Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 22
Aqueles que desafiam as chances




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Cássio abriu os olhos, e viu Luca vigiando o casal na cama, e o encarando reprovador. Ok, dormiu em algum ponto depois das cinco, mas tudo correu bem, não foi? Marina parecia bem melhor, e Fred… Bom, ele estava igual, mas esperava que o maluco acordasse em algum ponto dali até o final da semana.

— Levante. Precisamos terminar tudo.

— Vou arrastar esse pilantra fenomenal de volta pro colchão. Acho que ele merece dormir um pouco mais hoje.

O olhar de Luca era indecifrável quando concordou. Olhou mais uma vez, confirmando que todos respiravam antes de sair da frente de Cássio, que arrastava um colchonete velho com um mago roncando como uma serraria.  

***

— Isso é cozido de quê?

— De couve, com o que eu achei na despensa. Tem batatas também.

— Vou falar com o chefe, te demitir do posto de cozinheiro. Tô comendo e ainda não sei que gosto tem.

— Próxima vez invade um mercado gourmet. Aí faço lagosta ao molho. Deixa de frescura e tenta acordar o Fred, quando acabar com aquelas armadilhas. —Primeira vez que conseguiu arrancar um pouco de humor do velho Odin em dias. Sorriu também.

— Ei, já não tá na hora de deixar o sujeito sair da solitária de vez?

— Logo você, Cachorro Louco, pedindo pra aliviar com o Shkreli? — Cássio deu de ombros.

— É um saco passar o dia todo olhando pra ele no meio daquela papelada.

— Sei.  — Luca sorria abertamente agora. — Vou conversar com ele.

***

— Fred, acorda. — Ele estava frio, largado na mesma posição de horas atrás. — Ih, cacete. Fred, responde! Não inventa de morrer agora!

Cássio dava uns tapinhas no rosto dele, sacudia, ele não reagia. Encostou o ouvido no peito dele, nervoso.

Ufa. O barulho tava normal. Ele estava dormindo (ou em coma) mas vivo. Que povo pra dormir se fingindo de morto do inferno! Não dava pra roncar, mexer, falar igual a todo mundo?

— E aí, o Fred acordou?

— Não. Dormindo, acho. Marina, pode me ouvir? — Foi um pouco chocante vê-la se mover tão cedo.

— Mãe?

— Menina, como é bom ouvir sua voz. Sou eu, Cássio. Ué? Você tá chorando? O que tá errado?  — Olhou pra Luca, confuso. O que estava acontecendo? Luca se aproximou também, e desceu da cadeira.

— Não é um pesadelo, né? O mundo acabou mesmo.

— Acabou. Mas nós estamos aqui, Marina. Eu e Cássio. O Fred está do seu lado. — Tomou uma mão dela entre as suas.

Os olhos da garota percorriam o ambiente, tentando absorver a cena. A mão direita segurou com mais força a mão do seu namorado, e estranhou quando ele não respondeu. Olhou pra ele, e ele parecia dormir profundamente, mas estava frio. — O que aconteceu com a gente? Que tubo é esse no meu nariz?

— Você adoeceu. Passou uns dez ou doze dias inconsciente. Fred não saiu do seu lado. Esse tubo... a gente precisava te alimentar por algum lugar. Posso tirar, se quiser. Mauro te salvou. Já pode levantar?

Ela franziu a testa com o esforço inútil. — Não, ainda não. Sinto que fui usada como pista de dança por elefantes.  Desculpem, é que pareceu tão real... Pensei que estava em casa — apressou-se a corrigir. — na minha antiga casa, de férias. Pode tirar essa coisa daí? É muito desconfortável engolir com isso. — Não pôde evitar uma careta ao sentir aquele tubo deslizando de volta. Olhou enternecida o homem ao seu lado — Ele é um teimoso adorável. Nem se protegeu do frio.

Estranho. Não era natural ele dormir tão estático. Ele sempre acabava estendendo a mão ou a abraçando. Devia estar exausto. — Espera… Doze dias? Ele está parado aí há doze dias?

— E nem um banho, só cuidando de você.

Ela olhou com carinho pro homem que parecia saído de algum livro de cavalaria. Então todos os sentidos de “cuidando” vieram à mente e a deixaram vermelha como um tomate. Quando pensava em intimidade com o namorado, não era bem aquilo que queria.

 — Ele me… — Luca confirmou com a cabeça.

— E me… — Era possível ficar mais envergonhada do que já estava?

— Sim, tudo isso mesmo. — replicou Cássio. — Pelo menos você é namorada dele. Agora imagine a minha cara e a de Mauro quando descobrimos que ele fez o mesmo com a gente o tempo que passamos doentes, na primeira semana que passamos a morar aqui. Não consegui olhar pra cara do Fred por um mês inteiro de tanta vergonha.  Vai, pode rir.

Toda a vergonha se dissipou numa gargalhada fraquinha, mas ela ainda se sentiu melhor. Testou o braço, conseguiu movê-lo pra cima. Foi como erguer um lava-louças, mas conseguiu. O deixou cair, cansada. Ok, isso levaria tempo.  Olhou pro Luca, que parecia um tanto decepcionado olhando pro Fred. Agarrava os braços da cadeira como se quisesse estrangular alguém.

— Luca, porque você tá tão tenso?

— Vem uma porção de obsessivos pra cá em dois ou três dias, e acho que uma porção de caçadores de sobreviventes atrás. Precisamos de toda a ajuda possível. Você não faz mais portais?

— Quando eu crio muitas coisas, não consigo abrir portais. Mesmo que eu desfaça tudo, leva semanas pra conseguir um pequeno. Porque acha que eu não vim pra cá? Quanto mais sólidas e permanentes elas são, mais cansativo fica. Como eu posso ajudar?

— Vou pensar em alguma coisa. Não contava que você fosse acordar tão cedo. Assim que estiver pronta pra tentar sentar, chama o Cássio. À noite venho ver o Fred de novo. — Ela acenou com a cabeça. — Eu e o doutor vamos fazer a ronda. Cássio, vê se o Mauro vai comer isso aí e sobe lá pra horta.

— Eu posso entrar?

— Pode. — respondeu Luca. Shkreli afastou a cortina, receoso. Encontrou quatro dos seus anfitriões reunidos numa tenda improvisada de tecido.

— Vim saber se a Marina e o Frederico estavam melhor. Bom lhe ver acordada, senhorita.

— Hum… Obrigada? — Quando o cientista passou a andar solto por aí? Ela confiava nos rapazes, mas ele era outra história. Apesar de tudo que tinha feito, Luca e até o Cas pareciam tratá-lo normalmente.

— Vamos, Doutor. Eu e você precisamos desvendar esse sistema de armadilhas do Fred ainda hoje.

— Luca, eu sei como funciona, posso te explicar se quiser.

— Cássio, leva o doutor com você. Dá uma geral, rega a horta e fica vigiando as câmeras até eu chegar.

— Tranquilo, chefe.

***

Acordou com a dor. Tudo queimava, da garganta ao estômago, e parecia que tinha bebido ácido de bateria. Enrolado de dor no colchão, se perguntava se aquilo era efeito colateral da magia ou se era azarado o bastante pra ter uma porra de úlcera aos dezoito anos.

Ele nunca conseguiria falar com a Ramona naquele ritmo. E quanto mais o tempo passava, menos sabia o que queria dizer a ela. Merda, aquilo doía de verdade. Onde estava aquele javali burro quando precisava dele? Ouviu o interfone ligar com um clique.

— Nimbus? Mauro? Eu sei que vim sem avisar, mas dá pra abrir? Não consigo entrar aí, e está um pouco assustador aqui fora. Alô? Câmbio? Código azul? — Umas pancadinhas no microfone — Como isso liga, meu pai?

Mauro andou até o interfone o mais rápido que pôde. — Espere um minuto, Bóris.  — Após olhar a câmera e ter certeza da segurança, voltou até a porta e a abriu. Dois bichos entraram correndo, com a porta quase fechando neles. Mauro olhou através da porta interna. Bóris e outro gato, tão branco quanto o outro era preto, olhando assustado para os ossos e a carniça ao redor. Luca teria um infarto quando ouvisse a porta interna, mas aquela era uma exceção.

— Graças a Lua! Que lugarzinho caído, hein, mágico mirim? Aquele troço na porta quase queimou meu nariz! Olha, esse camarada aqui disse que vocês o conhecem, mas que sempre saem umas coisas assustadoras daqui e ele nunca conseguiu entrar. Você disse o que, algodãozinho? Cachorro? Que é isso, tem cachorro aqui?

— Não, não tem cachorro, Bóris. Pode sair da minha cabeça? — Olhou de perto o gato branco — Mingau?

Podia jurar que o gato olhou pra ele com um olhar que dizia “Sério? Não me reconheceu?” — É, é você... — Controlou um grunhido. — Olha, fiquem à vontade, mas eu preciso deitar um pouco. Não estou muito bem.

Bóris o farejou de leve enquanto ele se encolhia de novo na cama. O lugar inteiro cheirava a magia, e erguer uma barreira como aquela lá fora sozinho deveria ter transformado o rapaz em churrasco.

— Você não sabe nada mesmo, né João das Neves?

— Do que você está falando?

— Queimação? Gosto de cabo de guarda-chuva?

— Sinto como se tivesse engolido uma fogueira inteira. Acesa.

— Você fez tanta magia que quase consumiu sua energia vital. Podia ter morrido. Quando foi a última vez que comeu?

— Que dia é hoje? — O gato bateu a pata na testa.

— Levanta. Você precisa se alimentar. Pra que lado fica a cozinha nesse lugar?

— Tenho mesmo que levantar agora?

— Vamos te manter nesse plano, depois você se deita e dorme por três dias seguidos se quiser. De pé, não acha que eu vou conseguir te carregar, não é?

— Como está a Ramona? Ela tá bem?

— Ela recebeu sua “mensagem na garrafa” por assim dizer. Não consegui dizer não àqueles olhinhos verdes, e vim saber como você estava. Pediu pra te dizer que sente sua falta.

Guardou a surpresa pra si. O rapaz humano não fazia ideia de quanto poder tinha, ou de que manter tanta coisa acontecendo não era normal. Com um pouco de orientação, ele se tornaria um aliado poderoso. Caminhava ao seu lado, pensando nas possibilidades. Ele não tinha natureza maligna, mas tinha afeto por Ramona, e isso a faria protegê-la. Pra Bóris, isso já era suficiente. Os três chegaram à cozinha, Mauro curvado como um velho.

— Vou pegar algo pra vocês comerem. Aqui, ração de gato.

— Coma primeiro, Érri Potter de araque! Não vim pra te assistir virar carvão!

— Tudo bem, eu como. Isso parece… Sei lá que droga é essa, mas é comida.

Tirou uma tigela, comeu e a encheu de novo com ração pra eles. Bóris estranhou, mas Mingau avançou com avidez. Ok, ele era poderoso, mas tinha o refinamento de um cachorro vira-lata.

— Essa merda demora muito pra passar? Tá vindo uma horda em poucos dias, e preciso ajudar no que puder.

— Vai devagar, ok? Olha, o bolinha de algodão aqui tá perguntando onde tá a humana dele. Ele não conseguiu encontrá-la. — Os ombros de Mauro caíram. A voz estava cheia de pesar quando finalmente falou:

— Não tem um jeito fácil de dizer isso, Mingau. Estão todos mortos. Magali, Joaquim, os pais dela. — Segurou o peito apertado. Céus, será que doeria pra sempre?

Olhou pra trás, viu Mingau congelado, os olhos azuis muito abertos. Bóris se aproximou, com pena. O gato branco recuou, todos os pelos em pé, e disparou em outra direção.

— Mingau! Mingau, volta aqui! — Bóris correu atrás dele. Quando se sentiu um pouco melhor, Mauro voltou a procurar os amigos. Finalmente ouviu os sussurros. Vindos de onde Fred e Marina dormiam. Meu Deus, o que tinha dado errado?


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Notas finais do capítulo

Originalmente seria parte do anterior, mas ficou longo demais e precisei dividi-lo.

No próximo capítulo: O inverno, quero dizer, os obsessivos estão chegando.
(Trocadilho infame, eu sei, mas não pude resistir).

Meus agradecimentos especiais às pessoas que acompanham essa história, e nos veremos no próximo capítulo.



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