Relatos do Cotidiano - Parte 2: Referências escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 3
Surpresas a bordo


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é livre para todas as idades.



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Ainda sentia muito frio na barriga, mesmo que o pessoal da agência de intercâmbios tenha me passado umas milhões de vezes todas as informações e precauções que eu deveria ter assim que chegasse ao aeroporto de Londres. A sorte de vocês é que eu relatarei tudo em português, mas comentando sempre aquele sotaque dos meus colegas de turma, se é que terei algum. Depois de quase 12 horas naquele avião, o piloto nos comunicou que pousaríamos em alguns minutos.

Felizmente, não tivemos nenhuma turbulência drástica nem perturbações que fariam o avião pousar no oceano ou em qualquer outro aeroporto. Eu fui um dos últimos a descer do lugar, pois as pessoas estavam tão irritadas e com pressa de pularem para fora daquela nave de metal, que eu achei melhor esperar. O aeroporto era uma imensa construção de vidro e ferro, que subia levemente ao céu. Assim que coloquei os pés na sala de desembarque, vi minha mala sendo arrastada pela enorme esteira. Corri para pegá-la, mas trombei em um adolescente aparentemente mais velho do que eu, ele tinha olhos azuis bem intensos, cabelos negros com certos detalhes em branco - o que poderiam ou não ser uma suave platinação. Seu rosto tinha feições sérias e traços perfeitamente desenhados, um pouco mais que os meus, de acordo com Deise.

Ele me encarou com um olhar sério e, para me desculpar, arranhei um pouco meu inglês nada fluente e tímido.

—Oh, me desculpe. – Ele aparentou não entender o meu inglês.

—Wolf, Marcos! – Eu ouvi o meu nome, além do nome do garoto a minha frente, já que ele virou o rosto ao mesmo tempo que o meu em direção da voz fina que nos chamava. A mulher era alta, corpo delineadamente perfeito em um terno preto com um salto alto vermelho. Ela se aproximou em meio ao turbilhão de pessoas que andavam com malas e bolsas para todos os lados. – Bem-vindos a Londres. Prazer, meu nome é Evelyn e eu serei a ajudante de vocês durante o intercâmbio.

O inglês dela era britânico, afinal, ela morava naquele país. Eu não tinha muito contato com aquele sotaque, uma vez que somente fiz aulas com o inglês norte-americano. No início, demorei a entender, mas consegui com o tempo. Nosso colega respondeu com uma voz grossa e vibrante no final da garganta. Eu já tinha escutado algumas vezes o alemão, mas nunca tão de perto. Eu tinha interesse em fazer aula da língua, mas sempre desconfiei que teria muita dificuldade. Teria que tentar para descobrir, não é?

 Enquanto conversávamos, mais adolescentes se aproximavam da gente. Eu me virei em busca da minha mala que, felizmente, ainda estava na esteira e passava quase próxima de mim. Eu, com cuidado, a retirei de onde estava e me posicionei ao lado de Evelyn. Ela conversava ainda com Wolf. Ao lado dele, estacionou um garoto loiro com olhos um pouco castanhos. Ele conversava com uma mulher, provavelmente a mãe, enquanto esperava Evelyn se virar a ele. O diálogo dos dois eram bem suaves e eles conversavam rapidamente, o que não me permitia ouvir de onde poderiam ser. Ao me aproximar, percebi um que falavam francês, pois minha vó falara uma vez comigo.

A mulher se despediu do filho e foi embora, ele ficou onde estava e encarava Wolf com tanto afinco que eu fiquei levemente preocupado. Ambos eram mais altos, quase dois palmos e eu me sentia pequeno. Perto de mim, parou duas garotas. Uma delas vestia roupas cotidianas, como jeans e uma camiseta de uma banda. Ela falava inglês em seu celular e eu conseguia entender o que dizia. Logo que desligou, começou a conversar com a garota ao lado. Enquanto a primeira tinha cabelos loiros e uma pele rosada, a segunda tinha cabelos escuros, uma mistura de preto com marrom, e uma pele morena. As duas tinham o mesmo porte físico magro e pequeno, eu tinha um palmo amais em minha altura que elas.

As duas adolescentes conversavam em inglês, mas a segunda tinha um sotaque distinto que eu não conseguia identificar de onde.

—Amber, Surya, Jean, que bom que vocês chegaram. O grupo está completo. - Nós a seguimos até o lado de fora, onde uma van nos esperava. Colocamos as nossas malas no interior e seguimos até o colégio onde ficaríamos. O prédio era uma construção recente e ficaríamos em uma mansão que fora feita atrás do lugar. Eu pesquisei sobre o lugar e a temática da construção seria pegar o passado como modelo. – Pessoal, vocês dividirão o primeiro andar com outro grupo de cinco pessoas.

O lugar era imenso, tinha cerca de cinco andares. A entrada tinha mais adolescentes, todos conversando em inglês com seus sotaques bem definidos. Na frente de tudo, havia vários adultos com pranchetas em mãos e chamando as pessoas em microfones.

—Acho que a gente não sai daqui tão cedo. – Comentei para as garotas que confirmaram com a cabeça. – Vocês são de onde, se puderem responder?

—Sou dos Estados Unidos. Prazer, Amber. – Ela deu um sorriso para mim e retribui. Como não sabia como eram os costumes de lá, não estiquei a mão para cumprimenta-la.

—E eu sou da Índia. – O inglês dela tinha um pouco de sotaque, mas eu compreendia muito bem. – Meu nome é Surya.

—E eu sou Marcos, do Brasil. – Elas arregalaram os dois olhos que me fez rir um pouco. – O que foi?

—É que você não parece ser do Brasil. Até achei que era alemão por ter semelhanças com o Wolf.

—Ah, eu tinha um bisavô que era alemão e eu tenho algumas características dele. – Apontei para meus olhos e queixo, o que era definitivamente do meu bisavô. – Mas o resto é uma miscigenação, coisa que o Brasil tem muito.

—Uau, minha família é quase exclusiva de indianos.

—E a minha de estadunidenses. – Amber ainda parecia chocada, o que me fazia sorrir bastante. – E, perguntinha, o Wolf e o Jean se conhecem?

—Acho que não. Por quê?

—Eles ficam se encarando como se não gostassem um do outro.

—Não faço a mínima ideia. Só espero que eles se deem bem.

Como nosso grupo era no primeiro andar e fomos os últimos a chegar, fomos os últimos a pegar as chaves dos quartos. A fila do elevador era imensa e decidimos que subiríamos pelas escadas. Em menos de cinco minutos, estava eu em frente do meu quarto. Eu não vi quem era meu colega de quarto, ou colegas, pois havia quartos triplos em alguns andares. Assim que abri a porta, me deparei com Wolf e Jean, um em cada cama oposta no quarto enorme e pintado com um verde musgo entediante.

—Boa tarde. – Pois eram quase três da tarde e eu estava morrendo de fome. Comentaram que o refeitório abriria somente às sete da noite, mas eu precisava comer alguma coisa naquele momento. Os dois se encaravam com cara de poucos amigos e que eles não seriam amigos, muito menos colegas de turma.

Eu me posicionei na terceira cama, aquela que restou. Ela ficava em frente a parede da porta. A cama dos outros dois ficavam corretamente na mesma linha, como se preparassem para atacar naquela noite. Eu não falava nada, assim como eles. Para quem estava acostumado a ter um grupo falante como o meu era, aquilo começou a me dar uma agonia intensa. Após tirar minhas roupas da mala e as colocar parte na cômoda e parte no criado mudo, coloquei meu celular para carregar e saí do quarto.

Tudo estava um silêncio completo e aquilo me incomodava cruelmente. Segui para onde as meninas disseram que o quarto delas ficavam. Eu bati na porta e me deparei com Evelyn saindo. Amber e Surya já estavam com as coisas arrumadas e prontas.

—Marcos, do que precisa?

—Eh... Eu vim conversar com as meninas se elas queriam dar conhecer o campus. – O lugar é imenso. O prédio das aulas fica mais na frente do terreno, mas havia outras instalações, como sala de jogos ou biblioteca.

—Depois vocês podem ir ver o lugar. Primeiro, vá para seu quarto que eu preciso passar as regras do lugar.

—Você vai agora?

—Depois que passar em dois quartos, eu seguirei para o seu. – Ela se distanciou e nem verificou se eu a seguia. Ela entrou em um quarto e desapareceu. Eu fiquei parado em frente ao quarto das meninas, que me encaravam. A coloração do quarto era igual à da do meu quarto e a posição das camas estavam na mesma direção, porém, o quarto tinha apenas uma janela e era um pouco menor.

—Quem é seu colega de quarto?

—Wolf e Jean e eu acho que eles são se atacar enquanto eu estiver dormindo. – E contei como as camas estavam. Elas riram, mas de preocupação. – É muito estranho eles nunca terem se visto e estarem daquele jeito.

—Eles só precisam de um empurrãozinho para serem amigos.

—Espero que esse empurrão não seja de forma literal. – Eu vi que Evelyn saia de um quarto e ia em direção do segundo. – Vocês também estão com fome? – Elas afirmaram com a cabeça. – Depois que Evelyn passar do meu quarto, vamos para algum lugar comer alguma coisa?

—Ela disse que servirão uma espécie de lanche de boas-vindas, mas será quando todos receberem os recados. – Nós ficamos conversando por uns trinta minutos até eu ver a nossa companheira seguir até meu quarto. Corri para chegar junto dela. Lá dentro, Jean e Wolf não se encaravam nem se falavam, nós dois sentimos o clima que sobrevoava o local. Evelyn começou a passar as regras, além de horários de aula, de intervalos, café da manhã, almoço e jantar, outros pequenos detalhes também foram ditos. Eu precisei gravar o que ela disse porque me perdi em alguns trechos.

Depois de uns dez minutos, ela saiu e eu também queria, mas as meninas me disseram que tomariam banho. Ainda não teriam terminado. O fato de banho me deixou curioso para saber como era o banheiro. Ele era relativamente grande e tinha um box que pegava quase metade, além do vaso sanitário, pia e afins. Eu estava suado e precisava de um banho urgente. Apesar do ar condicionado no avião, na van, no aeroporto e o clima ameno em Londres, minhas axilas pareciam uma cachoeira. Contudo, eu não sabia como era o tempo de banho; mesmo que eu não demorasse muito, eu precisava saber para não ter multas e afins, coisa que estava inclusa no contrato.

Eu abri a porta e vi Evelyn saindo de um quarto, corri até ela e comentei do meu caso. Ela aparentou compreender muito bem e só pediu que eu entregasse uma espécie de papel informando o porquê de eu ter que tomar banho todos os dias, já que esse não era costume dali. Voltei ao meu quarto e liguei ao meu pai para explicar a história. Por e-mail, ele me enviou o que eu pedi. Fui tomar banho, pois não aguentava mais o cheiro forte de suor, além de estar grudento. Demorei nem cinco minutos – calculei pela música que eu ouvia. Eu tinha levado tudo o que eu precisava: xampu, condicionador e sabonete.

Assim que saí, os dois me encaravam com um olhar assustado. Eu sabia o motivo e nem preciso explicar novamente sobre. Eu já estava arrumado quando fomos chamados para o lanche de boas-vindas no refeitório, que ficava atrás da recepção. O lugar era imenso, com muitas cadeiras e mesas para todos os cantos. Procurei as meninas, que acenavam para mim de uma mesa. Fui até elas e contei sobre meu banho.

—Você toma banho todos os dias?

—Eu tenho problema com sudorese intensa e o cheiro é muito forte. Mesmo eu depilando as axilas para amenizar o cheiro, é preciso um banho. – O pessoal não conversava alto, mas a junção das vozes causava muito barulho, o que me fez falar um pouco mais alto. – Eu acho que não será apenas eu. Deve ter mais brasileiros por aqui.

—Ah, sempre tem. Talvez vocês se juntem para o movimento “Banho todos os dias! Direito nosso!”.

—Eu sei que aqui o assunto da água é mais delicado, pois não tem tantas fontes como tem o Brasil.

—Mesmo assim, vocês não deveriam gastar tanta água.

—O problema não é o banho, mas o que se gasta de água à toa. – E expliquei alguns motivos. Elas ficaram ainda mais assustadas, o que era esperado. Mas também expliquei como era o clima onde eu morava. As temperaturas mínimas variavam de 25 a 35 graus Celsius, mas a sensação térmica era maior em alguns dias.

—Mas isso é frio. – Foi nesse instante que eu me recordei que a temperatura que Amber estava acostumada era o Fahrenheit. Mentalmente, eu fiz umas contas e falei o valor da temperatura: era uma média de 86 graus Fahrenheit. – Uau, é muito quente. E vocês aguentam como?

—Nós nos acostumamos, mas o banho auxilia nisso.

—E você descobriu por que os dois não se dão bem? – Wolf e Jean se sentaram em cantos opostos, assim como alguns alunos. – Eu desconfio que seja uma rixa história. A Alemanha e a França sempre tiveram uma rivalidade, assim como França e Inglaterra.

—Eu sei disso, mas eles nem sabe como o outro é.

—Fazer o quê, né? – Falei para Amber e Surya. Eu olhei em volta e vi um homem com um microfone na mão. Ele aparentava ser o dono, e é. Ele começou um discurso, mas não entendi muito. Ele falava rápido e embolado. – Vocês estão entendendo o que ele fala?

—Um pouco, mas é só aquele discursinho de que todos somos iguais, de que teremos as mesmas chances e blábláblá. – Notei que Surya não acreditou muito no homem, nem eu acreditei quando ouvi. Ele falava sem convicção e parecia que aquilo era gravado. – E por que vocês escolheram vir para cá? Notei que seu inglês é mais puxado ao estadunidense. Por que não foi para lá?

—Minha mãe quer ir para lá quando formos todos juntos e para aquele parque temático. Por isso, achou melhor me mandar para cá.

—Ah, não é tanto assim.

—Amber, você fala isso porque mora ali perto, quase seis horas do lugar.

—É o tempo da minha cidade à praia. – Respondi enquanto me levantava para me servir dos bolos, bolachas e mais um monte de comida que eles serviram.

—Você acha que vai suportar o alemão em nosso quarto? – Olhei para o lado para encarar que me disse aquilo Jean estava atrás da gente. – Eu não acredito que nos colocaram com ele.

—Eu não acho ruim tê-lo como colega de quarto. Podemos aprender muito com ele.

—Eu não acho isso.

—Verdade, você deveria ter respeito para com os outros. – Wolf disse aquilo enquanto passava perto da gente. Jean ficou irritado, notado pela vermelhidão que sua cara ficou.

—Nossa, que torta de climão. – E eu precisei explicar para as duas o que era “torta de climão”, pois acabei falando em português. – E eu terei que conviver com isso durante esse tempo todo.

—Acho que você surtará antes disso. – Concordei com Amber. Evelyn passou pela gente e perguntou o que aconteceu entre Jean e Wolf, explicamos com poucos detalhes, mas ela entendeu e disse que daria um jeito nisso. – Eu vi que teremos que fazer trabalhos em dupla. Você acha que ela pode colocar os dois juntos?

—Eu não acho, tenho certeza. – Nós três retornamos até a mesa e comemos sem conversar muito. Surya era silenciosa, mas alegre e tímida. Amber era diferente, calma, mas falante. Sobre Jean e Wolf, não sabia o que dizer. Achei ambos bonitos, aparentavam serem legais quando sozinhos. Tentarei conversar com eles futuramente, afinal, tenho de três a quatro meses para fazer amigos.


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