia desenvolvido. Seus passos assemelhavam-se aos primeiros passos que deu na primeira infância. Parecia zombar da solidez do chão, menospreza-la como se algo como aquilo não fosse capaz de proporcionar equilíbrio a nenhum sujeito. Apesar de toda a aporrinhação, chegou longe mais rápido que imaginava que chegaria.

Já frente ao ponto de ônibus, foi logo aconchegando-se ao desconforto que era sentar naquele banquinho de cimento puro. Que além da solidez que doía nos ossos da bunda, também era frio como pedra de gelo. As coisas aconteciam como se cada desgraça fosse um fragmento de um inferno conciso, ao fim do dia, somadas as tristezas e dores, via-se um dia dos diabos. Ao menos era noite e tudo que sobrava fazer era esperar uns 70 minutos, para que o ônibus começa-se a rodar e pudesse o levar de volta para o apartamento. Obviamente não se compreende porque diabos um rapaz jovem como Lucio se meteria bem na madrugada em um bar longe de casa. Pegar um ônibus para embebedar-se sozinho era certamente o auge de qualquer fundo do poço ou rua da sarjeta ou da amargura.

Partiu sua voz a cantarolar. Era daqueles tipos que realmente gostam de cantar a todo instante. As vezes parecia que o mundo acabaria caso não cantasse. De fato, realmente sentia-se contorcer no sofrimento da existência em um exagero tão imensurável que parecia que as coisas sumiriam em um piscar de olhos. A paisagem doía mais que a própria vista e um cisco dolorido como partir-se em dois, deitava sobre seu peito. Nessas horas o mundo parecia tão vazio e solitário que poderia se por a sumir só por conta da sua dor. Como se o universo fosse delicado como uma xícara de porcelana, e a terra rachasse com um grito e o céu se desfizesse com uma batida de braços. Então cantava, para não ter a impressão de que o mundo ruiria caso o silêncio continuasse a imperar. Nada doía mais em seus tímpanos que o silêncio.

— Boa noite, meu jovem! – Querendo escapar de seu peito, afetado pelo susto o coração de Lucio o fez levantar em um pulo. Deu-se conta da figura surgida ao seu lado. Aquela voz era tão aveludada e cordial que nem parecia saída de uma boca.

A figura era um homem, e era alto e aparentava certa idade. Vestia um sobretudo tão escuro que a luz do poste não parecia surtir efeito quando pousada sobre sua superfície. Era de um preto tão escuro que se misturava as sombras. E inesperadamente, com a presença do homem, a bebedeira de Lucio parecia ter passado. Como se fosse um passe de mágica.

— Perdão senhor, não o percebi chegando. Me pegou desprevenido. — Voltou a sentar-se. – Boa noite.

— Eu é que peço perdão por assustá-lo assim, meu rapaz. Palavra que não foi com más intenções.

— Ah, tudo bem senhor. Acidentes são acidentes, não são? – O homem riu simpático.

— Como se chama?

— Lucio, senhor. – Sentia um estranho impulso de ser mais educado do que normalmente era.

— Você é muito gentil, não é Lucio?

— Gentil? – Questionou sem dar-se conta de não ter requerido o nome do homem.

— Oras, pois me deixa chegar aqui assim o assustando e ainda me pede desculpas.

— Mas foi um acidente, não foi? Não existe para que criar confusão. — Sentiu-se pressionado.

— De uma maneira ou de outra feri o seu orgulho, não feri? Pulou para fora do banco como se tivesse sentado numa fogueira. – A voz do homem continuava sempre cordial e talvez isso era o que mais sufocava Lucio, algumas pessoas faziam o silêncio e a solidão valerem mais a pena.

— O senhor não tem poder nenhum, se e...

— Será que não tenho? – Interrompeu. Lucio silenciou-se.

— O que quer dizer? – Rompeu o silêncio, não querendo que imperasse uma cena sinistra e constrangedora.

— Esqueça, continue o que dizia. Peço perdão pela interrupção.

— Eu dizia que se eu fosse culpá-lo por todos os acidentes que já provocou, seria melhor dizimar toda a humanidade. Todos cometem acidentes, temos muito menos controle das coisas do que imaginamos.

— Então porque não o faz? Dizime toda a humanidade. – Lucio riu, sem graça. – Falo sério rapaz, porque não falaria?

— Mesmo se eu tivesse poder para isso, do que me adiantaria destruir a todos para viver sozinho? E eu também não seria doido de mexer na obra de Deus. Da qual inclusive faço parte. – O homem de sobretudo riu. Sabia que Lucio só falava por falar. – Não acredita em Deus, não é?

— O que? Não, não. Pelo contrário rapaz, acredito e muito. Mas acho que eu sim seria doido de mexer em sua obra, com certeza.

— E a troco de que? – Estava com medo e ao mesmo tempo fascinado.

— Paz. De tudo o que os humanos tiraram do mundo. Parece que nasceram exclusivamente para se divertirem arrancando-me toda a minha paz.

Confuso. Lucio não tinha a menor ideia do que poderia dizer.

— Você não sabe quem eu sou, Lucio. Não se deu o trabalho de pedir para me apresentar.

— Sinto muito por isso. Pois então, qual é o seu nome mesmo?

— Não necessito dizer meu nome, você sabe qual é. Mas para ser curto e grosso, digo quem sou e porque estou aqui conversando com você agora.

Arrepiaram-se cada fio de cabelo e pelos ao longo do corpo do rapaz. Sentiu um mal-pressentimento.

— Eu sou o diabo. E sou seu pai, Lucio. Você não faz parte da obra de Deus.

Assustado novamente, o rapaz levantou-se em um pulo. Tomou certa distancia do assento e do homem. Reprimiu um grito na garganta, ele só poderia ser louco.

— Eu acho que o senh... – Conforme o homem sorriu singelo, piscaram as luzes dos postes de todo o quarteirão e o ar uivou durante uma geada fria que acertava Lucio bem em cheio. Após interromper-se, manteve sua voz em silêncio.

Minutos parados se instauraram.

— Eu perdoo o senhor, pai. – Uma lágrima solitária escapou de um de seus olhos, fazia uma trilha perfeita atravessando sua bochecha. Ao chegar na base do queixo, não caiu. Manteve-se presa.

— Me perdoa? – Pela primeira vez, sua voz havia mudado. Estava incrédulo. Repetiu. – Me perdoa?

— Sim. – Lucio foi a frente do homem, ajoelhou-se no chão e pousou a cabeça em seu colo. A essa altura, a lágrima guardada em seu queixo se perdeu e uma enxurrada se partiu de seus olhos. – Te perdoo por ter me abandonado, mas perdoo só porque está aqui agora. Não me abandone de novo, sim?

Silêncio. Afagou os cabelos de Lucio, da forma que achava que o rapaz gostaria.

— Justamente por isso que deu errado, meu pequeno. Você nunca servirá o propósito que lhe dei na hora de te criar. É uma criatura arruinada, de fato. Parte de um mundo que não te pertence, existe uma tristeza morando em você, uma que não lhe dei enquanto o construia. Do seu cóccix até seu pescoço, do começo ao fim, tristeza enraizada. De fato, um estrangeiro nas terras de Deus. Como um desenho clandestino no quadro de um outro artista.

— Meu propósito, paizinho? – Silenciou-se sobre o resto da fala do outro, por concordar.

— Você é o anti-cristo, pequeno. O tributo da paz. O fim da destruição humanista.

— E porque não sirvo, hein? É claro que eu sirvo, é só o senhor me mandar que eu faço tudo direitinho. – Lucio queria ser útil, finalmente compreenderá ao que viera ao mundo. Era filho de seu pai e cumpridor de seu mandato.

— Você não é humano, pequeno. Não sabe nada sobre destruição. Eu já disse, é um ser arruinado, como minha prole só consegue ser. Tu não conhece o amor, pois não é obra de Deus. Só conhece tristeza, Lucio. Vazio e solidão. Mas, saiba que a solidão não é ruim quando um ser tem amor por si próprio. E no caso, até disso você desconhece. Não existe potencial em você para destruir nada. Não lhe existe ódio. É quase uma casca vazia, só não sendo pela ganância de querer sentir coisas humanas. Quando pensei em você sendo o contrário de Cristo não lhe imaginei como um ser vazio. Mas até que faz sentido, não faz? Fui estúpido por pensar por outros caminhos.

— Mas então, o que quer que eu faça se não destruir o mundo? – Aos prantos, Lucio engasgava-se em suas próprias lágrimas. – Eu, eu posso aprender a destruir. Sei que sou mole, mas se me ensinar eu consigo.

— Um ser vazio como você não conseguiria, pequeno. Sem amor, também não lhe habita ódio. Eles são contrários completares. Se não tem o que ama, não tem o que proteger e assim sendo, não tem o que destruir. Não existe poder dentro de você.

Foi quando o céu partiu o silêncio da noite. E as lágrimas de Lucio se perderam na chuva, seu pranto foi silenciado por trovões. Não havia a quem rezar, e caso houvesse, não poderia ser ouvido.

— Você nem ao menos deseja fazer nada disso, pequeno. Só quer mesmo poder sentir alguma coisa, não sou seu paizinho. Só me chama assim pelo desespero de querer que eu lhe entregue sentimentos ao colo. Digo que não tenho nada disso. Só vim lhe pedir perdão, perdão por condená-lo a tão miserável existência. E colocá-lo nas terras de Deus, sendo que nem ao menos de rezar, você é capaz. Nenhum ser merece tamanha miséria. E por conta disso, aqui e agora, confesso meu único pecado e imploro por seu perdão. Por ter lhe trago ao mundo.

Lucio sentiu inveja da chuva.

— Não perdoo. Foda-se. Foda-se você e Deus. Ele é outro, me vê aqui em baixo e não move uma palha. - Jogou-se no chão, arruinado por não ter mais esperanças. Cantar não era preciso, pois não havia silêncio. Mas desejou cantar. Acontece que na hora não lembrou-se de nenhum ritmo ou letra. Continuou a só ouvir a chuva.

— Se não tivesse aparecido eu ainda teria esperanças de poder sentir algo. Desgraçado! Mas agora, aproveite que está aqui e já arruinou tudo e repare seu pecado, só assim terá meu perdão.

Foi quando Lucio percebeu uma lágrima solitária escorrer dos olhos do outro, ela fazia um caminho reto, e quando chegou a base de seu queixo, escorreu direto ao chão. Era uma lágrima bonita e predominante. Se destacava até das gotas de chuva. Diferente das suas. Sentiu ainda mais inveja.

— Então feche os olhos pequeno. Terá seu sofrimento interrompido.

Lucio fechou os olhos e ergueu o rosto. Desolado por ter passado por tudo aquilo sem motivos iminentes, abraçou o próprio corpo. Soluçava, ainda mantendo a cabeça erguida. Sua dor não seria curada, e apenas sentia mágoas do mundo. Mas seria o fim. Logo não se preocuparia mais com o fato de que aquele fim lhe era doido, pois escancarava o idiota que era perante a vida. Mesmo com cada dia levantado da cama e cada esforço em cada refeição e todos os cuidados que deu ao próprio corpo para continuar o ciclo, apenas recebeu tédio em troca.

— Deseja suas últimas palavras pequeno?

— Foda-se essa merda, só acabe comigo. – Nunca havia gritado, morreria assim. Com um choro calado e contido, mas não se deu conta.

Ao longe, ouviram-se sirenes. De perto ouviu-se passos de corrida. Abriu os olhos e a primeiro momento estava sozinho. Olhou para o lado e o outro fugia, como o diabo a fugir da cruz. Olhou para o outro, lhe chegavam uma ambulância e uma viatura. Homens de branco cercaram seu corpo e lhe perguntaram se estava ferido. Atônito, não respondeu.

— Senhor? Aquele homem fez algo a você? Tem algum ferimento? – Não soube distinguir qual homem perguntava, e não deu-se o trabalho de responder.

A viatura seguiu reto.

— Senhor, aquele homem escapou de um manicômio a uns quarteirões daqui. Ele é um sujeito de alta periculosidade, o senh...

Um grito se fez ouvido, em meio ao barulho da chuva.


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