Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 28
Aqueles que buscam o futuro


Notas iniciais do capítulo

"O Amor é um monstro. O Amor é o mais selvagem de todos os monstros."
Rick Riordan



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/764761/chapter/28

— ...E depois de toda aquela zorra, Odin deixou o Cas um dia inteiro lá dentro do cemitério. “Só pra ter certeza”, ele disse.

“Com os besouros e tudo? Eca!”

— Com besouros e tudo. Cássio tomou uns remédios e está bem. O doutor levou sangue de nós dois (até um pouco da Marina) e uns pedaços, me furou todo. O Shkreli foi pra Hoshi, e quando o Astronauta falou com o Fred ontem, pareceu bem otimista. E você, como está?

“Estou ótima. O jardim tá crescendo bem e agora um pássaro vem me visitar! Ele me faz companhia, e é muito esperto.”

— Qual o nome dele?

“Nino. Ele é muito bonito e tem a plumagem branca. Quando você chegar aqui eu o mostro pra você.”

— Bem… Marina, Luca e Fred vão em breve, mas acho que eu vou demorar, Ramona. Tem aquela coisa que eu ainda preciso fazer com o Cássio aqui.

“Sei.” O ânimo dela esfriou um pouco. “Vocês têm que encontrar o Capitão Feio.”

— E isso será perigoso. Mas quando eu puder, eu vou até aí. Bóris disse que eu estou aprendendo rápido.

“Tenho tanta coisa que quero te mostrar, Nimbus. Tantas histórias. Sinto sua falta. De todos vocês, quero dizer.”

— Eu sei. Eu também. Preciso ir, muita coisa pra arrumar.

“Tomem cuidado. Vou poder te ver amanhã?”

— Vou tentar. Continue bem, Ramona. Durma bem.

“Você também, Nimbus. Dê ‘oi’ ao pessoal por mim. Boa noite”

Viu a mão dela se aproximar da imagem e então a tigela de vidência era só uma vasilha com água. Suspirou. Mesmo seu lobo estava em silêncio. Merda de coração.

— Estou interrompendo?

— Ahn? Não, nada. Pode entrar, Marina.

Ela viu a tigela de água que Mauro usava pra se comunicar com Ramona e entendeu logo a cara fechada. — Posso te ajudar, Mau?

— Acho que não, Ma. Não sei.

— Posso te ouvir, se você quiser. Problemas com a Ramona?

— Não, ela está bem. Gosta de mim. E eu gosto muito de estar com ela, de verdade. Mas amo aquele babaca. Por que eu não consigo esquecer o caolho rabugento que não me quer por uma garota legal que me quer? Isso nem faz sentido! — rosnou em frustração. — Por que essa cara?

Céus, seu primo era um gênio em muitas coisas, mas era um pateta em relação a sentimentos. — Não, nada. Continua.

— O amor é sempre assim, essa coisa selvagem que te ferra inteiro? E que ri se você tenta escapar?

— Tudo isso e pior. Ele só segue as próprias regras.

— Ele é um merda opressor e tirano. Não sei porque alguém quer se sentir assim.

— É que quando recompensa, faz tudo valer a pena. — Olhou pro primo que ainda resmungava sozinho. Ele sorriu amarelo em resposta.

— Sei que você não veio pra me ouvir reclamar. Desculpe.

— Não, mas pra isso também servem os amigos. Além de arrumar magicamente os traumas dos outros sem a gente saber.

— Cássio não devia ter te contado.

— Ele não contou. Mas eu fiquei sem entender como aquele medo paralisante diminuiu tão rápido. Eu até consegui voltar a dormir a noite inteira. Então Cássio comentou daquele gosto meio doce que sentia quando você fazia magia nele. Obrigada, Mauro. Não fosse por você, acho que eu estaria escondida num buraco até hoje.

— Imagine. Eu só ajudei um pouco. Quando você pendurou aquela espada na cintura e nos encontrou vestida daquele jeito, soubemos que ficaria bem. — Mauro olhou bem pra ela. Abaixo da ternura, ela estava quase pulando de excitação. — O que você veio me dizer? Porque está tão vermelha?

— Fred me pediu pra casar com ele. — sussurrou.

— O que você disse? Fred fez o quê?

— Me pediu em casamento. — repetiu, tão baixo quanto antes.

— Marina, não tô te ouvindo. Repete, por favor. Um pouco mais alto.

Ela levou um tempo pra juntar coragem, levantar os olhos e falar menos baixinho:

— Eu vou casar com Fred.

— Era isso? Céus, até Mingau sabe que vocês vão casar. Você é a mulher da vida dele.

— Você não entendeu, Mau. Essa semana, antes de viajarmos.

Mauro quase desequilibrou. — Como? Pra que a pressa? Ele está bem, não é?

A segurou pelos braços, procurando algo errado. — Você está bem? Está sentindo algo estranho?

— Não é isso, Mau. Estamos bem de saúde. Ei, para de fazer magia, faz cócegas. — Então a voz entristeceu. — Cas não vai voltar com você, não é?

Mauro a soltou, entendendo — Não. Ele não vai voltar comigo.

— E você vai voltar sem ele?

Por um instante, ele a olhou com tanta tristeza que quis abraçá-lo. — Você sabe porque ele te fez uma máscara de elefante?

Ok, se ele não iria explicar, Marina é que não insistiria.

— Sei que foi uma forma de elogio, mas ele não disse o motivo.

— A elefanta é a líder da sua família. É inteligente e tem compaixão. Só ataca pra se defender, mas quando o faz é implacável. A dele é um javali. O que você sabe sobre javalis?

— Parente selvagem do porco. Só sei desenhá-lo.

Mauro pareceu um tanto chateado. — É muito agressivo e teimoso. Quando não está no seu ambiente, é uma praga destrutiva. Pode ser muito perigoso e matar quem chega perto. O idiota insiste em viver sozinho.

— Ah. — Pôs a mão no ombro dele, tentando consolá-lo. Ele a afastou com gentileza, agradecendo com os olhos. Abaixou-se pra recolher a vasilha de vidência. Marina quase saía quando se lembrou de perguntar. — E qual é o animal da sua máscara?

Ele não a olhou quando respondeu. — Um cão-lobo. Um animal dividido entre dois mundos, sem fazer parte de nenhum. DC sempre quis ter um.

***

— O que você tá fazendo com essa solda?

— Tenho muitos preparativos a fazer antes de irmos embora. Quero finalizar esse projeto hoje à noite. Cássio e Mauro vão precisar de toda ajuda que pudermos dar.

— Mas não demora muito, Fred. Você tá com seus votos prontos pra amanhã? — Fred olhou pra ele um minuto em silêncio, a máscara protetora levantada. Luca podia ver o suor na testa dele. — Você nem começou, não é?

— Não faço a menor ideia do que dizer. Quanto mais eu penso, pior fica. Até perguntei pra Mauro e pro Cássio o que dizer, mas nenhum dos dois entende porcaria nenhuma disso. Não posso só dizer que a amo mais que a vida! Tenho certeza que ela espera ouvir mais que uma frase de voto de casamento.

— Quem teve essa ideia sensacional de casar em quatro dias foi você. Organizar uma mudança e uma busca épica pela salvação da Terra é moleza, dá pra montar um casamento no intervalo do almoço.  

Fred o olhou constrangido. — Eu sei que foi uma ideia ruim, mas casar sem o Cássio lá pareceu errado. Sem ele e o Mauro, Marina não estaria aqui. Nós não vamos vê-lo mais. Eu sei porque ele não vai voltar, mas queria que ele tentasse mesmo assim.

— É o Cachorro Louco, vai saber. Um dia ele pode acordar entediado e decidir ir morder nossos calcanhares na casa nova. Escuta, em todo filme com casamento, os noivos falam sobre como se sentem e como vão fazer pra outra pessoa ser feliz. Lembra de algum filme ou música que diga o que você pensa e adapta. Você continua péssimo no improviso. E, Fred...

— Que foi? Esqueci mais alguma coisa?

A seriedade tinha desaparecido dos olhos de Luca. Todo ele irradiava satisfação. — Você e Marina casarem são meu orgulho, e minha melhor alegria. Tudo que fiz valeu a pena. Sejam felizes, ok?

Levou um tempo até aquele nó na garganta de Fred deixá-lo falar.

— Muito obrigado, amigo. Não teria sido possível sem você. — Luca balançou a cabeça em negação.

— O que nos salvou a todos foi sua fé cega e louca. Todos nós pensamos que ela estava morta. Se você não tivesse lutado contra minha lógica, meus argumentos, até minhas ordens… Os rapazes não a teriam encontrado, e eu estaria morto, Cássio também.

— Sem vocês, essa fé teria me feito correr até a casa dela, e eu seria mais um nome numa caixa. Ei, pode dizer algumas palavras amanhã?

— Claro, seria um privilégio. Faça os votos, vou fazer o almoço. — Encontrou os rapazes com uma lista e as mochilas, rodeados de coisas e discutindo opções.

— Ei, Odin, alguma sugestão pra bagagem?

— Água, muita água. Levem a maior parte da farmácia, vocês vão comer muita porcaria. Levem umas hastes compridas, pilhas pro controle do drone e o celular.

— Vou pegar uma serra. Fred já terminou com a parte dele de amanhã?

— Fred dizendo coisas românticas? Parece que tá lutando com um urso. E Marina?

— Conversei com ela. Não dá pra tirar fotos, é claro, mas vai parecer muito bonito. Nina e Ângelo estiveram aqui. Os dois acreditam que o Feio tem algum poder da Natureza corrompido pela Serpente. Se Cássio conseguir não ser controlado pelos poderes sujos, talvez dê pra consertar.

— Cas, você sabe como vai convencer seu tio?

— Não preciso. Ele quer fazer isso há anos. Eu só preciso aceitar, e resistir até as forças celestiais fazerem o trabalho delas. Então fazer o meu.

— E depois? Vão ficar aqui? — Ele e Mauro olharam o ciborgue. Desde quando foi mordido, ele não parecia tão conformado com alguma coisa.

— Estão fazendo uma vacina, mas não tem cura depois dos sintomas. Eu tomei minha decisão. Não vou voltar. Não devo. Mas o Mauro vai.

Ele não conseguia explicar. Lembrava como era ter o poder do tio na cabeça. E mesmo ele nunca usou para matar. Tinha que fazer o lobo idiota voltar. Mesmo que por algum milagre não o ferisse fisicamente, não queria que Mauro visse o que se tornaria. Olhou para o amigo, suplicando pra ele entender.

— Todos nós teremos a chance de nos tornar adultos, Mau. Vocês vão ter uma vida de paz, casar com alguém, envelhecer, o pacote completo.

Mauro não se moveu. Cássio finalmente baixou a cabeça, derrotado. Murmurou algo sobre roupas e saiu. Luca manobrou a cadeira até ficar de frente pra Mauro, esperando a explicação.

— Ele vai arriscar a vida, depois a alma, então se isolar pra sempre? É o plano mais estúpido que ouvi na vida. Toda vez que a situação aperta, ele me aparece com essa porra: “Ah, eu sou o Cachorro Louco, ninguém precisa de mim, vou matar ou morrer.” Eu preciso dele, caralho, isso nunca conta? Se ele acha que vou sorrir e incentivá-lo a se tornar uma versão pirada do tio, melhor desistir.

— Então não vá.

— Eu prometi que ficaria, Odin. Se aquele babaca pensa que vou aceitar numa boa ele correr todo o risco sozinho, enquanto eu fujo pra segurança como uma porra de garotinho amedrontado, está muito enganado. 

Respirou fundo, e controlou a raiva. Deu um sorriso que não enganou ninguém. — Além disso, sem mim o idiota não vai durar nem dois quarteirões. Você daria um jeito de se levantar e chutar minha bunda.

— Estou dizendo que você tem opções. Aquele cachorro não morre tão facilmente e você sabe. Por outro lado, ele não vai te matar, você estará bem seguro. Pode ficar com ele, Ramona vai entender.

— Não vai? Ele tentou enfiar uma chave de fenda na minha cabeça! Não conseguiu por sua causa. O que é engraçado nisso, Odin?

— Foi isso que ele te contou?  — Luca olhou pra baixo, a mão na testa, tentando disfarçar o sorriso. — É mesmo, vocês não sabem que tem uma câmera lá também. Cas estava apavorado com o seu estado, todos estávamos. Mas ele não conseguiu chegar a meio metro de você com aquela ferramenta. Você é a única pessoa que ele é incapaz de matar.

***

— Ei, não dá azar ver a noiva antes do casamento? — Fred a abraçou pelas costas e deu um cheiro no seu pescoço. Marina derreteu nos braços dele, se perdendo no cheiro tão familiar.

— Eu posso te convencer do contrário.

— Não me importo de deixar você tentar. Tá nervoso?

— Vou casar com a mulher da minha vida. Estou em pânico, só disfarço melhor. Você parece desanimada. Se estiver pensando em desistir, me avisa com cuidado.

A voz dela estava melancólica quando respondeu. — Você ainda pensa neles? Nos outros, nos seus pais?

— Às vezes. Alguns dias eu ainda acordo assustado porque está tarde e eu não alimentei o Bidu. Outras vezes, a vida de antes parece um sonho estranho. Mas sim, sinto falta deles às vezes.

— Amanhã era o dia que eu sonhava dividir com todo mundo que eu amava. Ainda fico um pouco triste. — Fred afundou a mão nos cabelos cacheados.

— Tudo bem ficar triste. Quer falar sobre isso?

— Não, hoje não. Vai passar. Hoje vou só agradecer que vocês estão comigo, e posso ficar com o homem que amo pelo resto da vida.

Os dois ficaram abraçados mais um pouco. Fred não sabia explicar ou definir, mas se sentia tão mais tranquilo nos últimos dias. Como se todo ele tivesse se tornado mais sólido, mais confiante no futuro, que talvez durasse mais que um ano ou dois. Sentiu ela se virar um pouco e descansar a cabeça no seu peito.

— Eu também me apoiava em você.

— Como?

— Lá fora. Toda manhã, quando eu refazia as grades, eu pensava que deveria aguentar mais aquele dia, que você iria me achar. Depois de um tempo, eu já não acreditava tanto, mas repetia que você não estaria morto até eu tocar nos seus ossos. Até lá, você estava vivo e iria me procurar.

Ele a beijou com entusiasmo. Quando se afastaram, ele estava emocionado. — Céus, você não sabe como eu te amo.

Se não o tivesse conhecido tão profundamente, hesitaria ante um pedido tão cedo. Mas ele a amava com uma devoção e firmeza permanentes, que nem a loucura nem o apocalipse destruíram. Ela também não via mais seu futuro sem ele. Lembrou das palavras de Luca, tão pouco tempo antes: “às vezes o depois não chega”. Não tinha sentido esperar mais. Com um sorrisinho, ela encostou na têmpora dele com um dedo.

— Pode acreditar, eu sei.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

* Quando Mauro mentiu sobre o motivo, esqueceu que Marina sabia que o DC queria uma lontra de estimação (Edição 56, "Sem medo").

* Cães-lobos existem, e realmente são muito mais difíceis de lidar que um cachorro comum. São fisicamente parecidos com lobos, e do tamanho de um rottweiler. Muitas vezes os donos não fazem ideia de como cuidar deles.

* Fred projetou uma espécie de "armadura" pra Cássio, pra aumentar suas chances sozinho. Como Mauro se juntou à expedição de última hora, não deu tempo de fazer nada.

*Sobre Cas e o episódio da chave de fenda: Lá no capítulo 3 ele contou essa história, lembram?

A todos vocês que leram, meus agradecimentos (sei que é repetitivo, mas fazer o quê?). Espero vê-los próximo capítulo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Meia Lua" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.