A Rainha dos Campos de Centeio escrita por Verniz


Capítulo 3
Livro I - O Livro da Progênie


Notas iniciais do capítulo

Fechando essa primeira tríade...



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O Livro do Nascimento costuma ser o mais polêmico de todos os livros, principalmente no que tange a sua autoria. É sabido que a grande mãe escrevera sobre sua trajetória durante sua passagem por Washington DC, oito meses após o despertar. Porém, pouco desse material pudera ser encontrado. Percebe-se pela escrita, principalmente no transcorrer dos capítulos desse livro em si, que esse compêndio fora escrito por mais de um autor, mas nem nesse ponto é possível afirmar com certeza. Sua origem e infância é verdadeira, mas a descrição de parte de sua adolescência e vida adulta, principalmente em certas passagens não podem ser precisadas. O que se sabe é que Fatimah tivera uma vida mundana até o momento da abdicação, quando o Altíssimo a tocara e a fizera entender os motivos de sua existência. Por isso, enquanto são contados os trechos de sua vida antes do momento de ruptura, Fatimah é nomeada apenas como Sarah, ou Sarah Romano.

 

1. A Escolhida

1Em uma tarde de dezembro nascera, em um hospital localizado ao centro da cidade sagrada de Manaus, a criança iluminada. 2Filha de mãe católica, a escolhida jamais conhecera o seu pai terreno, já que, em sua grandiosidade, o Altíssimo a poupara de um futuro infeliz, tendo em vista que o seu progenitor fora um alcoólatra que morrera na calçada de um bar, dois meses antes do seu nascimento. 3Isso ocorrera trinta e dois anos antes do seu despertar, quando a terra ainda girava normalmente em seu eixo, e a vida seguia os caminhos estipulados pelo Divino, por mais que a sociedade já estivesse proliferada de ganância e miséria.

4Sua mãe, Elizabeth Romano, batizara sua filha com o nome de Sarah Romano, assim como fora sua avó. 5Nessa época, assim era conhecida a grande mãe, mas isso fora muito antes de sua abdicação. 6Descendente em parte de indígenas, Sarah carregava em si traços oriundos do nordeste do Brasil, por conta dos genes de seu pai. 7Em suas veias, também corria sangue africano, herança longínqua de parte da família de sua genitora, outrora nascidos na Bahia, mas com laços estreitos com a Nigéria e Gana.

8Essa mistura não só a fizera uma cidadã do mundo, identificada com as mais diversas culturas e povos, como também fizera dela uma bela mulher, que a todos conquistava com o seu carisma. 9Os cabelos, desde criança eram encaracolados e negros, e Elizabeth costumava prendê-los para cima, em uma espécie de coque africano. 10Os olhos eram como duas pérolas enegrecidas, de um brilho potente que nunca se esvaía. 11Os lábios carnudos tracejavam-se perfeitamente com a pele morena, que brilhava ante a luz do sol. 12Inteligente e esperta a seu modo, fora uma criança feliz, frequentara a Igreja Católica, e crescera sob os preceitos de Cristo.

13Bendito seja o Altíssimo, que em sua integridade e bonança, escolhera as terras brasileiras para o nascimento de sua filha, diferentemente do que ocorrera com os dois grandes pais. 14Fora apenas por ter surgido no Brasil, que a grande mãe conseguira adquirir o discernimento, justamente por estar distante de todos os conflitos políticos ocorridos a época na região santa do Oriente Médio. 15Se assim não fosse, talvez os planos do Divino acabassem deturpando-se, como ocorrera com muitos homens de boa intenção e coração, que acabaram se envenenando ante o ódio irracional e o poder que dele brotara.

16Mas a infância de Sarah não lhe reservara grandiosidades como em sua vida adulta. 17Por sua família ter posses, graças a sua mãe, dona de uma boutique bem quista, a pequena escolhida pudera estudar em boas escolas, tendo uma educação que a levara a decidir logo cedo um ofício para sua vida. 18Enquanto ainda estava no primário, afirmara com veemência que um dia seria professora. 19Exatamente como ela profetizara, ocorrera.

 

2. Pastora de mentes

1Valendo-se de todo o seu esforço e determinação, conseguira ingressar na principal universidade do estado do Amazonas, A UFAM, escolhendo o curso de Letras, já que sempre fora uma curiosa a respeito das línguas mundanas. 2A época, com dezoito anos, já falava inglês fluentemente, assim como o espanhol e, obviamente, sua língua nativa, o português. 3Nesse mesmo período, enamorara-se com Heitor, um rapaz perdido que quase a tirara de seu caminho sagrado. 4Heitor estudava História, possuía visões políticas deturpadas e carregava em seu coração diversos preconceitos, principalmente religiosos. 5Falecera um ano depois, em um claro recado do Divino de que todo sacrifício é recompensado, e que nada escapa de seus olhos e nem de suas mãos.

6Sarah Romano tornara-se, portanto, uma pastora de mentes, estudando profundamente todas as nuanças e os caminhos percorridos pela Língua Portuguesa, compreendendo-a e captando-a, para que pudesse repassar futuramente para os seus alunos, sua ovelhas. 7Estava reservado para ela, um campo muito mais amplo para o seu pastoreio, que deixaria as mentes propriamente ditas, para adentrar em muitos corações.

8Provara ter por demais talento, destacando-se logo em seu primeiro ano na faculdade. Estava afastada dos preceitos católicos, tendo tido sua mente corrompida pela tecnologia terrena, e a velocidade das informações. 9Sarah era carne como nós, por isso também passível de erros e deslizes, passível de ser tomada por desejos irracionais, por vontades que partem de nosso coração sem que precisemos as consequências ante o nosso pai. 10Uma vez, algum tempo depois, a grande mãe disse a seus partidários, em uma reunião um pouco antes de sua partida para o Paquistão: “Antes de despertar, antes de compreender a grandiosidade de minha missão, eu considerava que as pequenas coisas, as mais mundanas entre as mundanas, eram na verdade enormes. 11Hoje eu sei que apenas o Altíssimo é enorme e que, ante ele, tudo se curva e se apequena”.

12Conta-se que, em uma tarde chuvosa, quando Sarah e Heitor deixavam a universidade, prontos para retornar as suas residências, o casal fora abordado por dois homens, que se utilizavam de uma motocicleta para realizar delitos. 13Após ser anunciado o assalto, Heitor, temeroso em ter de abrir mão de seus bens materiais, acabara reagindo, tentando impedir que o roubo ocorresse. 14De arma em punho, um dos bandidos acabara então disparando três vezes contra o enamorado de Sarah Romano, matando-o no mesmo instante, e fugindo sem levar nada. 15Coberta de sangue, a escolhida tentara salvá-lo, mas aquela era a vontade do pai, e nada ela poderia fazer para modificá-la. 16Fazia parte de seu crescimento e engrandecimento. 17Precisava ter ocorrido.

 

3. A serpente do jardim de pedras

1“Já se passaram oito meses, amiga. 2Eu sei o quanto foi abrupto, doloroso, pois foi assim para todos nós. 3Só que eu acho que já está na hora de seguir em frente, de reagir, de tentar buscar uma nova vida. 4Eu falei para todo mundo que você iria, por favor, não me decepcione”. 5A língua de Amanda saía de sua boca carregada de veneno, veneno esse que tinha por objetivo ser despejado em sua totalidade sobre Sarah. 6Sua dita amiga, tentava, após oito meses da morte de Heitor, fazer com que Romano retornasse ao que ela considerava como vida normal. 7Em toda essa normalidade estava incluso saídas noturnas para bares, sexo sem compromisso com desconhecidos, além de um conformismo com os estudos e a vida. 8Pois era exatamente assim que Amanda Hai enxergava sua existência.

9“Eu não sei, Amanda”. 10Os olhos da escolhida brilhavam, e sua negritude parecia adentrar as almas de quem a encarava. 11“Hoje mesmo estive no cemitério, e você sabe que eu sempre fico pra baixo quando passo por lá. Ainda não é fácil pra mim, não tô conseguindo encarar as coisas como você”. 12As duas estavam na casa da succubus reptiliana, a residência dos Hai, um casal de médicos que em nada tinham culpa pela filha impura que haviam gerado.

13Por mais que a filha da luz persistisse, a língua envenenada de Amanda lhe atingia com palavras tão afiadas quanto canivetes. 14“Todos que vão estar lá são seus amigos. Só estamos querendo te ajudar. Vamos lá, Sarita”. 15E então sua voz se adocicava, e a succubus utilizava sua forma de se expressar como arma de convencimento. 16Todo o seu corpo se movia como o chocalho de uma cascavel. 17“Tá decidido, você vai e ponto final”.

18Amanda Hai tinha ascendência asiática, já que aparentemente o seu avô era chinês. 19Era uma jovem e bela moça de pele alva, olhos repuxados e cabelos negros e lisos. 20Fluente em mandarim, cursava Língua Japonesa na mesma universidade de Sarah, e por essas infelizes coincidências as duas acabaram se tornando amigas. 21Porém, suas mentes corriam em dois rios paralelos, que jamais se encontraram, nem mesmo em suas nascentes. 22Por mais que se desviasse e tropeçasse em certos momentos, a escolhida tinha em sua consciência o desenho real do muro que existe entre o que é certo e o que é errado. 23Mas isso de forma alguma acontecia com Amanda.

24Usuária de drogas desde que entrara em contato, tão logo havia adentrado a universidade, Hai era uma moça desleixada, que não costumava respeitar os limites alheios e que nunca seguira os preceitos do Altíssimo. 25A maior prova disso fora o seu depoimento para a polícia, tempos depois, afirmando acreditar que a filha da luz havia enlouquecido, simplesmente por ter escolhido seguir o caminho previamente determinado pelo pai. 26Não só fora contra a sua demanda, como também refutara publicamente as benfeitoras atitudes da grande mãe. 27Gabriel, a respeito disso, dissera em cárcere: “Amaldiçoada pelo pai e pela grande mãe seja Amanda Hai, pois somente as forças ocultas podem explicar o comportamento vil dessa criatura mundana. 28Sejam dadas graças ao Altíssimo por não ter permitido que Fatimah desviasse de seu caminho, por mais que Amanda tenha tentado diversas vezes desvirtuá-la”.

29Quão sábio sempre se mostrara Gabriel! 30Nos meses que se seguiram ao funesto convite, Sarah fora contaminada pelas presas e garras de Hai, e durante esse período, preenchera o vazio que constava em seu peito com amores passageiros, bebidas alcoólicas e festas durante os finais de semana. 31Por esse comportamento, perdera um período inteiro de sua faculdade, mas por sua grandiosidade, antes mesmo do despertar, Romano decidira abandonar essa vida e voltar a focar em seus estudos, em seu pastoreio de mentes. 32Fora aprovada com méritos nas disciplinas que havia perdido, conseguindo assim alcançar a reta final de sua estadia na universidade sem maiores problemas.

33Amanda Hai seguira lhe dando o bote, puxando-a para a vil vida terrena em alguns finais de semana, porém em uma frequência muito menor. 34Parafraseando Donald Klein, o segundo mensageiro de Fatimah: “Os prazeres mundanos nos satisfazem por segundos, os divinos por toda a eternidade. 35Fatimah, nossa grande mãe, aprendera isso na prática, e por ter visto e conhecido de perto os dois mundos, o terreno e o espiritual, só ela poderá plenamente nos conduzir ao nirvana. 36Basta que possamos compreender o momento de abdicar”.

37Amanda Hai desaparecera após o seu segundo depoimento a polícia brasileira, antes que pudesse ser interrogada por forças de inteligência internacionais. 38Nada se sabe sobre o seu paradeiro, alguns acreditam que tenha fugido, se arrependido de suas palavras e encontrado a redenção. 39Outros preferem pensar que o seu destino fora muito mais funesto, e que as sombras da justiça talvez a tenham feito pagar por suas injúrias ante a grande mãe.

 

4. Os primeiros sinais

1Ó grande mãe, que tudo vê e tudo sabe! Olhai por todos nós!

2Acontecera no último ano de faculdade, quando os pilares da mente mundana da escolhida ainda não haviam sido derrubados, e as rígidas colunas da sabedoria divina não detinham espaço para serem construídas sobre os seus funestos escombros. 3Ela já estava dando aula, utilizando-se de todo o seu conhecimento e transportando parte dele para as ávidas mentes pueris. 4Durante o seu período de estudos havia decidido aprender a língua francesa, o que fora feito sem muitas dificuldades, já que sua mente sempre fora um receptáculo de informações e notoriedades. 5Mas nesse período em particular interessara-se bastante pela sonoridade da língua árabe, começando a estudá-la e se apaixonando por sua beleza. 6Tempos depois, essa língua passara a ser utilizada em todos os diálogos com a grande mãe. 7Saudemos pois a língua sagrada, aquela que saíra dos poderosos lábios da escolhida, adentrando e acalentando os nossos corações!

8Fora em uma noite quente de verão, após um dia de chuvas torrenciais durante a tarde, em uma manifestação climática típica da região amazônica, que Sarah Romano recebera em seus sonhos a visita de um mensageiro enviado pelo Altíssimo. 9Conta-se que a escolhida se vira em um campo de centeio, sem que pudesse observar os seus limites, de tão grande que ele era. 10Tinha o corpo coberto por um manto de lã, tão branco quanto às nuvens do céu. 11Sobre a cabeça repousava uma tiara de flores, pétalas de rosas que adornavam os seus graciosos cabelos. 12Sem compreender ao certo o que ocorria, 13Romano apenas caminhara pelo campo, guiada por uma força incompreensível até então.

14Seguira e seguira até encontrar um pequeno morro gramado, que a levava a um nível inferior, onde belíssimas sequoias se uniam para formar um bosque magnânimo. 15O sol brilhava com toda a intensidade, mas ainda assim a temperatura era amena. 16Sorrindo, Sarah se dirigira de encontro às árvores, sentindo a rugosidade de seus troncos, além dos aromas inebriantes que a permeavam. 17Tocara em um dos cipós, e ouvira um barulho animalesco, porém não se assustara. 18Da árvore onde estava descera um pequeno macaquinho, de pele acinzentada e olhos verdes, como se fossem duas bolas de gude. 19Mas o símio não era um simples animal, sua aparência na verdade era fantástica ante os olhos humanos.

20Tinha orelhas de lobo, pontudas, alertas. 21As mãos eram humanas, como a das crianças, e os pés eram revestidos por uma couraça esverdeada, muito semelhante a dos répteis. 22Maravilhada, a filha da luz não conseguira parar de olhar para a criatura, que além de tudo isso possuía também feições como a dos homens, repletas de expressões, apesar do rosto peludo. 23Notando a estupefação de Sarah, a pequena criatura, que não deveria ter mais do que cinquenta centímetros, começara a falar:

24“Você sabe o motivo de estar aqui?” E Romano nada dissera, já que realmente não saberia como responder a pergunta. 25O macaquinho prosseguiu: “Meu nome é Adbner, e minha aparência real não pode ser compreendida, por isso surjo assim, transmutado ante vós. 26É chegada a hora da abdicação, doce Sarah. 27É chegado o momento de deixar tudo para trás. 28Logo você compreenderá minhas palavras, mas precisa se preparar para o que está por vir”. 29Adbner subira rapidamente pelo mesmo cipó em que descera, e antes de desaparecer na mata, deixara uma última mensagem: “Não há amigos, não há família. 30O amor que sentes na terra não é real, apenas uma pequena dose do real amor, ainda reservado a você. 31Quando estiveres perdida, e quando achares que perdeu tudo, lembre-se que nunca estarás sozinha. 32Há um paraíso acima de você”. 33E então a criatura se embrenhara, pulando de árvore em árvore, até sumir do campo de visão de Sarah. 34Conta-se que ela acordara sobressaltada logo depois, respirando de forma dispneica. 35Conta-se também que nos sete dias após essa revelação, Romano não conseguira dormir.

36Alguns meses depois, às vésperas da formatura de Sarah Romano, diz-se que Adbner retornara a aparecer nos sonhos da escolhida, dessa vez montado sobre um bode de pelo marrom. 37Os chifres do cornífero enrolavam-se para trás, chegando a medir quase dois metros. 38Ambos estavam no campo de centeio, mas dessa vez era noite, e o bosque de sequoias não estava mais lá. 39Olhando para Sarah, a animalesca criatura expandira os pulmões, falando como se fora um grande orador, sua voz sempre firme e lúcida. 40“Veja pois quem retornara a meus domínios!” E o bode erguera as patas dianteiras, como um alazão o faria, relinchando logo depois. 41“O que queres, doce jovem?” A escolhida ainda não sabia o que dizer, estava estupefata, tamanha a realidade do sonho em que se encontrava. 42O macaquinho prosseguira: “Não temas, pois estou aqui para ajudá-la e confortá-la e não para lhe fazer mal. 43Esse nobre hipoformo ao qual cavalgo chama-se Guilfo, aquele que habita o campo de centeio”.

44Suas mãos de criança se ergueram para o céu enegrecido. 45“Bela jovem, ainda não consegues ver as razões por estar aqui? 46Ainda não consegue enxergar os motivos de sua existência? 47Não percebes o quanto és importante? 48Retorna ao plano terreno, reflita sobre isso, e quando finalmente entenderes, perceberás a grandiosidade da verdade que cerca as palavras. 49Mas não as palavras que tu estudas com tanto afinco, e sim as palavras oriundas do desconhecido. 50A palavra nunca morre e nem nunca morrerá! 51E jamais esqueça de que há um paraíso acima de você!”.

52Sarah acordara mais uma vez sobressaltada, sem conseguir compreender a plenitude da mensagem do Altíssimo. 53Diz-se que Romano ficara mais sete dias sem conseguir dormir após o ocorrido, só conseguindo deixar de temer e compreendendo realmente as palavras da criaturinha após o despertar. 54Aqueles haviam sido os dois primeiros sinais da grandiosidade que ainda estava por vir.

 

5. A passagem

1Os que vivenciaram não se ludibriaram, pois toda experiência parte de um pressuposto. 2Condenados sejam todos aqueles que não conseguiram enxergar a enormidade da mãe, pois os que com ela conviveram e mesmo assim a repudiaram, não merecem a morada ao lado do Altíssimo e da escolhida por ele. 3Que os dois grandes pais enviem toda a sua fúria ante os que a caluniaram, chamando-a de louca, pois a loucura está em não enxergar a verdade, que nada mais é do que a palavra de Fatimah, a misericordiosa, a libertadora!

4Quando ainda era conhecida pelo nome de Sarah, a iluminada precisara enfrentar muitas dores, dores essas que expandiram sua aura, deixando-a mais forte e mais preparada para a missão que cada vez mais se aproximava. 5Ela ainda residia na cidade sagrada de Manaus, a capital do grande estado do Amazonas, uma enorme porção de terra, rios doces e mata virgem, localizado na região da Amazônia brasileira. 6Havia terminado a faculdade de Letras em Língua Portuguesa fazia pouco tempo, e iniciara sua carreira na docência a menos de seis meses.

7Enfrentara firmemente a perda de Heitor, um espírito enegrecido, que se envolvera com ela enquanto a escolhida ainda era discente. 8Enfrentara também as influências da serpente Amanda Hai, que tentara por diversas vezes colocar outros espíritos enegrecidos no caminho de Sarah, mas a iluminada refutara a todos, não se enlaçando com nenhum deles. 9O amor só tocara o seu coração novamente quando esta já estava um pouco mais madura, e os meandros do espírito já começavam a pulsar dentro dela, aos exatos vinte e três anos.

10Marcelo Bonan se formara em Geografia cinco anos antes de Romano, e na época estava com vinte e nove. 11Os dois conheceram-se em uma escola localizada na zona oeste da cidade, e frequentada por uma grande quantidade de crianças e adolescentes que ali residiam. 12Como dois bons professores, logo encontraram diversos pontos em comum, peças de suas trajetórias que, por vontade do Divino até aquele momento ainda não haviam se encaixado. 13Bonan era uma boa pessoa, de família judaica, o geógrafo tinha um pensamento aberto em relação a religiosidade, e considerava a fé muito mais importante do que propriamente o templo. 14Sua pele era branca, mas o sangue libanês há muito já havia se misturado com o brasileiro, quando, na década de cinquenta, sua família imigrara para o estado de Goiás.

15Seus cabelos eram negros e sua inteligência poente. 16Os olhos eram levemente semicerrados e a postura denotava classe sem que necessariamente ele parecesse pedante. 17Seguia os preceitos do Altíssimo, por mais que não os compreendesse muito bem. 18Fora direcionado a vida de Sarah Romano, e dela seria companheiro até o dia em que a escolhida fizera a abdicação. 19O romance nascera puro, de uma amizade que se expandira, transformando-se em um profundo respeito e exorbitante amor. 20Casaram-se então três anos depois, em uma capela próxima a escola em que se conheceram. Apesar de viverem em berços de posses, a cerimônia fora simples, rodeando-os apenas de amigos e familiares mais próximos. 21Com a bênção de um padre e um rabino, o matrimônio fora abençoado pelos céus.

22Se mudaram para um apartamento confortável, vivenciando os primeiros meses de matrimônio com pujança e fulgor. 23Certa noite, contam os mais próximos, Sarah recebera uma ligação, no início da madrugada. 24Sua mãe havia passado muito mal e estava internada em um pronto socorro. 25Temerosa, correra até o local, acompanhada de Bonan, seu fiel e justo esposo. 26Receberam então a notícia de que um tumor, até então desconhecido por todos, havia sido encontrado em Elizabeth, e por conta disso ela precisaria iniciar imediatamente um tratamento intensivo.

27Agarrara-se a sua fé, em um momento de peregrinação tão profundo que até mesmo os céus se entristeceram, chorando uma chuva torrencial que assolara a cidade durante a semana. 28Mas às vezes nossa mente mundana não consegue compreender os planos do Divino, que de uma forma ou de outra está sempre tentando nos levar para o caminho correto, não importa quais sacrifícios precisem ser feitos. 29E em uma tarde de sábado, Sarah precisara vivenciar mais um. Elizabeth Romano falecera na UTI do mesmo hospital em que fora internada, não resistindo à metástase do câncer recém-descoberto.

30Sarah entrara em cólera, não se conformara, e chegara inclusive a duvidar dos desejos do Altíssimo, titubeando ante sua fé. 31Ainda era humana, ainda estava muito ligada as coisas terrenas, mas Bonan, demonstrando mais uma vez seu companheirismo, não deixara sua esposa esmorecer, apoiando-a sempre e ajudando-a a superar essa grande perda. 32Sarah não compreendia a época que apenas afastando-se em definitivo da mãe, ela poderia entrar em contato com sua missão, que ainda lhe seria apresentada. 33Se não fosse o sacrifício, todos nós estaríamos condenados, pois talvez o despertar não tivesse ocorrido.

34Marcelo Bonan exilara a si próprio após o início da demanda de Fatimah. Alguns acreditam que está na Síria, outros que partira para a Ásia, com o objetivo de levar a palavra até os pontos mais longínquos da terra. 35Outros acreditam que tirara a própria vida, realizando em júbilo um grande sacrifício, permitindo assim que a grande mãe seguisse sua missão em paz. 36De toda forma, ao seu espírito estão reservadas as melhores porções de pão e mel no banquete eterno do paraíso.

 

6. O garoto que vendia doces

1O Altíssimo às vezes se manifesta de forma simples, porém ainda assim, em todo a sua simplicidade, geralmente não conseguimos perceber sua influência, que vai desde o ar que respiramos, ao último átomo que forma nossa matéria. 2Certa vez, quando ainda estava com trinta anos, dois anos antes do grande despertar, Sarah Romano, a filha da luz, a enviada pelos grandes pais, estava sentada na mesa de um restaurante, no campus universitário onde passara a lecionar. 3Comia um sanduíche natural enquanto lia um livro de Linguística aplicada, quando recebera uma visita inesperada.

4“Olá, professora, gostaria de comprar um doce?”. 5Era um rapaz esguio, de rosto longilíneo, na casa dos vinte e dois anos. 6Ele vendia docinhos, e assim como muitos outros universitários, Sarah imaginara que o rapaz fazia aquilo para arrecadar fundos para a sua formatura. 7Sorrindo simpaticamente, Romano respondera, já se dirigindo a bolsa em busca de moedas: “Sim, eu gostaria”. 8O jovem a cumprimentara amistosamente, e seus olhos brilharam. 9“Muito obrigado, professora. 10Se não for muita indiscrição, eu poderia lhe fazer uma pergunta?”. 11Erguendo uma das sobrancelhas, Sarah respondera: “Claro, pode sim”.

12“Alguma vez a senhora já sentiu um vazio em seu interior. Um buraco tão grande que mais parecia estar sugando toda a luz que reside dentro de nós?”. 13Intrigada com o questionamento, Romano não conseguira deixar de lembrar-se da perda da mãe, ainda recente em sua mente e coração, apesar do tempo que passara. 14“Sim, eu já senti. 15Me perdi um pouco por conta disso, e admito que cheguei a ter vontade de jogar tudo para o alto. 16Mas qual o motivo dessa pergunta, está com algum problema?”. 17A alegria no rosto do vendedor ambulante não se extinguira. 18“Todos nós estamos. 19E aqui estou falando da humanidade, professora, toda ela. 20Os homens destroem, mentem e corrompem, não parece haver nada mais além. 21O que acontece se toda a luz da humanidade for sugada por esse vazio que nós mesmos criamos? 22O que acontece, professora?”.

23Romano refletira por alguns instantes, sentindo o seu coração se aquecer pelas palavras do jovem vendedor. 24O que ele dizia era a mais pura verdade, mas até aquele momento sua mente jamais havia se aberto de tal maneira. 25Após pensar, soubera exatamente o que dizer. 26“Acho que já chegamos ao estágio de estarmos todos perdidos, meu rapaz, com vontade de jogar tudo para o alto e desistirmos de nós mesmos. 27Talvez alguns de nós inclusive já tenham feito isso. 28Mas acho que ainda há salvação, para todos. 29Prefiro acreditar que o homem possa ter uma segunda chance, encontrando assim uma forma de sanar os próprios erros. 30Mas para isso, muito coisa ainda precisa mudar”.

31O garoto recebera as moedas da mão de Sarah, entregando a ela o doce de chocolate e avelã. 32Dissera então uma última vez antes de sair: “Está na hora da renovação, professora. 33Está na hora de alguém ensinar ao homem como se redimir por seus erros”. 34Exultante, o garoto partira para nunca mais voltar, pois a grande mãe jamais o encontrara de novo. 35Aquelas palavras cativaram morada na mente de Sarah Romano, e tiveram inigualável importância, dois anos depois, quando as utilizara para se convencer de que precisava seguir o caminho estipulado pelo Altíssimo.

36Isso ocorrera na exata época em que conhecera Gabriel.


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Notas finais do capítulo

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