9 Zonas escrita por Cas Hunt


Capítulo 7
Inimigas




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Esse lugar é confuso. Falam as regras, mas não como aqui funciona, quais seus objetivos ou como deve prosseguir nos únicos momentos vagos que nos permitem durante a noite: as quatro horas antecedentes ao horário de recolher.

Temos um cronograma rigoroso contendo estudo á tarde acirrado de todos os pontos frágeis do corpo, a estrutura dos ossos, a força de impacto de cada soco, chute e qualquer coisa semelhante que possa nos ajudar a sermos mais eficientes com um golpe do que pessoas normais seriam com dez ou doze.

Em plena madrugada —refiro-me ao intervalo de três às cinco da manhã — o sargento Thurn nos desperta a qualquer segundo gritando para que coloquemos as roupas e marchemos ao redor da construção com ou sem máscara de proteção, ou nos pede para fazer números absurdos de flexões e voltar a dormir logo em seguida. É algo frustrante. Seis horas temos o café da manhã e ás sete em ponto devemos estar no campo de areia dentro do Complexo para mini competições corpo a corpo monitoradas pelo comandante Yun.

Sento-me na mesma mesa um pouco afastada dos outros assim como Jugen. Ele realmente parece desfrutar do meu temperamento explosivo e falta de empatia para com ele.

—Por que nosso uniforme é verde? — Jugen aponta minhas roupas com tom musgo.

—Acho que uma contagem de pontos — dou de ombros observando ao redor alguns com uniformes verdes, outros com azul e uns poucos com amarelo queimado — Os de azul foram os últimos a chegar.

—Então estamos numa boa posição?

Olho a garota musculosa e seu parceiro, ambos com uniformes amarelo-queimado.

—Não. Só estaremos seguros se usarmos aquele.

Aponto as costas dela viradas para mim. Jugen vira na direção da mesma e por acidente troca olhar com a garota. Por reflexo desvio a atenção para a nuca do parceiro ao lado dela percebendo logo que fora uma péssima ideia pois, assim que a olho outra vez, ela está fazendo uma careta ameaçadora na minha direção.

Parece que tenho um ímã especial. As piores pessoas possíveis me odeiam por pura intuição ou uma palavra descuidada minha ou historias ao meu respeito. Mas me odiar por causa de um olhar? Essa é novidade.

Deixo a gororoba alaranjada de lado sabendo que a qualquer segundo a ciumenta musculosa vai vir na minha direção com o perfeito intuito de matar. Jugen observa ela levantar de seu banco, fuzilando-me para sentar-se logo em seguida desferindo uma série de palavrões.

Ergo as sobrancelhas. Já sei que amanhã na competição corpo a corpo ela vai insistir em lutar comigo e me deixar dolorida de formas que suspeito serem aprovadas por aqui. Pego minha tigela de volta e flagro Jugen me encarando.

—Que foi?

—Ela vinha te dar uma surra e você só afastou o prato?

—Briga em cima de comida sempre é um desastre.

Jugen solta uma leve risada. Por algum motivo fico hipnotizada pelo som, pela forma como seus lábios erguem-se sobre os dentes branco e alinhando e o canto dos olhos dele se repuxam. Balanço a cabeça soterrando com todas as forças qualquer sinal de compaixão pelo filho do ditador. Mas e se ele não for o filho do ditador? E se for só mais um mimado rico?

—Ei. Terra chamando Alay — Jugen balança a colher na minha frente — Melhor irmos para o terceiro andar. Já vai dar uma e meia.

Pisco saindo do transe.

—Quer repassar alguns pontos? — minha voz parece macia demais. Dou uma tossida e repito a completo a pergunta — Sobre a aula de ontem, claro.

—Ahan — Jugen arrasta sua tigela pela mesa até o centro assim como eu.

Acompanho seu passo mesmo que suas pernas sejam mais longas e minha cabeça bata em seu ombro. Não vou mentir, era mais atraída pelos caras altos do acampamento o que torna minha mente nebulosa com respeito á Jugen. Ele para positivo, controlado e ao mesmo tempo esperto. Não o julgaria como o filho de um nojento no poder do país, ele mais parece um dos garotos da Zona 6.

Tenho certeza que a general arrancaria minha cabeça se eu estivesse perdendo tempo com alguém assim ao invés de pessoas realmente importantes. Sinto uma pontinha de incerteza sobre diversos fatores até ignora-la totalmente e repassar minha missão: Encontrar o filho do ditador. Fazê-lo confiar em mim. Descobrir sobre os soros.

Olhando para Jugen, sinto um mínimo de pena ao pensar na última parte. Matá-lo assim que possível.

***

Sentados em cadeiras de frente para a tenente Hale mencionar — tendo como cobaia uma pobre alma de olhos esbugalhados — cada ponto sensível próximo a cabeça diferenciando os mortais dos inofensivos até os mais dolorosos me faz viajar até Lion.

O que senti por Jugen, momentos antes de entrar na sala, a leve pontada de constrangimento que me fez passar por ele e sentar na cadeira da frente me incomoda. Sei o que sinto por Lion que resume basicamente tudo o que eu não deveria sentir por Jugen, ainda mais se ele é meu alvo.

Praguejo algumas vezes. É a pior missão que já tive. Penso em todos o meu estoque de palavrões terríveis concentrando-me neles para tirar a cabeça da minha própria cabeça.

A aula termina e a tenente observa em silencio cada um sair de sua sala. Alguns ficam tensos, outros relaxam os ombros tentando passar despercebidos. Eu devolvo seu olhar até atravessar a porta.

***

Tenho problemas com o sono agora que Lion não está mais por perto. Desde a morte de Danny não consigo mais dormir sozinha sem ter uma boa porção de pesadelos me acompanhando. E sabendo que vou ter pesadelos não me deixa mais convidativa á minha cama no dormitório.

Estou deitada, mais cedo do que os outros os quais exploram os túneis do local. Jugen fez um amigo na aula em que sentei na frente e parece estar desenvolvendo sua habilidade desconhecida de socializar.

Deveria estar com ele. Sei que devia. É minha missão grudar ao lado dele e não sair até ter tudo de que precisamos e ainda acabar com a fonte abalando o ditador a ponto de deixa-lo propício á um ataque. Não me contaram isso, claro, mas não sou burra. Por qual outra razão irão o querer morto?

Fecho os olhos após me revirar pela sétima vez na cama.

Meu sonho é confuso. Sinto que estou correndo e caindo ao mesmo tempo, como estivesse na decida de um morro muito íngreme prestes a levar uma queda porém nunca caindo, uma espera angustiante e interminável. Estou fugindo de alguma coisa. Do que estou fugindo?

Viro para trás encontrando Danny, a boca aberta, os cabelos loiros sujos de sangue e os olhos azuis vazios e sem vida. Ela está quase me alcançando, os braços abertos como que presa em um grito silencioso.

Dou um salto da cama agradecendo pelo sono ter sido breve. Levo a mão até o pescoço buscando o cordão de Lion conformando-me com um pedacinho dele que ainda trago comigo. Engulo o seco.

O teto alto e escuro do dormitório é iluminado pelas longas janelas em arco trancadas com vidro resistente e grades do lado de dentro. Encaro-as erguendo o corpo e imaginando que esse lugar mais parece uma prisão do que um centro militar de treinamento.

Passo a mão pelos olhos ainda observando a lua minguante no céu sem nuvens. Engulo o seco ainda pensando na imagem de Danny, seu corpo morto sangrando por diversos poros. Não me admiro de ter pesadelo justo com isso. Ela morreu por minha culpa, afinal.

Jogo as pernas para fora da cama buscando as botas no escuro. Amarro os cadarços, prendo o cabelo com um elástico qualquer e visto a jaqueta esverdeada. Fui a vigésima segunda a chegar naquela corrida sendo superada apenas por Jugen e a garota de cabelo azul. Ela ganhou um traje amarelo-queimado. Contei e os dez últimos a chegar ganharam o uniforme azulado. Não parecem confortáveis ao vesti-los.

Deve estar perto das duas da manhã. Levanto-me desviando na direção da porta tentando ignorar a sensação de culpa que me corrói todos os dias há três anos. Contaram-me que a dor nunca some, mas diminui. Que irônico. Com o passar do tempo só parece aumentar o peso de não vê-la crescer junto comigo.

Prossigo por dois túneis chegando até as escadas que levam ao primeiro andar repensando sobre cada músculo do meu corpo. Estou exausta, isso é fato, contudo não parece ser insuportável.

Ponho um pé no segundo degrau antes de sentir um puxão no ombro. Sou lançada de costas no chão, um movimento que tira o ar de meus pulmões. Suspeito que deve ter me provocado algum som pois a mesma mão que me puxou tampa minha boca.

—Olha pra mim. Ei. Ei! — a voz feminina é delicada demais para alguém que eu conheça aqui. Pico tentando eliminar os pontos pretos na minha visão encontrando a musculosa de traje amarelo queimado. Ela dá batidinhas na minha bochecha — Olha só mais uma vez pro meu namorado e eu te estrangulo, entendeu? Não ligo pra essas regras idiotas, ninguém ligaria pro corpo de catadora de lixo.

Arregalo os olhos. Como ela sabia sobre minha história inventada? Como sabia que eu tinha acordado? Sinto a parte superior do meu tronco presa pelo peso dela e logo sorrio para o nada agradecendo pelos anos treinando com aqueles trapaceiros no acampamento.

É fácil erguer o quadril e lançar a garota com um impulso dos braços por cima da minha cabeça. Viro-me com velocidade avançando para suas costas despreparadas e envolvendo meus braços ao redor de seu pescoço enquanto meus joelhos flexionam-se para a frente prendendo meus pés na parte interna de suas cochas.

—Encosta em mim só mais uma vez...

Deixo a ameaça pairando no ar ao escutar passos pesados descendo as escadas. Empurro o corpo da musculosa para longe de mim e piso o mais delicadamente possível na direção do dormitório outra vez.

—Senhorita Kira — a voz de Glok soa mansa nas minhas costas — Seis horas no poço.

—Senhor...

—Doze horas.

—Sargento — ela sibila. Paro meus passos ruidosos pisando mansamente enquanto as vozes deles ecoam pelo túnel escuro —Eu apenas vim impedir minha colega de burlar o toque de recolher!

—Mesmo? E onde ela está?

—Fugiu pelo corredor, se... Sargento.

—E o que está esperando? Vá atrás dela! Traga-a pra mim e ficarei satisfeito em punir a ela e não você.

Minha deixa para avançar mais rápido outra vez. Posso escutar as pisadas estridentes e rápidas da tal Kira. Entro no dormitório bagunçando o cabelo e desamarrando as botas enfiando-as debaixo da cama conforme jogo a jaqueta na cabeceira e deito no colchão puxando as cobertas até o pescoço.

Inspiro bem fundo e expiro baixando a frequência da minha respiração. Não posso fazer nada com respeito ás batidas vorazes do meu coração estridente nos tímpanos contudo já sei que consigo disfarçar bem. Fecho os olhos com delicadeza.

Kira bufa alto. Espero ela me acertar um soco, me derrubar da cama ou só puxar meu cabelo, porém ela fica quieta batendo o pé.

—Sargento — cumprimenta Kira — Sinto muito, eu... Ela...

—Poço. Já.

Ela bufa outra vez, mas sabe que é melhor obedecer. Fico de olhos fechados, aguardando o momento em que Glok vai começar a gritar com todos nós. E ele não decepciona.

—Vermes! — berra fazendo o som reverberar pelo cômodo — Cinquenta polichinelos, pra ontem!

Levanto da cama ás pressas sem me preocupar em arrumar a camiseta ou pôr os sapatos. Começo a executar os polichinelos ao lado da cama encarando a outra parede ao perceber que o oficial estava quase ao meu lado.

Glok começa a contar e dar tapas nos que erram alguma coisa. Esforço-me para fazer com maestria os polichinelos até ele se sentir satisfeito — mesmo passando dos cento e doze polichinelos — e retirar-se.

Minha companheira de beliche o xinga de termos indevidos e salta de volta para a parte de cima de volta á sua cama quentinha. Desvio-me dela procurando Jugen com os olhos. Ele está sentado, de costas com uma mão no pescoço. Sem a jaqueta consigo ver a ponta de uma tatuagem despontando do ombro esquerdo e passando pelo direito antes de esconder-se de volta em suas costas.

Ele encontra meus olhos. Pisco, constrangida e tentando lembrar-me de Lion o máximo possível. Noto então que acabei de fazer uma inimiga perigosa.


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