9 Zonas escrita por Cas Hunt


Capítulo 3
Colegas de Ensino Básico




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Já sei o que fazer. Quando me deixam nas ruas com uma trouxa de roupas velhas e fedorentas nas costas, comigo vestindo uma camisa larga rasgada e calça a qual precisei dobrar a barra três vezes, sinto que vou vomitar. O esgoto é um lugar desprezível o qual tive o infeliz prazer de conhecer em alguns momentos da vida.

Sujo meu cabelo, deixo algumas marcas no rosto e prossigo para a rua onde o filho do ditador deva passar.

Diferentemente de onde me encontrava antes, a Zona 4 é um lugar frio mas que contém um ar seco sufocante que parece ferir minhas narinas. Uma constante coluna de fumaça está presente no céu e sei que sempre que se abaixa até o solo é considerado perigo eminente de gases nocivos a qualquer vida.

Essa é a Zona de produção. No lado norte da cidade ficam as instituições de ensino das mais variadas coisas, no lado sul ficam organizações de treinamento e formação de soldados. Lado leste é para produção de alimentos e lado oeste para produção de equipamentos.

Apesar de tentar ignorar os longos e sinuosos prédios do lado sul não tenho como negar que eles machucam os olhos de tão brilhantes. Claro, os cidadãos cinco sempre limpam bem todas as janelas e estruturas criadas pelos queridinhos do ditador.

No lado da sombra da rua, está meu primeiro contato: Raissa, líder de uma gangue pouco conhecida e uma das espiãs mais valiosas da coitada da capitã da equipe infiltrada nessa zona.

Fico sentada na beira da calçada recebendo seus olhares afiados, contando com quantas armas ela está e tentando imaginar o que a capitã Kelly possa ter lhe informado sobre mim. Raissa tem os cabelos curtos, as tatuagens e os olhos verdes a fazem parecer mais perigosa do que deve ser. Talvez uma demonstração fútil de agressividade para compensar sua falta de tamanho. Tenho um metro e sessenta e seis mesmo assim, fico maior que Raissa mesmo à distância.

Esperando e sentindo o clima frio machucar minha pele ao mesmo tempo que seca minha garganta, penso em alguns dias antes quando acordei com Lion espalhando uma série de beijos pelo meu rosto. Plenas três da madrugada ele teve se sair para resolver um problema em seu pavilhão. Prometei que voltava antes que eu fosse embora. Ao invés de espera-lo, eu o segui e observei sua postura com os ombros retos, o queixo erguido e a expressão dura enquanto reclamava com seus cadetes sobre um simples furto de cobertores que acarretara em uma confusão descomunal.

Voltando para casa tive de me despedir dele, algo doloroso de se fazer sussurrando algumas promessas e trocando mais uma porção de beijos. Meu pai me levou até o carro fechado que logo foi trocado por uma carroça de legumes que estrou facilmente pelos portões da Zona 4 e me deixou no esgoto.

O momento que tanto esperávamos chega assim que o carro blindado prata do filho do ditador estaciona na esquina. Ele sai do mesmo acompanhado de dois seguranças, um homem e uma mulher da mesma altura, cópias um do outro até mesmo no terno carmim e óculos escuros apesar das gotículas de chuva que começam a se formar.

Raissa atravessa a rua larga pisando duro na minha direção. Ergo-me pronta para começar o teatro. Antes que eu abra a boca ela acerta um soco no meu maxilar.

—Queria me conhecer? Conseguiu! — ela começa a gritar com a chuva caindo.

Clima perfeito. Seus dois colegas se assomam sobre ela como dois pilares e começo a praguejar por ter planejado isso. A ideia era levar uma surra, mesmo lutando contra, o filho do ditador tentaria ajudar, veria o potencial e me levaria até sua instituição.

Pelo canto do olho vejo ele entrar em uma loja de doces. Abro a boca outra vez para explicar a ocasião mas outro soco me atinge do outro lado.

—Agora já chega — resmungo.

Avanço na direção dela mas um de seus colegas empurra meu ombro na direção do chão. Desvio do movimento, chuto seu saco fazendo-o se curvar até conseguir uma boa visão do seu olho. Um ponto importante: adoro deixar olhos roxos.

Pouco antes da minha pele atingir seu rosto o outro colega aperta-me contra seus braços. Consigo ainda chutar o peito de Raissa que perde o ar por um segundo e soca meu estômago.

—Foi mal — ela sussurra com um sorriso discreto.

Duvido que realmente se sentisse mal. Arrasto meu corpo para frente pisando no pé de meu carcereiro até ele soltar um grunhido ao mesmo tempo que mordo sua mão. Ele me larga por um momento, tempo o suficiente para que eu deslize de seus braços e consiga acertar um gancho no seu nariz.

Raissa me dá um chute nas costas jogando-me no chão onde não fico por menos de alguns milésimos até levantar.

—Vai aprender a parar de ficar olhando as pessoas erradas, pirralha — ela resmunga se aproximando.

Percebo a formação deles: um na direita, outro na esquerda e ela na minha frente. Separo um pouco as pernas firmando meus pés no chão. Tento acertar um soco em Raissa, ela desvia e minhas costelas do lado direito sofrem as consequências. Tento com meu agressor, mas o que estava a esquerda acerta certeiramente minha cabeça.

—Ei! — uma voz macia e grave soa nas minhas costas assim que caio de cara no asfalto.

Por não ter quase ninguém na rua, suspeito que seja o filho do ditador. Até onde sabemos ele é um bobão se comparado ao pai. Puxou muita bondade da mãe e vai ser um desastre como herdeiro do país e isso torna as coisas mais fáceis para nós.

Sentindo minha cabeça latejar, fico de pé pronta para entrar no papel. Finjo estar assustada assim como meus ajudantes ficaram ao sair em disparada pela descida da rua entrando em algum beco qualquer.

—Garota — a mão em meu cotovelo me faz afastar-me por reflexo, mesmo que tenha sido para ajudar.

Isso apenas contribui para meu papel de órfã assustada. Por cima do cabelo molhado, viro-me para encarar minha futura vítima. O filho do ditador, que eu esperava ter plenos trinta ou quarenta anos se mostra um jovem, talvez da minha idade até, no máximo cinco anos mais velho, o rosto limpo de rugas e repleto de sardas, o cabelo preto e olhos de um impressionante cor mel que parece ferro derretido. Ombros largos, alto e aparentemente confiante, ele é tudo menos o que eu esperava, principalmente pelo fato dele não me ser estranho.

—Calma — ele mostra um sorriso amigável e um calafrio percorre minha coluna, não sei se de medo ou pelo frio congelante transpassando minhas roupas. — Onde você mora?

Fico em silencio. Não consigo evitar de avaliar cada centímetro do seu rosto, cada traço cuidadoso que o transformam menos em um futuro ditador e mais em um garoto mimado de uma das famílias ricas. Passo a me perguntar se ele é realmente quem procuramos.

—Você me ouviu? — ele repete já começando a se irritar com a chuva.

—Não moro em lugar nenhum — respondo saindo do transe.

—E sua família?

—Sou órfã.

Ele pisca algumas vezes. Ergue a mão até meu rosto e afasto-me por reflexo sem querer que esse ser desprezível rele o dedo em mim.

—Buk, Lina — ele chama seus companheiros.

Já me preparo para outra briga achando que ele vai tentar se aproveitar de mim quando ambos apenas se colocam logo atrás dela, aguardando suas ordens.

—Levem-na ao meu hospital particular. Digam ao meu pai que é uma colega do ensino básico.

Merda! Lembro-me muito pouco do ensino básico, mas consigo recordar de um garoto minúsculo encolhido no canto de todas as salas de aula. Uma vez ou outra o flagrava me observando mas nunca aprendi seu nome ou me importei em registrar qualquer coisa. Só conseguia dormir de cansaço pelo trabalho pesado.

Ele lembra de mim. O filho do ditador lembra de mim. Sinto cada fibra do meu corpo estremecer imaginando que ele deva saber quem são meus pais e, caso esteja informado ou tenha participado de qualquer batalha em campo dos Exilados contra as forças armadas, com certeza vai reconhecer a eles ou a mim.

Minha missão parece ter triplicado de perigo com os momentos de ser reconhecida pairando ao meu lado a qualquer segundo.

Em choque, seus guardas seguram meus ombros encolhidos dentro da camisa espessa e empurram-me na direção de seu carro.


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