Relatos do Cotidiano - Parte 2: Referências escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 6
Como sair impune de uma detenção?




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O dia tinha começado incrivelmente bem: eu, Amber e Surya tomamos café da manhã enquanto conversávamos sobre todos os tipos de assuntos, desde aulas entediantes até a aproximação entre Jean e Wolf que era muito açucarada, mas suportável. Eu decidi mudar de quarto, felizmente fiquei em um sozinho, apesar de passar maior parte do tempo no quarto das meninas, saindo somente quando elas iam se arrumar ou tomar banho. Eu temia que Surya, um momento, iria me estrangular, pois eu notava que ela se sentia muito desconfortável comigo lá. Entretanto, Amber me relatou que aquilo ocorria também quando as duas estavam juntas.

—Você não acha que eu devia diminuir o ritmo dos meus passeios até o quarto de vocês?

—E você ficaria onde? No quarto Alsácia-Lorena? Nem pensar, pode continuar com suas visitas.

Além disso, nossos deveres de casa nos impediam de ficar muito sozinhos, uma vez que a maioria eram trabalhos em grupo, sempre em trios, e nós três ficávamos juntos quando possível. Em aulas que não caímos juntos, ficávamos com o pessoal de nossos países, pois abrir um leque de amizades em outros estados era excelente. Regularmente, eu fazia trabalho com um mineiro, uma cearense e uma amazonense. Assim como meus pais, os deles se sacrificavam para que fizessem dessa viagem a melhor experiência da vida.

Quando estávamos terminando o café da manhã, seguimos para a recepção esperar o primeiro sinal para seguirmos até a sala de aula no prédio mais distante do nosso. Como sempre, fazíamos tudo antes de descer com nossos materiais já separados. Contudo, fomos surpreendidos. Além de Evelyn, mais três pessoas nos esperavam. Dois homens magricelas e com um olhar intelectual. O primeiro vinha de terno preto justo ao corpo, possivelmente sob medida, além de óculos marrons com lente bem grossa. O segundo estava somente de jeans quase justo ao corpo, uma camiseta branca um pouco folgada no corpo. Ambos eram altos, quase um metro e oitenta cada. A terceira pessoa era uma mulher e estava vestida igual ao primeiro homem, terno justo, mas de cor mais azulada, assim como Evelyn estava.

Um deles adentrou o refeitório e chamou Jean e Wolf, que terminaram o desjejum naquele exato instante. Os dois, confusos, seguiram para fora do lugar. Ao se juntarem aos três, seguiram para fora do lugar em direção ao prédio da direção, um pequeno cubo se compararmos ao imenso colégio.

—O que aconteceu? – Todos estavam com caras fechadas e nervosas, com exceção de Evelyn, que tinha a face preocupada e assustada. O sinal soou, o que nos fez ir para o colégio, com mais pressa que o usual, porque queríamos ver o que acontecia com nossos dois amigos. No instante em que nos aproximávamos deles, um monitor nos conduziu ao colégio. No final, nos separamos para as nossas diferentes aulas e somente nos reencontraríamos às três da tarde. Nesse dia, quarta-feira, nosso almoço era em horários diferentes. A preocupação era tanta que mal prestei atenção nas aulas. Amber e Surya me mandavam mensagem regularmente para perguntarem se descobri alguma coisa, até mesmo algum boato; nada sabia, nem elas ao perguntar. O que estava acontecendo?

No momento que o último sinal soou e fomos liberados, corremos para nos encontrar diante do prédio da direção. A secretária nos recepcionou muito bem.

—Com licença, você poderia nos dizer onde Jean e Wolf estão? Eles vieram para cá essa manhã.

—Quem quer saber? – Informamos sobre nossa amizade e preocupação. – Não posso dar muitas informações, mas os dois estão em detenção.

—Detenção?! – Aquilo nos pegou de surpresa.

—Tem eco aqui? – Olhei para trás e vi Evelyn, que veio nos recepcionar. – Meninos, o que fazem aqui? Não têm tarefas a fazer?

—Sim, mas queríamos saber de Jean e Wolf.

—E que história é essa de detenção?

—Meninos, eles foram pegos namorando, o que é contra o regulamento que os pais deles assinaram.

—Espera, mas não tinha essa clausula no contrato que eu assinei.

—Nem no meu. – Amber concordou, diferente de Surya que disse que o dela tinha mais proibições e bem piores seriam as punições. – Espere um momento. Como o nosso não tem essa clausula e o dela tem, além de uns pontos mais severos?

—É que o contrato varia de acordo com a região.

—Mas não deveria. – Respondi com leve grosseria. – Se eu posso beijar alguém, assim como Amber, por que impedir Surya de fazer o mesmo? Isso é discriminar algumas etnias.

—Marcos, isso não é nada. É para garantir a segurança de cada um e seguir a cultura de cada país.

—Se a cultura é do país, vai dos seus cidadãos seguir ou não. Cultura não é lei.

—Marcos, por favor, fale mais baixo. Você pode acabar em detenção também.

—Eu não fiz nada de errado, assim como eles. Beijar não é errado e não fizeram isso na frente de ninguém. – Parei e encarei Amber, que se assustou assim como eu. – Você acha que alguém os entregou?

—Tenho certeza, mas se eu achar quem dedurou, essa pessoa que não achará os dentes.

—Meninos, sem violência. E esqueçam essa história. Será bem melhor para vocês. – Concordamos. Ao sair do lugar, fomos para nosso prédio. A tarde estava sossegada e um pouco nublada, poderia chover à noite para as gotas de água acompanhar o nosso sono.

—Vocês acreditam que pode ser caso de homofobia?

—Tanto pode, como não pode. Temos que ver o contrato que ambos assinaram. Eu sei que eles têm cópias em suas malas.

—Você ainda tem a chave do lugar?

—Tenho, porque Jean e Wolf, como não se desgrudaram nos últimos dias, ficam com uma chave só e me deram a segunda para casos de emergência.

Corremos para nossos quartos para deixarmos nossos materiais e seguimos ao quarto deles. Tudo estava vazio, quieto e arrumado. Na gaveta dos criados-mudos, os contratos imensos de quase vinte folhas cada estavam colocados. Eu e Amber começamos a lê-los velozmente até chegarmos na parte das proibições. Em nenhum momento o contrato impedia beijos ou namoros, claro que se isso resultasse em notas baixas, poderiam ocorrer intervenções.

—Surya, por favor, você poderia pegar o seu contrato? Quero ver. – Ela correu até o quarto e voltou com um bloco de quase trinta folhas, dez amais que o dos dois. Amber, na sua curiosidade, seguiu direto para as proibições e punições. Além de namoro estar claramente proibido, atos como festas e músicas altas eram proibidos, manifestações religiosas e outros absurdos.

—Aff, quanta xenofobia em uma só folha. "Está proibido a manifestação religiosa em público, pois...". Isso é ridículo. Como você assinou isso?

—Eu não tive palavras quando li. Falei com meu pai, mas ele concordou com a empresa, diferente da minha mãe que me apoiou na decisão de não assinar.

—Será que se juntarmos provas de que há uma xenofobia com alguns alunos, podemos reverter essa situação? Além do mais, o caso de Jean e Wolf é homofobia. Qual seria outra explicação para a detenção deles sendo que não há proibição de namoro?

—Precisaremos de apoio de muitos alunos, além de assinaturas.

—Ainda bem que fizeram um grupo com alguns intercambiários. Nosso trabalho será facilitado.

Nosso trabalho foi árduo, mas ficamos felizes com isso. Descobrimos que não somente Surya sofreu com um contrato rígido, mas estava claro que até o contrato dos homens era mais leviano que o das mulheres. Um amigo americano de Amber nos emprestou seu contrato e o mostrávamos para as pessoas, que se revoltavam com a diferença, mesmo que fossem ou não do mesmo gênero, da mesma ou não etnia. Claro, houve aqueles que foram contra a nossa atitude e que os contratos deles estavam seguindo as morais que acreditavam ser corretas.

No final da noite, tínhamos as provas que precisávamos. Evelyn descobriu nosso plano, mas não nos impediu, ela concordou que havia diferenças gritantes que nem ela sabia. A conversa de antes fazia parte do protocolo que devia seguir, já que era uma funcionária da empresa. Amber e esse amigo conversaram com alguns pais de intercambiários e relataram a diferença entre os contratos. Muitos pais ficaram abismados com o que escutaram, pois não imaginaram que o filho estava sendo discriminado.

Os contratos dos alunos britânicos eram os menores, com cinco folhas, independente se fosse homem ou mulher. Dos americanos, indo da ilha do fogo até a tundra canadense, nossos contratos seguiam o mesmo regimento de dez folhas cada. Agora, os países da Europa variavam conforme a mudava a região. Agora, países da África e Ásia não teve padrão nenhum, o que irritava os pais dos alunos que Amber e Mathew, o amigo dela, contatavam.

—Acho que Jean e Wolf ficarão felizes com nosso trabalho.

—Esse é o momento da verdade. – Amber apontou os dois que viam tristes, com o rosto inchado e deprimido. – Pelo contrário, acho melhor deixarmos isso para amanhã. – Todavia, quando nos viram, seguiram até nós e nos abraçaram. Em seguida, começaram a chorar. – Perdoem a nossa curiosidade, o que aconteceu?

—Eles nos castigaram por termos nos beijado.

—Mas o contrato de vocês não diz nada sobre isso? – Eles se assustaram.

—Mas eles afirmaram de pé junto que era estritamente proibido namoro.

—Lemos o contrato de vocês e não havia nada escrito. – E relatamos tudo o que fizemos. Eles ficaram assustados com o nosso progresso.

—Vocês vão em frente com isso?

—Se tudo der certo, eles terão uma grande surpresa amanhã de manhã.

Contudo, as caixas de som nos andares nos informaram que estávamos sendo chamados no térreo. Quando chegamos, Evelyn e o trio nos esperavam. Os demais alunos chegavam e seguida. Como sou eu que estou relatando, vou falar tudo em português, mas que fique claro que o sotaque britânico deles é bem acentuado.

—Eu queria chamar Marcos e Amber aqui na frente. – Surya nos ajudou, mas a deixamos de fora a pedido dela. Ela tem um espírito de igualdade, mas tem muita vergonha e timidez. – Vocês poderiam nos informar o que faziam nessa tarde?

—Fizemos um trabalho. Algum problema com ele?

—Nenhum professor me falou desse trabalho sobre recolher assinaturas e ficar lendo contratos.

—Mas ele não disse que algum professor passou esse trabalho, só disse que fizemos um trabalho. – Amber me ajudou na resposta.

—E quem deu direito a vocês?

—Em nossos contratos, não havia nada que impedia isso. – A tensão cobriu o semblante do trio. Evelyn ficou feliz com nosso progresso, mas seu sorriso estava preocupado.

—Vocês sabem que qualquer problema desse tipo pode ser resolvido com uma ligação para seus pais.

—Mas ligamos para eles, e para mais alguns pais de outros alunos. – Entregamos a lista de assinaturas e um enorme bloco de folhas impressas sobre as exigências dos alunos. – E destruir isso não vai resolver porque mandamos tudo para o e-mail de vocês e para os alunos que contribuíram conosco.

—Eles querem mesmo comprar uma briga com eles?

—Só podem estar loucos. Os três são duros na queda.

—Eu acho que eles estão certos em fazer isso.

—Também acho. Você viu a diferença dos nossos contratos para o pessoal da América?

—Eles também sofreram um pouco. O pessoal daqui teve um privilégio um tanto maior.

Os sussurros dos alunos ecoavam pelo lugar enquanto as chamas do caos se proliferavam. Amber e eu ficávamos firmes na espera do próximo passo dos três a nossa frente. Evelyn estava tensa, não roía as unhas, encarava todos os lados e amarrotava as pontas do terno.

—Vocês querem mesmo seguir com isso?

—E por que estão fazendo isso?

—Vocês sabem muito bem o que desencadeou isso. – Os três ficaram se encarando, bem confusos. No final, Evelyn falou que éramos amigos de Jean e Wolf e fomos contra a detenção deles.

—Vocês estão brincando que uma coisa tão fútil desencadeou isso?

—Ao falarem que o contrato deles proibia isso e causava essa punição, começamos a analisar os nossos e os deles, descobrimos essas diferenças, além de algumas mentiras contadas a eles. Nossa curiosidade aflorou, seguimos analisando outros contratos daqueles que permitiram e todos concordamos que há injustiça e muitos privilégios para alguns.

—Se eles tirarem nossos "privilégios", vocês vão se ver comigo! – Uma onda de ira começou atrás da gente. Assim como toda manifestação, há aqueles que concordam ou não.

—Não queremos retirar nossos privilégios, queremos que eles tenham o mesmo direito que temos. É tão claro isso.

—Mas eles são diferentes da gente.

—Deve ser difícil para alguns, mas imagine se você não pudesse manifestar a sua religião em um debate? Se impedissem que você fale das suas crenças e morais porque te acham inferior? Caso isso te incomode, saibam como eles se sentem.

—Não vamos mudar os contratos.

—Ah, mas vocês vão. – Amber terminou seu embate com os donos do colégio, pelo que ouvimos de algumas fofocas, e saímos em direção às escadas para nossos quartos. – Lembrete, abram os seus e-mails pela manhã.

O pessoal começou a dispersar e Surya nos seguiu junto de Evelyn.

—Meninos, o que vocês fizeram?

—Em todos os contratos, há partes explicitas que o contrato deve ser mudado quando ocorrer erro administrativo/acadêmico, ou intolerância da equipe para com os alunos. Muitas das proibições e punições, pela sociedade britânica e estadunidense, são contra a democracia que pregam, portanto, os contratos serão mudados. Os pais concordaram em rescindi-los e mudar para outra empresa que está de braços abertos para nós. – Evelyn ficou de queixo caído com o que Amber disse.

—Vocês fizeram tudo isso? Em menos de seis horas?

—Eu também me espantei com o progresso deles. – O sinal soou para irmos jantar e, escondidos atrás de Surya, seguimos até o refeitório, onde fomos recebidos de duas maneiras: gritos de louvor e horror, apoio e condenação.

—Você daria uma excelente política. – Disse à Amber enquanto estávamos na fila. – Você falou bem. Nunca eu falaria daquela forma.

—É uma boa ideia. Não sei qual carreira seguir. Pode ser uma escolha. – Enquanto comíamos, esquecemos do que aconteceu e focamos em Jean e Wolf que foram obrigados a se sentarem em cantos opostos. – Dói o meu coração ver essa cena. Nunca imaginei que, depois de tantas brigas, eu os veria separados e tristes.

Dormidos muito mal naquela noite, afinal, queríamos ver o resultado do nosso esforço. Quando descemos para o café da manhã, os três estavam parados diante da porta do refeitório.

—Temos um comunicado para aqueles que assinaram o abaixo-assinado sobre os privilégios ligados a xenofobia. Devido à imensa busca por rescisão de contrato, concordamos que uma nova impressão com melhorias será disponibilizada para aqueles que queiram prosseguir. Quem não quiser alterar, pode prosseguir com o anterior. – Todos comemoraram, pois não haveria mudança para ninguém. Claro, alguns ficaram indignados com as mudanças e foram contra, mas era uma minoria numérica bem pequena. – A sorte de vocês é que os representantes de cada país virão para cá; assim, não precisaremos nos preocupar com a assinatura dos pais de vocês.

—E eu os parabenizo por tal fato. Nunca isso aconteceu e espero que não ocorra mais. – Foi uma parabenização bem forçada e infeliz, pois claramente eles queriam a nossa derrota.

—Vocês trabalharam muito bem. – Wolf e Jean se aproximaram da gente. – Estamos fora da detenção.

—E o que causou a sua ida para lá?

—Alguém nos entregou, não sabemos quem e nem imagino quem possa ser.

—Se eu pego a criatura, faço ela correr para o útero da mãe.

—Não precisa de tanto. Só não termos que passar por aquela sessão de como devemos nos portar em público já basta.

—Aff, quanto mais eu descubro sobre aqueles três, mas eu vejo o quão cruéis são.

—Felizmente, os veremos pouco, pois falta menos de um mês para irmos embora, o que é o infelizmente dessa situação.

—Vocês acham isso que fizemos terá algum tipo de retaliação?

—Quem retaliaria? Não vejo motivo.

—Tem sempre pessoas que chegam a esse ponto.

—Pois é. Privilégios são para poucos, mas menor ainda é o número daqueles que lutam para consegui-los.

 


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