Paso Doble escrita por Tatiana Mareto


Capítulo 1
Capítulo 1




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FRANCES

Passei os dedos pela cômoda empoeirada e olhei-me no espelho para constatar a expressão de desgosto e nostalgia. Mais um verão e lá estava eu outra vez, chegando para passar o mês de julho entretendo os hóspedes no tradicional Keller, na Califórnia. O salário era ruim e precisava me submeter a coisas que não admitiria, normalmente, mas era a melhor oportunidade que tinha para mostrar meu talento, minha arte. No dia-a-dia, era apenas a garçonete de uma lanchonete famosa em Los Angeles. No Keller, eu era a professora.

Coloquei a mala sobre a cama e desdobrei alguns vestidos. Aquele era meu quarto por mais de quatro anos e nada tinha mudado desde então. Já tinha decorado a posição dos móveis e sabia exatamente onde o sol da manhã refletia suas nuances coloridas no vidro da janela. Olhei para o relógio pendurado sobre a porta, ainda o mesmo, e assustei-me ao ver que já eram sete e vinte da manhã. Logo, os hóspedes chegariam e precisava estar lá para recebê-los; era uma exigência de Tim Keller, nosso novo patrão, neto do velho Keller.

Não consegui retomar a arrumação antes que a porta do quarto se abrisse.

— Toc, toc. Posso entrar?

Eu nunca precisava olhar para saber que era Jordan que estava ali. Virei-me para abraçá-lo sem ter certeza se essa era a melhor forma de cumprimentá-lo. Jordan era meu melhor amigo e o homem que eu mais fazia sofrer - ele guardava uma paixão não correspondida que também não era mais segredo há algum tempo.

— Jordan White, não vá me dizer que já desfez sua mala?

— Há mais ou menos meia hora. Vim aqui ver se precisa de ajuda... pelo visto, não perdi minha viagem.

Dei uma risada e o beijei na face. Sempre agi assim antes de saber que ele era apaixonado por mim e, vez em quando, não conseguia evitar beijá-lo. Aquela história era ridícula, quase um clichê, porque Jordan era o tipo de homem perfeito, que eu deveria agradecer por me amar. Só que não iria dar certo - acreditem, eu tentei. Convenci-me que poderíamos ser um casal e chegamos a ensaiar um relacionamento, porém eu não o via como amante, apenas como o melhor amigo. O sexo foi horrível. Ele poderia ser o melhor homem, mas eu não queria nada disso - precisava ser arrebatada, consumida, dominada pela paixão.

Harriet, uma das garçonetes que trabalhava comigo, achava que eu era louca por não me casar com Jordan. Talvez eu fosse, mas não queria me casar por conveniência. A pior parte disso tudo era que ele sofria e eu me sentia culpada - principalmente porque, no Keller, nós também nos encontrávamos com Dominic.

— Se você me ajudar com as roupas eu limpo cada tecla daquele piano velho para você.

Fiz a proposta para me livrar dos pensamentos no deus grego da testosterona que me tirava do prumo sempre que aparecia. Aquele era Dominic, mas preferia pensar em um homem de cada vez. Como sabia que Jordan detestava limpar o piano, aquela era uma troca justa. Com sua ajuda, a tarefa de pendurar vestidos e organizar maquiagens e enfeites corporais finalizou em menos de quinze minutos.

— O que você vai fazer esse ano?

Jordan perguntou, minutos depois, quando já caminhávamos para o salão principal. Era lá que os hóspedes eram recebidos pelos empregados do hotel, sempre com música e muita festa. Geralmente, meu amigo estava ao piano e Alicia no vocal - ela tinha a voz mais linda que eu já ouvi.

— Mais do mesmo. Aulas de dança e as apresentações. Provavelmente, o mesmo número final com Dominic... não sei, ainda não decidi.

— Tenho uns números novos de dança na manga. Se quiser tentar, podemos ensaiar e apresentar juntos.

— E quem vai tocar?

— Usaremos música eletrônica. Já desaprendeu a dançar no ritmo do CD?

Ele deu uma risada sincera, mas eu jamais ficaria confortável fazendo um número de dança exclusivamente com Jordan, por uma série de motivos óbvios. Normalmente eu dançava com Dominic, o canalha era bom em tudo que fazia. Na verdade, ele era um bastardo que fazia meu coração pular pela boca sempre que o via, e já estava no salão como que nos aguardando. Também estavam Georgia, Dayse e Alicia, cantoras talentosas.

Não deu tempo para cumprimentar todo mundo; o ônibus cheio de turistas parou no meio do pátio do Keller e o salão foi infestado por pessoas vindas de todo lugar.

— Jordan, corra para o piano e receba os hóspedes com uma música especial. A mesma do ano passado, mas dessa vez Alicia e Georgia devem fazer um dueto.

Tim Keller ordenou, quase gritando no meu ouvido - que nem tinha nada a ver com aquilo. Os três que foram nomeados se movimentaram rapidamente, subindo no palco e se organizando para a música. Jordan abriu o piano e dedilhou alguns acordes, enquanto as cantoras limpavam a garganta para atingir o tom necessário. Esfreguei as mãos, ansiosa. Era sempre a mesma coisa e eu sempre ficava nervosa quando eles chegavam - os hóspedes.

Nenhum de nós gostava particularmente da música escolhida por Tim Keller, mas era a mesma que seu avô tocava na década de setenta, quando assumiu o hotel, ainda muito jovem. Eles repetiam, ano após ano, a mesma velharia de sempre, com o discurso de que mudanças não combinavam com a tradição do Keller.

Um pouco deslumbrados, os hóspedes eram recebidos por todos, com cumprimentos e abraços, e depois conduzidos para se sentarem nas cadeiras arrumadas pelo salão. Enquanto isso, a música já tinha começado e eu estava lá, na fila da recepção, sorrindo aleatoriamente e agradecendo a presença de todos. Rezando, de fato, para que nenhum velho rabugento e assanhado aparecesse para me importunar naquele ano - mesmo que minha saia plissada e meu top pudessem dar a impressão errada.

Muitas faces desconhecidas, a maioria parecida, passaram por mim. Eram pessoas com idade superior a 50 anos e alguns jovens que acompanhavam pais, tios e avôs nas férias de verão. Depois de alguns minutos, uma família chamou a minha atenção. Três jovens caminhavam timidamente, como que escondidos atrás dos pais. A mãe falava sem parar, entusiasmada, e parou ao ver Tim Keller na entrada. Não consegui ouvir o que ela conversava com o chefe, mas eles pareciam se conhecer de outros momentos. Os filhos tinham menos de 25 anos, era perceptível - dois rapazes muito parecidos e uma garota que ainda não tinha chegado à maioridade. Ela não prestava atenção em nada, apenas digitava qualquer coisa no telefone que carregava nas mãos. Já os rapazes observavam tudo ao redor.

Meus olhos então me traíram momentaneamente ao fixarem-se indiscretamente nele. Eu não sabia quem ele era, naquele instante era apenas um garoto entediado com os pais um pouco animados demais, mas ele era lindo. Perfeito. Não, nenhuma pessoa é perfeita, mas ele deveria chegar bem perto disso. Ouvi sinos tocarem e provavelmente todo mundo percebeu que eu o encarava sem qualquer pudor. Recebi uma cotovelada nas costelas e não sei a quem eu agradeceria por ter me tirado do transe, mas consegui, então, fingir que não estava prestando atenção naquele menino.

Foi quase constrangedor quando ele me viu. Claro que ele me veria, se vinha pela fila e todos nos cumprimentavam, mas a forma como ele me olhou foi diferente. Nossos olhares não desviaram.

— Essa é Frances, nossa estrela da dança. Ela é puro talento, se sua Mercedes quiser aprender os passos latinos, essa é minha indicação.

Tim Keller me apresentou para alguém, só que não estava prestando atenção no que ele falava ou fazia. Continuava presa naqueles olhos castanhos, entorpecida, como se tivesse sido atingida por algo forte. Não, eu estava como se tivesse bebido uma droga potente. Nem vi que um dos jovens estava com a mão estendida para que eu o cumprimentasse. Ninguém mais fez sentido depois da passagem daquele menino. Ele se afastou, sentou com a família, mas continuei como se ele ainda estivesse ali, ou fosse voltar. Aquele momento significou alguma coisa, mas não entendi o que.


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