Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 25
Ariadne e o Minotauro


Notas iniciais do capítulo

Meus agradecimentos a Arymura (sempre), pela paciência em reler as mudanças de última hora que fiz nesse arco. Seja bem-vindo, Jack. Espero que goste.

Esse capítulo tem cenas um pouco mais fortes. Estão avisados.

As músicas que Marina canta no capítulo são:
"Sei", de Nando Reis: https://www.youtube.com/watch?v=9iApNt_1gms
"Point of no return", do musical Fantasma da Ópera: https://www.youtube.com/watch?v=TFZrM38mf7Y



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— Sabe, quando a felicidade invade quando pensa na imagem da pessoa… Quando lembra que seus lábios encontraram outros lábios de uma pessoa... e o beijo esperado ainda está molhado e guardado ali...

— Isso é uma música?

— Você cantou pra mim há algum tempo. Você até que canta bem, Franja. Diz que nunca tem as palavras certas, então pega emprestado. Luca também canta às vezes. Lembra?

— Cabelo castanho, cadeira de rodas? Lembro desse homem. O que eu sou dele?

— Você é o único amigo que ele se permitiu ter. Ele canta enquanto acha que ninguém está ouvindo. Oh.

O enorme labirinto era branco como tudo o mais na superfície onde estavam; não projetava sombra, então não era visível até que quase se esbarrasse nele. Bidu parou na porta.

— Acho que nós dois precisamos entrar.

— Nós dois?

— Não sei como vou reunir você e sua parte faltante, mas é um bom começo todos estarem juntos. Você quer lembrar, não quer?

— Não gosto de informações incompletas. Mas como vamos nos guiar… que conveniente. Um novelo de lã vermelha. Ok, Ariadne, vamos?

Uma vez dentro do labirinto, ela encolheu-se com a cacofonia de vozes e risadas, e xingamentos. Xingamentos demais.  E ela morava com Cássio e Mauro, que conheciam cada palavra obscena da língua. Forçou-se a caminhar, desenrolando o novelo, até ouvirem um grito atormentado. Ela sentiu o chão balançar, Franja pareceu curioso.

— Porque tem tantas vozes altas aqui? Não lembro desse lugar. Você está derramando lágrimas.

Marina tocou no próprio rosto. As lágrimas corriam, a cada grito que ouvia. Mas não eram tristeza. Era fúria. Aquelas vozes, aquelas coisas malignas e cruéis, estavam torturando Franja. Parte dele, pelo menos — Franja, como eu consigo uma espada por aqui?

— Fácil. Espada. — A palavra solidificou-se na sua mão, numa rapier prateada. — Aqui.

Percorreram e voltaram pelos corredores, até encontrar a primeira das vozes. Pra uma coisa tão disforme, o sorriso cheio de dentes era bem humano.

— Você não conseguiu salvá-la! Você não salvou nenhum deles! Podia ter impedido Joaquim de ver a Magali como uma morta-viva! Podia tê-lo impedido de estourar a própria barriga! Luca vai fazer isso! Ele vai estourar os miolos com a mesma arma, e você vai estar lá, mas não vai impedir!

A cena se tornava cada vez mais nítida, conforme a coisa gritava. Luca na frente das caixas, a arma empurrada contra a cabeça. Marina avançava contra aquilo enquanto ouvia o disparo. Atravessou a imagem com a espada erguida, os meses de treino e a raiva escaldante que sentia agora. Os guinchos não a fizeram parar, mas ela estocou e esmagou sob seus pés, até que não sobrasse nada. A coisa ameaçou crescer novamente, até que Franja comentou um tanto decepcionado:

— Gasto minha imaginação com esses construtos patéticos? — Então a voz realmente silenciou.

E eles avançaram. Ela os enfraquecia, mas eram as observações de Franja quem destruíam as vozes. Eram dezenas. Ela bufava como um touro, recuperando o fôlego, enquanto Franja olhava ao redor. — Realmente há um bocado de poluição aqui. Isso impede de pensar com clareza.

Os gritos estavam mais espaçados, mais agonizantes. Mais próximos. Havia apenas duas outras vozes agora, ao redor de duas árvores ressequidas.

— ...seu pirado, maluco, covarde pau-mandado filho da puta, você não vale nada. Seus amigos não podem contar com você, sua namorada vai te deixar por qualquer um. Ela nunca vai aceitar ser sua mãe. Você não devia...

— Você me esqueceu, Fred. Eu fui seu amigo, você me deixou ver a Magali apodrecida correr pra cima da gente e me deixou morrer. Como você pode ousar ser feliz depois do que me fez?

Ela atacou sem aviso, cortando e perfurando, até que só havia o silêncio. Ela virou-se, triunfante, e engasgou de pavor.

Franja não estava preso às árvores. Estava empalado por elas. Os galhos o atravessavam, como um espantalho nefasto, o mantendo estendido e acima do chão. Esquelético e exausto, só mexia os olhos arregalados de um lado para o outro. O sangue era uma mancha castanha e rachada abaixo dele. Ela percebeu que caiu quando ouviu o baque dos joelhos no chão. Era horrendo.

O Franja nas árvores pareceu notar a garota a seus pés.

— Eu sabia. Você morreu.

— Não, Franja. Eu vim te salvar.

— Eu vi você… você estava se transformando… O Luca iria te matar. Eu não aguentei.

— Vamos te descer daí, amor.

— Se você não morreu, como está aqui no inferno?

— Eu… reconheço você. — O Franja oco olhava o empalado, e pela primeira vez ele parecia afetado por algo. Aproximou-se até quase tocar os pés pendurados. — Há quanto tempo você... nós... estamos sofrendo aí em cima?

Marina, o que tá acontecendo aí?

— Encontramos outra parte do Franja. Ele está muito ferido. Ele pode morrer aqui dentro?

Mauro não respondeu.

Marina levantou-se, enxugou o rosto e começou a subir na árvore da direita. —Franja, o quanto essa espada é afiada?

— O quanto eu quiser. Estamos na minha mente.

— Então a queira muito, muito afiada. Franja — Balançava bastante nas pontas dos galhos, mas precisava chegar até ele. Precisava chegar até aquele homem estropiado que amava e ajudá-lo a se libertar. Pendurou-se numa das mãos, a espada cravada num dos galhos, e com a outra tocou no ombro dele. — Meu amor, estamos na sua mente. Você não pode descer?

Tem coisas que a gente não consegue fazer sozinho, Marina. Ele já está preso... aí dentro há muito tempo. Você precisa ajudá-lo a sair.

Mesmo na mente dela, a voz de Mauro continha muito pesar. Como uma história triste que ele viu muitas vezes. Marina viu, dentro da própria mente, as lembranças de Mauro: Franja delirando, correndo por todo o laboratório, ou sendo agarrado pra não sair pela porta. Seu namorado soluçando encolhido, enquanto os outros se olhavam sem saber o que fazer; Ele desvairado, gritando com Luca, sendo contido no chão, enquanto arranhava e mordia numa fúria animalesca.

Ainda estava apavorada com aquele nível de dor. Mas precisava ser feito.

— Franja, se prepara. Isso vai doer. Segura ele quando eu o soltar.

Desceu com força a espada nos galhos. O grito a atingiu como um soco.

— Past the point of no return...— Murmurava rilhando os dentes. Precisava focar noutra coisa que não os gritos, e desviar do desespero que o fazia tentar agarrar sua mão. — No backward glances... Our games of make believe are at end...

Ela continuou atacando os galhos grossos, rosnando a música, até que todo aquele lado estava livre. Ele permanecia pendurado como um boneco quebrado. Ela subiu na outra árvore, e ele não conseguia alcançá-la, tão preso estava.

— Por favor, não faz isso! Por favor, Marina!

— Eu vou te libertar. Mesmo que isso te mate.

— Não! Não! – o grito se perdeu num uivo quando ela voltou a cortar os galhos.

Atacava os galhos furiosa. Pôs nos golpes toda a dor e a frustração engasgada de dias. — When will the blood begin to race! The sleeping bud... burst into bloom! When will the flames... at last consume... us!

O que está acontecendo aí Marina??

— Agora não, Mauro! The bridge is crossed! So stand and watch it burn! We’ve... passed the point! Of no return!

Agora o segurava por baixo dos braços, e com um golpe final cortou o último galho. Os outros cederam e ambos caíram nos braços do outro Franja, entre madeira e folhas secas.

Marina levantou-se. Com um grito, atacou o tronco das duas árvores até derrubá-las.

Marina! Me responde, droga! Tá todo mundo vivo?

— Estamos. Precisei derrubar umas árvores.

E aí? Tudo resolvido? — Marina olhou ao redor. A mesma imensidão branca. Aproximou-se do seu namorado e beijou de leve a testa no Franja ferido.

— Eu vou te libertar, meu amor. Descanse um pouco agora, tá? — Levantou o rosto. — Você tá se sentindo diferente?

— Não. É como se fosse a história de qualquer um. Tem algo faltando.

— O que mais preciso fazer, droga? Juntar as Esferas do Dragão? Achar o mágico de Zóz? — Respirou fundo pra se acalmar. — Ok, Mauro, Franjas; Algum de vocês têm ideia do que falta?

Franja não acordou porquê de algum jeito, a alma dele partiu.

— Eu entendo agora. – Franja disse, com a expressão de quando finalmente encontrava qual peça quebrou numa invenção. — Falta meu nome.

— Essa parte eu já disse. Carlos Frederico Médici.

Ele tá falando da identidade, a parte mais profunda. Os egípcios chamavam de Ren.

— Ok. Onde eu encontro esse nome secreto?

— Acho que sei. Tem um lugar, com uma corda dourada... Posso levar vocês lá.

Saíram do labirinto. Não havia mais Bidu, e o novelo de lã voltou a ser a jaqueta do início. Ela a vestiu agradecida. Voltaram a mergulhar, ambos ajudando o Fred ferido. Quanto mais profundo chegavam, mais difícil era avançar. Era como nadar num manguezal.

A ausência súbita de resistência fez Marina cair embolando pra frente, quase se empalando com a espada. Os três chegaram a um salão amplo, escuro e solene como uma igreja. O Fred ferido parecia bem melhor, o outro andou hesitante até um fio dourado no centro do salão. Marina o seguiu.

—  Aqui é o lugar mais protegido que achei. Se existe um nome secreto, deve estar por aqui.

— Mauro, pode me ajudar?

Silêncio. Mauro não sabia ou não podia responder. Estava só. Sentou-se e fechou os olhos. — Franja, qual é o seu nome?

Todo o lugar resistia a ela. — Eu te amo, Franja. Por favor, me deixa te ajudar. — Quando abriu os olhos novamente, estava em pé, a mão quase tocando o fio. Temerosa, desceu a mão.

Sua mente disparou, com inúmeras lembranças passando por ela. Desde os hábitos mais bobos aos segredos mais constrangedores, tudo que passara na alma de Fred estava ali, vários filmes acelerados ao mesmo tempo. Como as imagens que parecem mover-se num cinetoscópio, no meio do turbilhão ela encontrou o que procurava.

Caminhou até os dois Franjas e sussurrou o nome no ouvido de cada um deles. Os olhos dos dois arregalaram-se de assombro, e ela foi ejetada do salão escuro. Tudo parecia tremer, e ela teve medo, mas menos do que teria em outro lugar. Aquela era a mente de Franja e ela tinha certeza que ele jamais a machucaria. Foi levada pelas camadas até emergir como um golfinho na superfície.

Que não era mais branca. Agitada, e colorida, com coisas sólidas. Mas a coisa que mais a emocionou foi o som. Era a voz de Luca, lá fora. Podia ver a si mesma, deitada no colchão, e Mauro sentado contra a parede. Podia sentir o quanto Fred estava chocado com o silêncio.

Você quer me pirar, Marina? — Mauro gritava em sua mente. Ela pôs as mãos nos ouvidos mas não adiantou. — Você some por horas! Não responde! Se concentra que eu vou te tirar daí!

Era um alívio abrir os próprios olhos. A primeira coisa que viu foram os rostos. Mauro, Luca. Franja? Franja!

— Funcionou. — Sentia dor no corpo todo, mas valera a pena. Tinha uma ardência desagradável na mão esquerda. Uma faixa escura atravessava a palma, justo onde tocara o fio brilhante. Franja a olhava cheio de ternura.

— Eu pensei que não podia amar você mais do que já amava. Me enganei. Mauro começou a me contar o que vocês fizeram... Espera. — O olhar perdeu o foco. — Tudo aquilo foi verdade?

— Foi. Dentro da sua cabeça, mas sim. – Fred olhou chocado pra Mauro e Marina.

— Então toda a minha vida… Meus piores erros, meus pensamentos mais perversos... vocês viram tudo?

Mauro levantou as mãos. — Só a Marina. Não tinha outro jeito, cara.

— Sim, eu vi. — Fred desviou o rosto muito vermelho, os ombros caídos. Se recompôs e não tinha expressão quando finalmente falou.  

— Estou agradecido. Devo mais que a vida a vocês. — Marina franziu a testa com a súbita formalidade. Olhou pra Mauro e Luca, que também não entenderam.

— Franja, onde você vai?

Fred se levantava com dificuldade, evitando olhá-los nos olhos. — Creio que você não queira mais nada com alguém fraco como eu. Preciso de um tempo para assimilar a ideia.

Ele parou quando sentiu a mão dela em seu braço. Ela o puxou devagar, até seus narizes quase encostarem. — Me deixa perguntar mais uma vez. — falou com o tom de que a resposta exigia uma reflexão cuidadosa. — Aonde você vai sem mim, Franja?

— Mas como… Como? Em nome de tudo o que é sagrado, como você pode ainda me amar? Depois do que você sabe? Eu...— Os lábios dela apenas encostaram. Esperando. Até que ele finalmente voltou a se mover, e Mauro e Luca não foram indiscretos de permanecer ali.  

 


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Notas finais do capítulo

* Na mitologia grega, Ariadne era a princesa que ajudou Teseu a matar o Minotauro. O que ninguém costuma lembrar era que a princesa e o monstro eram meio-irmãos. Penso que a garota ajudou Teseu a derrotá-lo não apenas pelo grego, mas também pelo irmão, que nunca teve culpa do que era ou do que fez. Ninguém merece ser um monstro pra sempre.


* A tradução aproximada das partes cantadas é : "Além do ponto sem retorno...Sem olhares pra trás...Nossos jogos de faz de conta estão no fim..." "Quando o sangue começará a correr? Quando o botão (de flor) adormecido florescerá? Quando as chamas finalmente nos consumirão?" "A ponte foi cruzada, então fique e a assista queimar. Nós passamos o ponto sem retorno."

* Essa música é sensual e poderosa, e foi essa força que Marina cantou pra conseguir soltar Franja da sua prisão auto imposta (e se concentrar em outra coisa; uma pessoa amada gritando de dor no seu ouvido é muito perturbador).

* Sim, parte da cena foi baseada nas "Crônicas dos Kane", de Rick Riordan.

* Quando terminarem esse capítulo, pensem no que era a mente do Fred quando ele estava acordado. Se ele não estivesse quase morto, nem a pau Marina conseguiria lidar com as vozes como lidou. Ela com certeza teria se perdido lá dentro.

* Cinetoscópio foi um dos antecessores do filme moderno, com pequenos filmes em loop e acionado com moedas.

A todos que leram, meus agradecimentos e espero vê-los no próximo capítulo.




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