Relatos do Cotidiano - Parte 2: Referências escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 1
Mensagens Malvadas


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo não é indicado para menores de 14 anos: há cenas de insultos, calúnias e violência.



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O dia ainda não esboçava as luzes do sol. No dia anterior, havia chovido um pouco, o que serviu apenas para abafar ainda mais as ruas daquela cidade. Eu acordara atrasado, para variar. Como ia a pé para a escola, precisei correr e fiquei sem tomar meu café da manhã. Eu me arrumei muito mal. A camiseta branca da escola não servia direito se eu colocasse de qualquer jeito, ou se eu estivesse suado; eu não curtia muito bermuda, porém, hoje foi uma necessidade; meus tênis estavam com os cadarços mal presos e isso quase me fez cair alguma várias vezes.

Estava quase em minha escola quando eu comecei a ouvir muitos pais reclamando, gritando. Gente do céu, ainda não é nem oito da manhã e esse pessoal gritando com todo mundo! Com muito esforço, eu adentrei no pátio de mesmo caos que o lugar anterior. A diretora, o mantenedor, a psicóloga, as duas coordenadoras e alguns inspetores tentavam manter a calma de alguns alunos mais escandalosos e de muitos pais ainda revoltados.

Eu olhei para um canto e encontrei o meu grupo de amigos, todos sentados em volta de umas mesinhas de tijolos. Os quatro não estavam se importando com nada do que ocorria. Carlos, um garoto de mesma idade que a minha – 14 anos, estava ao lado da nova namorada, Soraia, que fazia cafuné nos cabelos pretos cor de carvão e completamente encaracolados. A garota magricela e morena estava com um certo sorriso cínico no rosto enquanto outro amigo meu conversava conosco.

José Antônio era o mais velho da turma. Iria fazer dezesseis anos dentro de seis meses. Ele tinha cabelos curtos cortados na tesoura e na máquina de raspar. Apesar da idade, ele era o menor, quase cinco centímetros amenos que Milena, outra garota do nosso grupo. Ela era loira e com os cabelos presos em um rabo de cavalo. Sua face mais fina estava levemente avermelhada.

—Gente, o que está acontecendo aqui nesta escola? – Eu me coloquei ao lado deles enquanto procurava um pano que eu carregava na bolsa para enxugar o meu suor, além de um desodorante.

—Parece que alguém hackeou a página da escola e colocou um monte de ofensa para os pais e os alunos.

—Ofensa é apelido, né minha filha? – Duas meninas pararam diante da nossa mesa. Deise era uma menina magricela e de cabelo vermelho cor de sangue, resultado de uma tinta que ela comprou; Carla era uma menina de mesmo porte físico da Deise e com cabelos de coloração loiro queimado. Ambas usavam roupas extremamente brancas, mesmo com os detalhes em verde e laranja do uniforme. – O que está na internet é tudo verdade.

—E como você tem certeza de que é tudo verdade? – Zé Antônio começou a questionar a garota que estava mexendo no celular.

—Eu tenho o papel de informar sempre a verdade para as pessoas.

—E você é jornalista desde quando?

—Para mim, isso se chama fofoca. – Milena concordou com a Soraia e as duas deram um sorrisinho entre si e para as duas. – E se eu fosse você, ficaria bem quieta para não pensarem que foi você quem fez isso.

—Não foi ela. – Eu confirmei enquanto eu me secava com meu pano. – O caos que isso causou levaria a pequena popularidade dela lá para as alturas. – Todos concordaram comigo.

—Isso mesmo. Você acha que eu perderia a chance de me mostrar para o mundo? Além disso, essa pessoa é desocupada para fazer isso. Eu tenho mais o que fazer.

—E ficar na internet o dia inteiro é ter muito o que fazer, né? – Soraia fora amiga delas uma época, mas desistiu de manter alguma amizade depois de uns pequenos problemas. No fim, apenas coleguismo de sala foi mantido.

—Amiga, essa roupa combinou comigo? – Carla, tentando mudar de assunto, estava se mirando na janela espelhada da sala ao nosso lado. – Esse uniforme só combina hoje. Afinal, às segundas-feiras usamos branco.

—Está ótima. – E Deise voltou a mexer no celular, digitando ferozmente. De repente, ela parou e focou seu olhar acastanhado atrás da gente, onde ficava uma janela gradeada. – O que é isso aqui? – Ela tocou em um fio de náilon, quase invisível aos olhos de todos estavam por ali. Assim que ela puxou, não aconteceu nada, somente um nó foi desfeito.

Quando nós seguimos o olhar para ver onde aquele fio pararia, deparamos com uma enorme lona esticada sobre as nossas cabeças. Aparentemente, ninguém reparou naquilo, mesmo sendo extremamente esquisito. Outros fios também a prendiam e, como Deise era uma curiosa escancarada, começou a puxar todos os fios que prendiam o enorme pano. No momento em que puxou um estrategicamente posto, a lona despencou sobre a gente e liberou uma quantidade exorbitante de papéis impressos. Muitos deles eram apenas impressões daquilo que foi postado na internet, outros revelavam ainda mais segredos das pessoas.

—Sabe aquilo que falei sobre a pessoa ser desocupada? Então, acrescentem um "muita" em caps lock antes. – Todos nós estávamos espantados com o que víamos. Os pais e alunos, além dos trabalhadores, também estavam. – Que raios essa pessoa queria com isso?

—Amiga do céu, olha isso aqui! – Carla estava afogada com a quantidade de papel que ela arrastava para chegar até Deise. – Esse não é sua antiga conta?

—Mas esse serzinho pão com ovo está tentando me gongar desse jeito? – Todos olhavam para Deise como se ela fosse a vilã da história, mas duvido que seja ela. Primeiro, ela não era atriz para fazer aquele draminha adolescente todo; segundo, ela não perderia o tempo fútil dela para fazer aquilo (Quanto tempo essa pessoa demorou para imprimir tudo isso? E como ela entrou na escola para arrumar aquela lona?); terceiro, seria muito óbvio a fofoqueira da escola ser a mandante daquilo, né? – Gente, eu estou arrasada.

—Deise! – Era a diretora e o mantenedor se aproximando. – Explique-se!

—Não foi ela. – Todos se viraram para mim com espanto. – Gente, é muito óbvio ser ela. Alguém aqui já assistiu filme em que a pessoa muito óbvia era a culpada?

—Eu já vi e o filme era péssimo.

—Não estamos em um filme e isso aqui não foi feito para ser péssimo. – Respondi à garota que havia me respondido. Eu não a conhecia direito, então, nem me importei.

—Linda, me amarrota aqui. Não acredito que o galã da novela vai me defender. – Pude ouvir Deise resmungar isso a Carla, que estava se encarando no celular. Elas me deram esse humilde apelido. Sim, para elas, sou muito lindo, pois meu porte físico forte, mas nada bombado, meus olhos verdes escuros e meus cabelos lisos me faziam extremamente atraente. Eu era desse jeito e não me importava. Para elas, eu não tenho imperfeições, mas mal sabem que tenho um chulé horroroso e que meu suor é muito desagradável.

—Eu sei, amiga, aproveita.

—Vocês duas não vão aproveitar nada. – Milena estava ao lado delas.

Nisso, o sinal para a primeira aula soou. O mantenedor nos mandou para sala de aula, como se conseguiríamos ter alguma naquele dia. Todos estavam alvoroçados. Muitos segredos extremamente pessoais estavam na boca do povo. Um casal conhecido nosso brigava em altos gritos.

—Seu cretino, me explica essa foto? – Ela segurava um dos papéis, que mostrava a foto dele com outra garota.

—Amor, me escuta, por favor...

—Eu não quero te escutar, seu sem vergonha! Você me traiu! – Ela retirou a aliança que carregava em seu dedo e arremessou no namorado. Pela situação, agora é ex-namorado. Alguns amigos correram atrás da garota que chorava horrores. Se não me engano, eles estavam no cursinho e completariam quatro anos de namoro no dia seguinte.

Enquanto andávamos pelo enorme pátio de chão azulado e paredes vermelhas alaranjadas, dois garotos se socavam em um canto. Em outro, um grupinho inteiro se socava até muitos caírem. Os inspetores e alguns professores tentavam fracassadamente separar aqueles espécimes que se mordiam enfurecidos na tentativa de conquistar vingança.

—Gente, que horror! – Deise estava agarrando o meu braço. Não era oportunismo, eu sentia isso. Ela estava chocada. Aqueles que conheciam a antiga página de fofoca dela fizeram questão de contar a todos. Ela era ameaçada de morte enquanto passávamos até a nossa sala. – Por que esse monstro fez isso comigo?

—Deise, eu acho melhor você ir embora. Eu peço para minha mãe vir te buscar. – Carla estava agarrada ao braço da amiga.

—Nem pensar. Primeiro, não vou perder esse babado que está acontecendo. – Mas não larga esse sentimento de curiosa e fofoqueira nem quando é ameaçada. – Segundo, eu preciso, eu necessito limpar a minha imagem. Esse serzinho não vai me flopar tão fácil assim.

—Deise, venha comigo. – Era a diretora. Ela era magricela e bem alta. Seu corpo usava um terninho azul bebê que a envelhecia rudemente. Carla e eu nos oferecemos para ir com ela, já que éramos amiga e defensores da garota. – Vocês precisam ir para aula.

—E você acha que alguém se concentrará essa semana com esse pandemônio que está acontecendo aqui fora? – A diretora até tentou não concordar conosco, mas sua testa franzida nos respondeu. Avisei o pessoal e fomos até a sala da diretora. Lá, fomos servidos com copos de água.

—Agora, Marcos, me conte porque essa garota não é a culpada? – Ela me encarava enquanto apontava para Deise que chorava um pouco e resmungava "Não fui eu" em meio a voz miada.

—Primeiro, seria preciso dias, talvez semanas ou meses para preparar isso. Deise não é uma pessoa que perderia seu tempo em fazer isso.

—Ela tem tempo de sobra. – Inclusive ela concordou com a afirmação da diretora.

—Segundo, ela precisaria entrar na escola e saber a senha do alarme para fazer aquele show de confetes. – A Floresta Amazônica adorou ao ver aquilo. – Terceiro, teve um show aqui na cidade no sábado e ela foi. Ela postou fotos o dia inteiro mostrando a ansiedade e a preparação de roupas e maquiagens. – Sim, eu a seguia em tudo. Acho ela muito bonita e atraente. Só que legal e inteligente apenas acontece quando está longe da amiga, que é péssima influência para qualquer um, até para aqueles mais centrados. – Por consequência, ela ficou o domingo todo dormindo. Quarto, nesse dia ocorreu alguma premiação e ela acompanhou ao vivo. Tem vídeos e comentários dela em todo lugar da internet.

Mostrei meu celular com tudo aquilo que eu havia falado. Eram provas verdadeiras e a diretora teria que considerar.

—Bom, não nego que isso talvez me convença de que ela não é a culpada, contudo, como a conta dela apareceu em muitos papéis, já que eram prints de postagens. – Ela gelou um pouco e notei isso ao notar a mão tremendo acima dos joelhos.

—Sim, aquela era a minha conta, porém, eu a desativei há uns anos, acho que uns seis ou cinco. Precisei mudar de e-mail, então...

Assim que ela falou disso, notei que um dos papéis estava preso na bolsa de Carla. Eu o peguei e notei que era um post de Deise, com a conta antiga, feito há uns dois meses. Eu mostrei a ela, que ficou em choque. Ela, com o celular, tentou fazer o login nesse e-mail. Ela dizia que ainda tinha a senha, entretanto, todas as tentativas foram fracassadas.

—Mas gente, o que aconteceu? – Notei que a tela do seu celular clareou mais forte. Ela tocou na notificação, que era um vídeo temporário de um amigo nosso. – Alguém em colore que eu estou bege. – O vídeo parou, contudo, ela apertou o botão para rever. Depois, pediu para mim e para Carla gravarmos com nossos celulares. Em seguida, mostramos a diretora.

O garoto revelava que seu pequeno plano tinha tido muito sucesso. Depois, ela recebeu uma foto, que era a rede social de Deise lotada de mensagens de ódio, xingando a garota.

—Deise, foi ele. Foi aquele nojento que tentou te beijar!

—Carla, ele não tentou me beijar. Apenas me pediu para sair com ele, só que eu já tinha a festa de uma prima minha e eu não desmarcaria. Amore, era festa de 15 anos.

—Deise, me conte essa história direito. – A garota contou que o garoto em questão, de nome Lúcio, pediu para que ela saísse com ele. Ela negou por ser em um dia em que Deise já tinha um compromisso. Houve outros pedidos, porém, ela não queria. – Você fez algo para ele fazer isso?

—Não fiz nada. Sempre neguei afirmando mal-estar, dores de cabeça, compromissos marcados há dias, e afins. Nunca imaginei que ele faria isso comigo.

—E eu sempre o achei muito gente boa, mas tímido.

—Esses são os mais perigosos. – Resmungou Carla, o que não serviu de conforto para ninguém, além de ser um estereótipo ridículo.

—Diretora, o que você vai fazer? Ele não é um aluno do segundo colegial?

—Não mais. Ele pediu transferência para outra escola na semana passada. Na sexta-feira, ele se despediu apenas de mim e da coordenadora. E, pelo visto, ele fará um intercâmbio e viajou ontem. Vai saber quando ele retornará.

A palavra "intercâmbio" gelou meu corpo, que tinha certos problemas a resolver. Por fim, a diretora nos dispensou e retornamos para a sala. Deise estava bem mais aliviada por ter se livrado da culpa que nunca foi dela. No instante em que colocamos o pé na sala, uma avalanche de pessoas caiu sobre a gente, todas pedindo explicações. Carla fez as honras, uma vez que nada de importante disse na diretoria.

No intervalo, Deise recebeu milhares de pedidos de desculpas do pessoal que a ameaçou. Carla estava adorando a pequena fama que recebia naquele momento somente por ser amiga dela. Novamente, retornei ao meu pequeno grupo. Todavia, a escola estava muito estranha, para não dizer esquisita. Aquela harmonia que predominava o lugar morreu com várias facas em seu peito e um tiro bem no meio da testa. Os olhares de ódio e cochichos cresceram de forma exorbitante. Era uma pandemia social.

A escola precisou reparar muitos estragos morais, pois os físicos foram poucos. Nada como faixas, band-aids e remédios não resolvessem, no entanto, namoros terminaram – eu contei uns seis, sete términos; amizades desfeitas e inimizades criadas. Tudo isso por causa de uma pessoa que não soube ouvir "não" na vida. Sim, o ser humano é muito ignorante, invejoso, ciumento. E ainda nos achamos superiores aos animais, mais racionais. Há momentos em que eu me questiono muito sobre isso.

No final, as três aulas finais voaram e todos retornamos para casa. A diretora e o mantenedor precisaram resolver alguns casos com alguns pais para evitar que os filhos saíssem da escola.

Quando cheguei a minha casa, meus pais me esperavam para almoçar. Eles já sabiam do caos e de como eu salvara a garota. Gente, eu só pensei, só usei meu cérebro. Dica para alguns, por sinal. Nós comemos com calma e sem falar muito, só que minha mãe quebrou o silêncio.

—E você já falou para seus amigos? – Aquilo me gelou, assim como antes.

—Ainda não. – Eu não levantei o rosto, porque sabia o que diriam e como estavam.

—Filho, você viajará daqui duas semanas. Você precisa falar com seus amigos.

—Eu sei, mãe, mas não criei coragem. – Eu estava mal por esconder esse segredo deles. Queria contar a eles, mas queria que eles fossem comigo. Como era difícil a despedida.

—Querida, dê tempo a ele. Na ocasião certa, ele contará. – Eles terminaram antes de mim e, antes de voltarem ao trabalho, me deram um beijo na testa e se despediram.

Quando terminei de comer e arrumar a cozinha, eu me sentei na minha cama e fiquei encarando um quadro na parede oposta. Lá, tinha uma fotografia de meus amigos em uma festa minha. Meu grupo era dividido em duas partes: os meninos – eu, Carlos e Marcelo – e o total – com Soraia e Milena. Agora, eu tinha mais um, só que não sabia como acompanhar. Deise se mostrou uma pessoa interessante, pelo menos para mim. Carla era fútil, não há outras palavras. Talvez eu fale mais delas, ou apenas da Deise. Mas isso é outra história, é outro dia.

 


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Notas finais do capítulo

Obrigado por lerem o mais novo capítulo da série Relatos do Cotidiano. Espero que tenham gostado, e que continuem a acompanhar essa história que escrevi com tanto amor e entusiasmos.
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